A premiação dos melhores jogadores na temporada 2019 do futebol brasileiro teve uma novidade. Juntamente com os melhores, foram premiadas as melhores. Festa divertida, música, flashes, emoção. E um intruso meio desagradável: o fato de que todo mundo conhecia os jogadores premiados – Gabigol, Arrascaeta e companhia, da irresistível seleção do Flamengo – e quase ninguém conhecia as jogadoras. Ah, tudo bem.
Quer dizer: mais ou menos. Vamos promover o futebol feminino – excelente iniciativa. E ele está evoluindo bem, com atletas cada vez mais potentes e talentosas. Só tem uma coisa atrapalhando: a demagogia.
Em vez de tratar a modalidade em ascensão como ela é – em termos de performance, interesse do público e história – os gênios do marketing não resistiram à tentação da feira moderna e partiram para a equiparação. Golaço (contra). Evocar Pelé para falar da Marta é uma crueldade com ela, que acabou topando o jogo e se tornou uma voz pelos direitos iguais. De desigual existem só algumas centenas de milhões de interessados a mais pela “categoria” masculina – e cerca de um século de história conhecida nos quatro cantos do mundo. Mas isso virou detalhe.
Pelé não é mais o rei do futebol. Agora, Pelé é o rei do “futebol masculino”. Diga isso em voz alta, constate o ridículo e aproveite mais essa chance de entender que a demagogia não ajuda ninguém na vida.
A festa da premiação e os programas esportivos exibindo lado a lado as listas dos jogadores e das jogadoras premiadas seria um momento para a antologia do constrangimento – se a patrulha politicamente correta não tivesse exterminado o discernimento geral. Foi, portanto, normalíssimo. Ninguém notou que era o evento mais machista do ano.
Lá estavam os homens – que fizeram e fazem a história do futebol, ou seja, os donos da festa (e da audiência) – dando uma carona para as mulheres. Um favor galante, canastrão – machista. O esforço absolutamente patético de elencar as desconhecidas vencedoras da Ferroviária de Araraquara lado a lado com os craques do Brasileirão, cujos nomes o grande público ouviu o ano inteiro, não ajuda em um milímetro o belo projeto de desenvolvimento do futebol feminino. Por mais que a hipocrisia tenha sido levada até o fim pelos promotores e difusores do espetáculo, o público sempre sente quando estão forçando a barra para cima dele. E não gosta.
A capitã da seleção dos Estados Unidos é mais conhecida do público por dar declarações contra Donald Trump. Isso é estimulado pelos promotores do futebol feminino – e é uma afronta ao futebol feminino. Você deixa em segundo plano o esforço, a técnica, a emoção das esportistas para destacar uma retórica (que mesmo se não fosse oportunista, jamais poderia se sobrepor ao mérito esportivo). Tentar alavancar o futebol feminino com a premissa de que ele não se desenvolveu ao longo da história por preconceito é uma falsidade. E alavanca falsa não funciona.
O futebol feminino tem evoluído muito e já proporciona lances bastante atraentes para quem gosta do esporte. Mesmo assim, por causa de vários aspectos como dimensões do campo e da baliza, disposição tática e outras particularidades, o jogo ainda carrega certo sotaque amador ao público cativo do futebol. E se estão achando que vão substituir paixão clubística e história por discurso, estão redondamente enganados. Essa bola é quadrada.
Sugestão: nos dias de grandes clássicos, reativem as partidas preliminares – acostumem as atletas aos grandes públicos (e eles a elas), defendendo os grandes clubes. Ou outra coisa qualquer que permita anunciar nos alto-falantes a substituição: sai a demagogia, entra a sinceridade.
Guilherme Fiuza é jornalista e escritor