Na tragicomédia “Minha Querida Dama” (My Old Lady), Mathias Gold (Kevin Kline), um norte-americano fracassado, herda um apartamento em Paris. Ele junta o pouco que tem e embarca para a França decidido a vender a propriedade. Ao chegar, descobre que a senhora Mathilde Girard (Maggie Smith) está morando no apartamento com a filha Chloé Girard (Kristin Thomas).
A senhora informa ao herdeiro que aquela é uma propriedade Viager. Pelo contrato, ela não só tem o direito de morar lá enquanto estiver viva, como o herdeiro ainda precisa pagar € 2.400 mensalmente sob pena de perder qualquer direito sobre a propriedade após a morte da senhora Mathilde.
Se você não é francês, provavelmente nunca tenha ouvido falar de um contrato Viager. Essa modalidade de contrato existe na França desde 876 d.C. – e está se tornando cada dia mais popular.
Por meio de um contrato Viager, um proprietário pode vender seu imóvel, entretanto mantém o direito de morar nele enquanto estiver vivo. E ainda mais: o comprador precisa pagar ao morador um valor mensal – se não forem honrados os pagamentos, o contrato fica extinto e o comprador perde tudo que pagou.
Em 1965, com 90 anos e sem herdeiros, Jeanne Louise Calment assinou um contrato Viager com o tabelião André-François Raffray. Além do pagamento inicial, Raffray teria que pagar um valor mensal de 2.500 francos para senhora Jeanne enquanto ela estivesse viva. O tabelião morreu em 1995, e a senhora Jeanne continuou recebendo o valor contratado até sua morte, em 4 de agosto de 1997, aos 122 anos. Finalmente, após 32 anos, os herdeiros de Raffray tomaram posse do apartamento.
O Viager é uma exclusividade do sistema jurídico francês, porém um sistema bastante semelhante vem sendo criado em diversos países do mundo. Nos Estados Unidos, existe a HECM (home equity conversion mortgage) ou hipoteca reversa, um tipo de contrato permitido para pessoas com mais de 62. O imóvel a ser hipotecado deve estar quitado e ser a principal moradia do interessado.
Os jovens normalmente têm boa renda e pouco patrimônio. Assim, os bancos emprestam, mediante uma hipoteca, dinheiro para que os jovens adquiram suas residências. Se tivessem que guardar todo o dinheiro antes de comprar a casa, não teriam onde morar durante a fase de acumulação. Muitos idosos, ao contrário, têm um imóvel mas não têm renda suficiente.
Com a hipoteca reversa, a pessoa pode trocar o valor da casa por uma renda mensal. É uma forma de complementar a aposentadoria. O idoso desiste de deixar uma herança aos descendentes, caso eles existam, e assim pode ter uma velhice com mais conforto financeiro. O banco recebe o retorno sobre o investimento quando a pessoa morre ou precisa abandonar a casa. Nesse caso, a casa é transferida ao banco, que vende o imóvel para recuperar seus investimentos.
Ao contrário dos financiamentos normais, na hipoteca reversa, é como se o banco fosse comprando o imóvel lentamente, com pagamentos de uma renda mensal. Se a renda for paga por um prazo fixo, ela é direcionada aos herdeiros em caso de morte do morador, e o imóvel passa a ser do banco na data estipulada. Já se o idoso optar por receber a renda enquanto viver, ela se extingue quando a pessoa morre, ocasião em que o banco recebe o pagamento. Enquanto vive no imóvel, o antigo proprietário é obrigado a pagar os impostos e o seguro residencial.
Mesmo parecendo complicado, o negócio é bastante simples para todos os envolvidos. O proprietário está vendendo a casa e mantendo o direito de morar nela por um tempo ou por toda a vida. No caso de escolher morar até o fim da vida, o banco vai trabalhar com uma previsão de quanto tempo a pessoa vai viver, com base nas tábuas atuariais. Se viver menos, o banco ganha. Se viver mais, o banco perde.
E aqui entra uma grande oportunidade: é praticamente impossível calcular o tempo de vida de uma pessoa, entretanto é relativamente simples calcular a vida média de um grande grupo de pessoas. Então, essas características permitem que sejam criados fundos imobiliários destinados a atuarem no mercado de hipoteca reversa.
A hipoteca reversa constitui mecanismo natural de alavancar o consumo dos idosos. Muitas pessoas em idade avançada detêm grande parte de sua riqueza financeira na forma do imóvel em que moram. Assim, para usufruir desse patrimônio, precisam deixar de viver nele, o que geralmente é muito ruim para a pessoa idosa.
Em 16 de setembro de 2011, foi publicado no jornal “O Globo” um artigo que escrevi com Martin Iglesias sobre hipoteca reversa. Após essa publicação, comecei a conversar com o então senador Paulo Bauer, que posteriormente apresentou o Projeto de Lei do Senado nº 52, de 20 de fevereiro de 2018, instituindo a hipoteca reversa no Brasil.
O relator da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) votou pela aprovação do Projeto de Lei, que desde 4 de dezembro de 2019 está aguardando para ser pautado na Comissão. Além do Projeto de Lei no Senado, existe também o Projeto de Lei nº 3096/2019 na Câmara dos Deputados, que foi apresentado pelo deputado Vinicius Farah e que aguarda ser pautado na Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa (CIDOSO).
Com a hipoteca reversa, é possível transformar o ativo imobiliário em renda para os idosos e resolver um grave e silencioso problema social. Para que esse instrumento útil e moderno tenha sucesso no Brasil, é fundamental que haja um esforço para que os projetos de lei atualmente em tramitação na Câmara e no Senado evoluam e se tornem efetivamente lei.
Tornar a hipoteca reversa uma realidade no Brasil é um dos meus grandes sonhos, pois ver um idoso ter que vender e abandonar sua casa por dificuldades financeiras é uma das situações mais tristes que já presenciei como planejador financeiro.
Jurandir Sell Macedo Jr é doutor em finanças comportamentais, professor universitário e, desde 2003, ministra na Universidade Federal de Santa Catarina a primeira disciplina de finanças pessoais do Brasil. É autor de inúmeros livros sobre educação financeira e tem pós-doutorado em psicologia cognitiva pela Université Libre de Bruxelles. Escreve sobre Finanças 50+ sempre às quintas-feiras. Instagram @jurandirsell E-mail [email protected]
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