O acaso. Isso é o que os gringos chamam de serendipity. É uma daquelas palavras difíceis de explicar. Só vivenciando para entender. Para mim, serendipity é não tentar controlar o incontrolável.
São aquelas surpreendentes descobertas da vida, com as quais você se depara sem sequer estar procurando. Serendipity pode representar aquela situação em que, sem querer, você encontrou a solução para um problema complexo. Ou o quanto quando você se sentiu maravilhado por ter achado um dinheiro perdido no fundo do bolso da calça. Mas nem sempre essas pequenas doses de felicidade são reconhecidas de imediato. Assim como alguns dos momentos mais marcantes da nossa jornada, só nos damos conta da importância de certos eventos tempos depois que eles aconteceram.
No meu caso, esse momento de lucidez ocorreu em uma das empresas de tecnologia que eu mais admirava e sonhava em trabalhar. Fundada por um gênio em um pequeno escritório em Chinatown, Nova York, a multinacional com espírito de startup tinha como propósito produzir conteúdo usando dados, capaz de engajar milhões de pessoas no mundo inteiro com base em três padrões de comportamento: utilidade, identidade e emoção.
Minha expectativa de contribuir com o sucesso dessa empresa era tão alta que, 15 dias antes de começar oficialmente na posição de general manager, já tinha o business plan para transformação da empresa num polo de experiência. Estudei, cautelosamente, as fortalezas e fraquezas da organização, e acreditava estar pronta para o desafio de virar uma “super geek” da tecnologia. Contudo, como quase todas as transformações da vida, as coisas não saíram exatamente como planejado. Mais do que entender tudo sobre tecnologia, aquele lugar me faria aprender sobre pessoas e suas histórias de vida.
Após alguns meses na liderança da empresa, sofri um ato anti-sororidade, vindo de uma talentosa colaboradora, que me impactou emocionalmente e fisicamente. O gatilho para aquele cruel ataque digital: o fato de eu chegar ao escritório vestindo uma camiseta com a palavra FEMINIST.
“Tudo depende de como vemos as coisas e não de como elas são”, disse Carl Jung.
O objetivo dela era provar – por meio de um post numa plataforma digital – que uma mulher na minha posição jamais poderia fazer parte do movimento feminista. Imagine, que audácia, uma opressora levantando a bandeira feminista. Curioso pois o feminismo, como muitos pensam erroneamente, não é um movimento sexista, mas uma luta pela igualdade entre os gêneros. E, quanto mais aliados, melhor para a evolução de toda sociedade.
Foi muito pesado viver, mesmo que por alguns meses da minha vida, com a ameaça constante de um novo ataque. Cheguei a questionar minha liderança humanizada – e se valia a pena a briga que estava comprando com o headquarter para seguir transformando e evoluindo a cultura e, principalmente, o sistema de remuneração.
Liderança e compaixão
Algo que aprendi nessa jornada é que liderança tem a ver com o outro. Porém, para que você possa exercer seu papel com maestria, precisa cuidar primeiro de você e contar com uma rede de apoio. Nessa delicada situação em que estava envolvida, minha principal conselheira foi a Carol, minha irmã caçula que, desde muito pequena, se destaca pela sua inteligência interpessoal.
Em princípio eu a procurei em busca de uma consultoria jurídica por sua vasta experiência no assunto como senior counsel em uma empresa global. Mas a verdade é que eu não estava em busca de uma advogada e sim de uma amiga para me acolher. Precisava de ajuda, mas demorei para entender que aquilo era um pedido de socorro. Carol, obrigada pela sua compaixão.
Hoje, quatro anos depois, consegui entender que aquelas manifestações de ódio da colaboradora não foram ataques pessoais a Luciana, mãe, filha, esposa e feminista (!). E sim à posição de liderança que eu ocupava. Todo gestor precisa entender que, naturalmente, sua posição pode incomodar alguns simplesmente pelo fato de você estar em um papel que exige tomada de decisões. Não importa se você é um líder humano, justo e acolhedor. O fato é que, para algumas pessoas, você será, sempre, a materialização do “opressor”. Será que o fato de ser uma mulher líder potencializou a reação?
A maravilhosa escritora, poeta e ativista Maya Angelou resumiu bem o sentimento diante de adversidades como as que sofri: “Você não pode controlar todos os eventos que acontecem com você, mas pode decidir não ser reduzido por eles.”
São muitas as camadas: as minhas, as da agressora, as da corporação. Aquela profissional, claramente, não tinha as ferramentas necessárias para compreender que eu estava usando meu privilégio, como líder, para ecoar a importância do feminismo no mundo corporativo e, como consequência, começar pequenas mudanças no sistema. E não estou falando de uma simples camiseta.
A antropóloga e política mexicana Marcela Lagarde define sororidade como “o apoio recíproco entre as mulheres para se conseguir o poder para todas”. É uma aliança que proporciona a confiança, o reconhecimento mútuo da autoridade e o apoio.
Acredito que ser um líder bem sucedido é conseguir entender que o comportamento de algumas pessoas, muitas vezes, vem de histórias de dor e rejeição. Mas, por favor, não confunda entender com aprovar. Aprendi também que você não pode salvar ninguém, mesmo sendo um líder humano, cheio de propósito. Você pode compartilhar seu caminho, oferecer sua perspectiva, mas não pode tirar a dor ou mudar o caminho de ninguém.
Serendipity é sinônimo de casualidade. Mas esteja de olhos bem abertos, radar ligado e coração preparado para transformar o inesperado (mesmo quando ele vier em forma de dor) em uma oportunidade preciosa.
Foi por conta desses (entre outros) acontecimentos, que decidi estudar neurociências e comportamento. Sou muito grata por não ter deixado passar essa oportunidade para me fortalecer. A jornada de um líder estará, cada vez mais, associada ao conhecimento humano, já que a parte financeira, no final das contas, é uma disciplina exata. Comece 2022 listando sua rede de apoio e surpreenda-se com o impacto positivo que essas pessoas poderão lhe proporcionar. Ninguém chega a lugar algum, sozinho.
P.S.: Vale ressaltar que, no Brasil, apenas 14,7% dos cargos de liderança em empresas são ocupados por mulheres. Dados de 2021 do Summit ESG realizado pelo Jornal Estadão.
Luciana Rodrigues é CEO da Grey Brasil, conselheira do board da Junior Achievement, membro do conselho da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial e do comitê estratégico de presidentes da Amcham. Aluna de pós-gradução em neurociência e comportamento.