Um dos autores mais importantes do século 20 – talvez o mais importante, no que diz respeito à literatura norte-americana – faleceu na última terça-feira (22) em um hospital em Manhattan, na cidade de Nova York. Philip Roth tinha 85 anos e, além de um incrível narrador dos Estados Unidos contemporâneo, era também um depósito de histórias.
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Uma, por exemplo, talvez não tenha sido suficientemente repercutida e destacada pela mídia internacional. Em 2012, Roth já era um homem idoso, cansado, um ícone norte-americano que, em algumas semanas, anunciaria a decisão de parar de escrever por ser incapaz de reunir a “força física necessária para sustentar um ataque criativo”.
Ainda assim, o autor decidiu enviar às prestigiadas colunas da revista “New Yorker” uma carta aberta aos administradores da Wikipedia, culpados de ter rejeitado uma solicitação de modificação no artigo sobre um de seus romances, “A Mancha Humana”. “O artigo contém uma afirmação profundamente equivocada e eu gostaria de pedir sua remoção. Esse artigo foi parar na Wikipedia não por meio do mundo real, mas de rumores da fofoca literária: não há nenhuma verdade nele. E, quando por meio de um interlocutor oficial pedi à Wikipedia para apagar essa informação, além de outras duas, o administrador da Wikipedia em língua inglesa disse a ele, em uma carta datada 25 de agosto, que eu, Roth, não era uma fonte crível.”
“Segundo o que dizem”, reportava o artigo que havia causado a ira de Roth em 2012, “o romance da sua chamada ‘trilogia americana’ se inspirava na vida do grande escritor e crítico do jornal ‘New York Times’ Anatole Broyard”. “A informação alegada não é de maneira nenhuma comprovada por fatos”, lamentava então Roth, explicando ter conhecido Broyard apenas depois de ter começado a escrever “A Mancha Humana”, no fim da década de 1990. Broyard – assim como Coleman Silk, protagonista do romance de Roth – era de origem negra, mas escolheu se passar por branco, como muitos no curso da história norte-americana, para não sofrer as consequências da segregação racial. Mas Roth explicou que, na verdade, inspirou-se na vida de um amigo, professor de Princeton por três décadas, Mel Turmin.
A defesa de Roth da verdadeira origem do material de seu livro faz soar um alarme em uma fase histórica na qual “fake news” se tornou a expressão do ano em 2017 do Collins Dictionary. Em tempos de bots que cultivam mentiras online para influenciar os resultados das eleições em países estrangeiros, a reivindicação de Philip Roth é mais do que um excesso de capricho de um autor indiferente às fofocas literárias: a sua lição é, em sentido mais amplo, advertir a não dar por óbvia a autoridade das fontes (aliás, ele mesmo não era suficientemente autoridade) e a buscar sempre a verdade “definitiva”, aquela que esclarece de uma vez por todas onde está o verdadeiro e onde está o falso.
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Ontem (23), Elon Musk publicou um dos seus tuítes enigmáticos: “Eu vou criar um lugar onde o público poderá avaliar a verdade intrínseca de cada artigo e ter acesso ao histórico de credibilidade de cada jornalista, editor e publicação. Pensei em chamá-lo de Pravda [jornal oficial do Partido Comunista da União Soviética]”, compartilhou com seus 22 milhões de seguidores. Musk, como frequentemente acontece, fala sobre algo sério: temos necessidade de um órgão que controle a autoridade das notícias? Mas, se ele controla as notícias, quem o controlará? A objeção é a mesma, e tem a ver com a própria natureza da informação online, um processo constitucionalmente fragmentado e exposto não apenas às fake news, mas também a mal-entendidos e falhas.
Mais do que isso, no caso de Roth poderíamos refletir sobre a própria natureza da Wikipedia: Luca Martinelli, um dos administradores da Wikimedia (órgão que administra a Wikipedia), dedicou ao assunto um longo aprofundamento que explica o escopo da enciclopédia online “não de ‘buscar a verdade’, mas de garantir a verificação do que está escrito” (e que, se o que é reportado pelas fontes oficiais não corresponde à verdade, não se trata de “um problema que a Wikipedia pode resolver”).
Por uma curiosa, mas eloquente, coincidência, quem pega em mãos “A Mancha Humana” hoje, dois dias depois do falecimento do maior escritor norte-americano do nosso tempo, encontra-se diante de uma frase que diz: “Há a verdade e depois há, ainda, outra verdade. Enquanto o mundo for cheio de pessoas que caminham convencidas de ter entendido tudo de si e do seu próximo, na realidade não há um limite a aquilo que não se conhece. As verdades são infinitas. Assim como as mentiras”.