Durante anos, a população de Londres se instalou silenciosamente em armazéns, escolas, lares de idosos e edifícios abandonados. Essas pessoas vivem em locais privilegiados, no coração da cidade, pagando uma média de US$ 570 por mês, com tudo incluso. São profissionais de meia-idade, jovens artistas freelancers, assistentes sociais e estudantes. Eles podem estar morando nesses lugares num mês e serem despejados no outro.
LEIA MAIS: 20 cidades com o metro quadrado mais caro do mundo
Eles são conhecidos como “guardiões da propriedade”, pessoas que protegem imóveis comerciais e residenciais vagos vivendo neles, e são parte de um fenômeno que cresce rapidamente na capital do Reino Unido.
Segundo um relatório publicado pelo Comitê de Habitação da Assembléia de Londres em fevereiro, existem cerca de 5 mil a 7 mil guardiões de propriedades no Reino Unido, com a maioria deles em grandes cidades como Londres. Embora o sistema tenha começado originalmente como uma medida anti-invasão na Holanda nos anos 90, agora se tornou uma solução inesperada para a crise imobiliária de Londres.
Stuart Woolgar, CEO da Global Guardians, uma empresa de consultoria imobiliária britânica, ajudou a impulsionar o mercado de guardiões, que há 13 anos era do tamanho de “startup” para o modelo de negócios substancial que se tornou hoje. “Em 2015, começou a crescer de verdade”, disse Woolgar. “Eu me lembro de quando tínhamos cerca de 300 guardiões, e esse número cresceu para os milhares.”
Enquanto a Global Guardians costumava receber de duas a três novas solicitações por mês, agora recebem uma média de 500, segundo Woolgar.
A razão para a popularidade desse tipo de “aluguel” é simples: é econômico. Na superfície, o esquema parece ser uma vitória para todas as partes envolvidas: os donos de prédios economizam dinheiro por não terem que contratar guardas ou sistemas de segurança caros, os moradores têm um lugar acessível para ficar e as empresas de ficam com o pagamento intermediário.
VEJA TAMBÉM: Bitcoins ganham espaço na compra de imóveis de alto padrão no país
“Já vimos muito mais pessoas em todo o país que não podem se dar ao luxo de alugar em certas áreas da cidade, tornando-se guardiões da propriedade”, disse Woolgar. “O mercado cresceu substancialmente”.
Uma moradia alternativa
Sam Battle, de 29 anos, descobriu sobre a tutela da propriedade há cinco anos através de um amigo. Desde então, ele vive em uma antiga casa de repouso e, atualmente, em um antigo prédio escolar em Mile End, que ele compartilha com outros 13 guardiões. Seu “apartamento” é uma sala de aula do tamanho de um apartamento de dois quartos, por um aluguel de US$ 464, com os serviços incluídos.
“O quarto que eu tenho é ridiculamente grande”, disse Battle. “É o tamanho de sete ou oito quartos de uma acomodação universitária. Tudo o que temos a fazer é garantir que ninguém invada o espaço, avisar se há algum problema e, em troca, vivemos em uma situação muito boa”.
A cozinha é projetada para uma escola, não uma casa, mas funciona. Os banheiros são comunitários, mas não são tão ruins assim. Como um músico autônomo que frequentemente está na estrada para shows, Battle acha que ser guardião de uma propriedade é uma maneira flexível e econômica de sustentar seu estilo de vida, enquanto economiza para comprar um lugar próprio no futuro.
Rex Duis, de 37 anos, é outro londrino que é guardião de propriedade desde outubro de 2009. Ele está morando em uma propriedade fora de Londres enquanto espera por outro local de tutela que abrirá em Camden, muito mais perto do centro da cidade. Como dublador que também trabalha em vários empregos, Duis disse que escolheu esse “aluguel” por principalmente por razões financeiras.
“Eu continuo vivendo assim porque é acessível”, disse ele. “Eu não posso me dar ao luxo de alugar imóveis particulares. Eu teria que me mudar para a Zona 6 ou mudar de trabalho para ganhar mais dinheiro”.
À medida que o número de guardiões de propriedade cresce, começa a ganhar a atenção do governo.
O governo mantém uma abordagem cautelosa em relação à indústria, segundo Sian Berry, presidente do Comitê de Habitação da Assembléia de Londres. As autoridades não querem que a tutela de propriedade se torne a norma, disse ela, mas também querem garantir que ela seja regulamentada com segurança para os cidadãos.
“Parece ser algo que as pessoas que não podem pagar aluguel normal no setor privado estão se transformando”, disse Sian. “A questão é, isso é bom, é uma barganha, ou é uma coisa ruim, porque você não tem direitos?”
Vitória para ambos os lados?
Woolgar estima que, em média, a contratação de guardas de segurança custa ao proprietário de um prédio cerca de US$ 159 mil ao ano, enquanto o uso de guardiões de propriedades é de US$ 4 mil a US$ 5,3 mil. Os proprietários de edifícios podem ter que pagar para limpar o prédio de acordo com padrões aceitáveis e instalar medidas de segurança, mas, no geral, ainda é uma grande economia para propriedades ociosas.
Para os guardiões, a acomodação barata é o principal motivo. Um estudo de 2017 realizado por pesquisadores da Universidade de York descobriu que o custo era a esmagadora razão pela qual as pessoas se tornam guardiões de propriedade, seguidas pelo espaço e pela localização. Segundo a BBC, a renda média em Londres em 2017 era de cerca de US$ 2,1 mil por mês.
Por fim, como intermediários, as empresas recebem cortes de ambas as partes, resultando em um grande afluxo de empresas desde 2009, a maioria delas sediada em Londres.
Direitos restritos e despejos
Além do aumento dos custos, há mais problemas aparecendo em um mercado aparentemente perfeito. Em troca de suas taxas de acomodação, os guardiões desistem de certos direitos. No Reino Unido, os guardiões da propriedade operam com uma licença em vez de contratos legais que os locatários típicos mantêm. Algumas das diferenças mais significativas são que os guardiões devem desocupar as instalações com apenas 28 dias de antecedência e não estão protegidos pela legislação de proteção de depósitos.
O relatório da Assembléia de Londres descobriu que 10% dos guardiões entrevistados “destacaram várias ocasiões” onde os residentes receberam menos de 28 dias de antecedência, o que é ilegal, pois vai contra a Lei de Proteção ao Despejo de 1977 do Reino Unido. A pesquisa também descobriu que uma “proporção significativa de guardiões” estava insatisfeita com os atrasos na devolução de seus depósitos depois de deixar uma propriedade.
Ao longo dos anos, Woolgar coletou uma série de “histórias de horror” desses moradores. “Ouvimos coisas como guardiões morando em propriedades onde eles literalmente foram evacuados por posseiros”, disse ele. “Você tem agulhas de heroína; você tem ratos, insetos, pessoas adoecendo”.
Além disso, alguns guardiões têm experimentado outras práticas repugnantes por parte de empresas, tais como proibição de falar com a mídia, inspeções aleatórias, invasões de privacidade e taxas desnecessárias.
Woolgar reconheceu que sua própria empresa tinha cláusulas restritivas em sua licença, que foi destacada no início deste ano quando um guardião da propriedade reclamou sobre A Global Guardians ameaçando-o e outro guardião com uma cláusula de silêncio e despejo. A empresa negou as alegações do artigo e Woolgar disse que retirou as cláusulas dos contratos.
A indústria tentou se autorregular para resolver alguns dos seus problemas legais e de segurança, com empresas formando associações que proclamam se manter em certos padrões éticos e operacionais. Enquanto o Parlamento está atualmente preso à legislação do Brexit, Berry, Presidente do Comitê de Habitação, continua esperançoso de que eles poderão abordar a tutela da propriedade em breve.
No entanto, Katharine Hibbert, fundadora da Dot Dot Dot Properties, discordou que o problema é a falta de regulamentação. O problema real, disse ela, é que algumas empresas estão simplesmente optando por não seguir as leis existentes e os guardiões não são devidamente instruídos sobre seus direitos. “Se as pessoas souberem quais são seus direitos, eles não serão perdidos”, afirmou ela.
Como a tutela da propriedade continua a crescer, empresas, guardiões e funcionários do governo terão de lidar com seus pontos problemáticos para continuar a tornar a habitação acessível uma realidade. Os guardiões não são mais apenas jovens, mas profissionais na faixa dos 30 e 40 anos, servidores públicos e trabalhadores de saúde.
Jed Meers, uma das principais pesquisadoras por trás do estudo da Universidade de York, disse que ficou mais surpresa com a diversidade de pessoas que escolheram ser guardiões.
Como os dados demográficos dos guardiões da propriedade convergiram para os da economia regular de locação, os preços também mudaram. Não há informações exatas disponíveis para calcular quanto exatamente as taxas de tutela aumentaram em todos os setores, mas o relatório da Assembléia de Londres concluiu que os preços estavam “subindo em geral”.
“O custo disparou massivamente”, disse Duis, o dublador. “Sempre foi cerca de 50 Libras (US$ 66), todas as contas incluídas, por semana, para as Zonas 3 a 6 e 60 para a Zona 2, o que era acessível.” Agora, ele paga cerca de 108 Libras (US$ 144) por semana pela sua residência atual na Zona 4, um anel externo de Londres.