Em Paris, a recente temporada de alta-costura mostrou que, apesar de ser declarada morta e enterrada mais de uma vez, a couture tem resiliência e procura manter a relevância alinhada com uma agenda global. Tradição versus atualidade, feminismo, diversidade de gênero, multiculturalismo, tecnologia, responsabilidade ambiental e social surgiram nas passarelas em desfiles presenciais ou apresentações online.
Se durante a quarentena, houve uma forte colaboração entre estilistas e cineastas para atender os protocolos de distanciamento social, no momento pós-vacina a moda flerta abertamente com a arte moderna e contemporânea. A couture pós-vacina se mostra interessada em novas ideias, alguma reflexão e um tanto de ousadia.
Na ressuscitada Schiaparelli, o norte-americano Daniel Roseberry remexeu o passado surrealista da maison – Elsa Schiaparelli era amiga e trabalhou com Salvador Dali, Francis Picabia e Jean Cocteau – apresentando peças luxuosas com um toques divertidos e provocativos. Uma estola feita com sacos de lixo, um colar “pulmão” de ouro cobrindo os seios, um decote de seda no formato do bico do Pato Donald – uma inusitada conexão couture-cartoon.
Chitose Abe, estilista da marca japonesa Sacai, estreou na alta-costura via Jean Paul Gaultier – que se aposentou do métier mas mantém a marca funcionando para colaborações – revisitando as criações icônicas do mestre, como os sutiãs pontudos de Madonna e os trajes híbridos masculino-feminino. A crítica deu uma certa esnobada, mas as celebridades na primeira fila aplaudiram.
O inglês Kim Jones, que substituiu Karl Lagerfeld na direção artística da marca italiana Fendi, fez sua segunda apresentação na alta-costura com uma coleção ladylike contemporânea- discreta e jovial. Primeiro em filme – rodado em Roma e dirigido pelo italiano Luca Guadagnino, de “Me Chame Pelo Seu Nome” – e depois em desfile presencial, em Paris. Fez tudo como pede o figurino couture: silhuetas esguias, vestidos de baile e ornamentação artesanal – bordados, incrustações, materiais sobrepostos formando mosaicos. Também colocou homens na passarela. Ex-assistente de Marc Jacobs na Louis Vuitton, Jones avisa que está se aprimorando na couture, percorrendo uma estrada.
Enquanto isso, o georgiano Demna Gvasalia recolocou a marca Balenciaga no calendário da alta-costura. Para isso, foram reabertos os lendários salões da maison da avenue George V, 53 anos depois de serem fechados por Cristóbal Balenciaga, que decidiu se aposentar das seda pura e alfinetadas na sequência da revolução estudantil de 1968. O ambiente envelhecido naturalmente – com alguns toques de cenografia funcionou como uma instalação para um desfile very old school – nada de trilha sonora, apenas silêncio e cada modelo exibia a plaquinha contendo o número da roupa – com criações para homens e mulheres. Tudo calcado nas formas arquitetônicas clássicas do mestre espanhol misturadas com roupas do dia a dia. Jeans, camisetas, jaquetas utilitárias etc.
Anote esse nome: Kerby Jean-Raymond, o primeiro afro-americano a ingressar na Chambre Syndicale de la Haute Couture. Ele apresentou sua coleção em Nova York, para a marca Pyer Moss – do conglomerado Kering – nos jardins da mansão da sra. CJ Walker, a primeira milionária afro-americana – sua vida é contada em uma série da Netflix. O tema “25 Invenções Negras” foi explorado em peças com um toque wearable art Jean-Raymond trabalhou em colaboração com cenógrafos e figurinistas de Hollywood. “Uma mistura de Vila Sésamo com Pixar”, definiu o estilista. A plateia foi convocada pelas redes sociais e Elaine Brown, única mulher a liderar os Panteras Negras, nos anos 1970, discursou sobre empoderamento negro.
De volta a Paris, chez Chanel – que comemora o centenário do icônico perfume Nº5 – Veronique Viard se inspirou no impressionismo, no cubismo e na era do jazz. Coloriu os tweeds, tules e paetês com a paleta das telas de Van Gogh e Seurat.
Chez Dior, Maria Grazia Chiuri mostrou sua visão do figurino feminino para a volta à normalidade pós-pandemia. Uma certa austeridade e uma cartela de cores onde predominam preto, branco, cinza e tons terrosos.
Nos salões da embaixada italiana em Paris, mestre Giorgio Armani – aos 87 anos ainda na ativa e muito bronzeado – mostrou a coleção Armani Privé com aquele inconfundível toque de classe. Com inspiração nas cores do arco-íris e na Commedia dell’Arte, camadas de organza transparentes e materiais com brilho líquido reproduziam o efeito de hologramas em ternos, vestes, capas e vestidos de baile. Puro Armani.
Finalmente, na Itália, Pierpaolo Piccioli, diretor criativo da maison Valentino, encenou um espetáculo na última quinta-feira – 15 de julho no Arsenale, um dos espaços de exposições da Bienal de Veneza, a meca da arte contemporânea. Piccioli misturou looks femininos e masculinos eles calçavam icônicos sapatos Dr. Martens – em formas fluidas, materiais deslizantes, volumes aristocráticos e colorido explosivo. O curador Gianluigi Ricuperatti reuniu 17 pintores contemporâneos para providenciar as pinceladas artsy da coleção, Philip Treacy assinou os enormes chapéus emplumados esvoaçantes, o convite pedia que os convidados vestissem branco e a canção tema do filme “Bagdad Café” interpretada ao vivo – pontuou o momento. Um final retumbante para a temporada couture.
Conectada ao espírito do tempo, a alta-costura permanece. Afinal, símbolos são necessários.
Donata Meirelles é consultora de estilo, atua há 30 anos no mundo da moda e do lifestyle
Com Mario Mendes, Antonia Petta e Sofia Mendes
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