Eu era um desastre nas aulas de artes da escola. Lembro que tudo começava bem, eu empolgada, com mil ideias e grandes ambições. Por exemplo, fazer uma máscara de rosto humano, daquelas realistas. Na minha imaginação, era perfeito. Na prática, porém, uma decepção. No fim da aula, toda minha energia inicial havia sido drenada e restava apenas a frustração de ter diante de mim uma maçaroca de argila, que se parecia mais com um pé de meia usado do que uma face bem esculpida. Criatividade não me faltava, mas isso não era o suficiente para me dar bem nas aulas.
Nas aulas de redação, no entanto, a história era outra. Aliás, muitas histórias. Eu preenchia as páginas do papel numa velocidade que parecia maior do que a do meu pensamento – e só sabia completamente o que estava escrevendo quando acabava. Tramas fantásticas, conexões bem amarradas. Aí, sim, minha criatividade jogava a favor.
O que aprendi com isso (além de reconhecer minhas habilidades e inabilidades natas), é que a criatividade precisa de estrutura para gerar um belo produto. E no meu caso, essa estrutura mora no sistema de palavras limitado por um número de letras e suas combinações. Um mundo amplo o bastante para me desafiar a construir autoria; mas limitado o suficiente por regras que me salvam da possibilidade de deformar minha arte.
Essa criatividade pragmática é justamente o que a vida empreendedora exige de alguém.
Um exemplo que continua atual – um século depois –, é o da criação de uma máscara protetora facial, acessório que se tornou parte da rotina de todos nós no último ano. O inventor da máscara cirúrgica considerada a precursora da N95 (um dos modelos mais recomendados por especialistas durante a pandemia da Covid-19) foi o epidemiologista Wu Lien-teh, nascido em 1879. Em 1910, quando uma epidemia desconhecida atingiu o noroeste da China, Wu, que trabalhava no Imperial Army College da China, foi nomeado pelo governo para investigar a doença. Descobriu que era uma peste pneumônica contagiosa, que poderia ser transmitida por via respiratória. Para proteger as pessoas dela, projetou uma máscara cirúrgica, feita de algodão, gaze e camadas de pano, para limitar a disseminação da doença. Em outras palavras: um cientista, impulsionado por uma necessidade prática, usou sua criatividade para inventar um produto artesanal e eficaz, que foi essencial para o fim daquela pandemia, decretada em abril de 1911. Sua criação ganhou ainda mais relevância nos dias de hoje, quando o mundo todo luta contra outra doença comum.
Falando agora do ambiente empresarial brasileiro, a história da Ambev é cheia de invenções nascidas da criatividade pragmática de seus donos e funcionários. Constatei isso enquanto estudava a evolução da companhia, sua cultura corporativa e método de gestão, para a biografia que escrevi da maior cervejaria do mundo. Primeiro, as nada triviais fusões e aquisições que foram formando a companhia: três banqueiros, que não tinham conhecimento da indústria, compraram uma cervejaria obsoleta e aplicaram um estilo de gestão que se tornou referência no país e influenciou um sem número de organizações: escritórios abertos, todos sentados juntos, traje informal, gestão e revisão constantes de orçamento e remuneração variável atrelada a metas.
Dez anos depois, a fusão com a rival Antarctica formou a Ambev quando esse tipo de operação não era comum no Brasil e gerou muita polêmica. Em 2004, a união com a belga Interbrew criou a Inbev. Nessa etapa, o que aconteceu, resumidamente, foi que o trio de banqueiros convenceu membros da nobreza belga, donos da segunda maior cervejaria do mundo, a juntarem suas empresas e a deixarem seu comando na mão dos brasileiros. O acordo de acionistas desta fusão é conhecido no mercado financeiro pela sofisticação e peculiaridade – frutos da criatividade pragmática exercida também por banqueiros, advogados, advisors. Teve ainda a compra da Anheuser Busch, que deu origem à AB Inbev, e da SabMiller – histórias cheias de emoção e movimentos criativos.
Outro exemplo, mais recente, quem contou foi o cofundador do Quinto Andar André Penha, no livro “Fora da Curva 3 – unicórnios e startups de sucesso”. Para criar seu negócio – uma plataforma de aluguel e venda de imóveis -, ele e o sócio estruturaram um questionário com as seis etapas do aluguel, pedindo para as pessoas darem uma nota de um a cinco para cada experiência. Em 24 horas, receberam mais de duzentas respostas, e o fiador se revelou a parte mais complicada. Os dois se debruçaram sobre o problema. Esperavam ter uma alternativa ao fiador para os potenciais inquilinos em alguns meses. “Ilusão total”, diz André. Foram precisos quatro anos e muita criatividade na abordagem de um assunto extremamente burocrático para eles conseguirem acabar com a exigência de um fiador.
O que há em comum entre essas e muitas outras empreitadas de sucesso são três elementos, que considero premissas para a criatividade pragmática:
1. Coragem para errar. Acertar grande pressupõe errar muito. Quanto mais disposto você está a aceitar as falhas e começar tudo de novo, mais possibilidades de chegar a um resultado tão criativo quanto relevante.
2. Disciplina. Aqui está a tal da estrutura, sobre a qual falei no início do texto. É preciso ter planos, parâmetros, limites, direção – e segui-los. Criar sem balizas pode acabar igual às minhas aulas de artes da infância. Um propósito, um ponto de partida, regras, métricas… tudo isso é muito bem-vindo para nortear a criatividade.
3. Trabalho duro. Porque criar, a maior parte do tempo, não tem a ver com ócio, mas com experiência, com experimentação. Sabe a história do 99% transpiração, 1% inspiração? É isso. Trabalhe, trabalhe, trabalhe – e trabalhe mais um pouco. Energia de realização e persistência são campos férteis para a criatividade.
Ariane Abdallah é jornalista, autora do livro “De um gole só – a história da Ambev e a criação da maior cervejaria do mundo”, co-organizadora do “Fora da Curva 3 – unicórnios e start-ups de sucesso” e fundadora do Atelier de Conteúdo, empresa especializada na produção de livros, artigos e estudos de cultura organizacional. Praticante de ashtanga vinyasa yoga, considera o autoconhecimento a base do empreendedorismo.
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