Desde criança, meus maiores prazeres eram inventar histórias e dar vida a elas. Para isso, eu utilizava como palco a varanda da casa dos meus avós em Araruama, Rio de Janeiro; a família e os vizinhos como público e as amiguinhas, primos e primas como elenco. Claro que eu era a autora, diretora e protagonista. E tudo isso sem o menor problema em me sentir “fominha”, abusada ou mandona. A brincadeira era assim e fluía naturalmente. Meu primo Marcelo se encarregava do som com músicas e outra amiguinha fazia as roupas improvisadas e assim brincávamos.
Na pré-adolescência comecei a ouvir que minha gargalhada era muito alta, que eu deveria colocar um short embaixo da saia, que meus movimentos estavam muito desregulados e para cada coisa que eu fosse fazer, deveria dar satisfação. Pronto. Era o começo do caos chamado adolescência e de onde ou eu sairia uma jovem mulher autêntica “pré-Dona de Si” ou uma jovem mulher castrada, dona de “p. nenhuma”.
Meus pais jamais foram pessoas retrógradas, mas eles são eles e eu sou eu, não é mesmo? Visões de mundo diferentes, crenças conflitantes e, enquanto o meu desejo de ser artista crescia, aumentava também a preocupação deles: “precisa ter uma profissão certa, garantir um salário em outra atividade para ser artista”. Entendo tanto essa preocupação e hoje a respeito. Mas, na época, a única coisa que me restava era me rebelar contra isso e negociar com eles as minhas escolhas, demonstrando que eu sabia onde queria chegar e não era uma doidinha sem prumo.
Sempre gostei de negociar com meus pais e hoje entendo o motivo. Esse exercício em me comprometer com combinados e escolhas estava me fazendo uma pessoa de palavra, que ia até o fim naquilo que se propunha e o fazia com dedicação total. Meus pais estavam me dando algo que eu precisaria muito: disciplina. Não pensem que foi fácil, tivemos inúmeros conflitos, conversas, re-conversas, para, enfim, nascer uma empreendedora de si mesma.
O estudo era um ponto não-negociável nas nossas discussões em casa. Ao entrar para o Tablado (escola de teatro), com quinze anos, eu repeti o segundo ano do segundo grau e comecei a questionar a necessidade de continuar a estudar. Foi meu pior momento na vida e o mais difícil em família. Concluí o segundo grau à força. E, no momento do vestibular, eu já estava ensaiando uma peça profissional onde eu era paga para estar, mas este era o combinado. Então, me dediquei aos ensaios e aos estudos e mal dormia ou comia. Meu desejo de dar conta de tudo começava aí e a consequência não foi tão vitoriosa: fui péssima no vestibular. Não péssima de nota. Eu nem consegui marcar um X em qualquer questão, porque desmaiei quando o inspetor falou “podem virar a prova e começar”. Eu tive um burnout. Seria meu primeiro.
Meus pais viram, neste momento, e eu também, o quanto eu estava inteira na nossa negociação. Foi a primeira vez que me senti eu: com a minha disciplina, compromisso e exagero também. Depois da catástrofe do vestibular (eu passei tão mal que até dentro de um chuveiro tiveram que me jogar!), me dediquei à peça. Fizemos uma turnê pelo Brasil inteiro e eu experimentava a vida de artista profissional. Não era só glamour de dar entrevistas, já vou logo avisando. Ao fim da turnê, entendi que era aquilo que eu queria para minha vida sim. Reafirmei meu desejo com força e passei a fazer escolhas que somassem a minha decisão.
Para que eu tivesse uma soma de conhecimento ao meu trabalho de atriz e também ao meu futuro trabalho como autora, escolhi prestar vestibular para algo que eu já amava, filosofia. Nesta época eu já escrevia, mas morria de vergonha e guardava tudo na gaveta. Eu não tinha conhecimento algum de estrutura de dramaturgia e fui atrás disso. Com as aulas da faculdade, somei um curso intensivo na Casa da Camilla Amado, onde tive acesso a uma biblioteca com as maiores obras da dramaturgia mundial.
Pois bem, como sou intensa…, intensidades eu fiz! (risos) Eu pegava o que estava estudando na filosofia, lia a dramaturgia da época e fazia uma pesquisa cruzando pensamento e arte. E assim começou minha pesquisa de dramaturgia filosófica (você jamais imaginou que a “mulher da janela” da novela “Gabriela” tivesse estudado isso, né?!? – risos e muitos). Eu estava consciente de que, além de artista, eu queria me tornar a mulher que eu nasci para ser. E essa batalha seria diária.
Antes da faculdade e de entrar para o teatro, aos 14 anos, precisamente, eu ganhei do meu pai a “bíblia feminista” da Simone de Beauvoir: “O Segundo Sexo volumes I e II”. Sim, um engenheiro de telecomunicações me presenteou com esses livros. Acho que ele já estava ciente da filha que tinha em casa e quis colaborar para que eu tivesse conteúdo feminista, entendesse a minha luta de maneira séria e não somente replicasse jargões.
Até hoje acho incrível o forte diálogo silencioso que passou a existir entre eu e meu pai (um cara de voz grossa e bigode, da geração dos homens que fumavam e tomavam whisky). Esse cara, o João Felippe, estava me vendo e me instrumentalizou para quando as brigas que, na época, eu tinha com ele, fossem com o mundo.
João Felippe e Maria Elizabete, meus pais, entenderam, para sempre, quem era eu. E um pai e uma mãe entender uma filha é algo de importância suprema e benção divina. Eu iria (e já estava) construindo a minha vida sob os meus parâmetros e escolhas e faria de tudo para não ser colocada dentro da caixa do padrão. Tomando tal decisão, a vida começou a fluir mais fácil para mim porque eu passei a escolher atividades e pessoas que não me julgariam por ser “a diferente”, mas que me instigassem a descobrir cada vez mais da vida.
E continua….na próxima semana.
Primeira atriz também autora de novelas do Brasil, a empresária e empreendedora social Suzana Pires é formada em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), em showrunner na MediaXchange, em Los Angeles, e em empreendedorismo pelo Empretec Sebrae SP. Depois que começou a escrever a coluna Dona De Si, em 2017, surgiu a ideia de criar o Instituto Dona De Si, com o principal objetivo de acelerar talentos femininos. Atualmente, segue como atriz na Rede Globo de Televisão e como autora cria projetos para players nacionais e internacionais através da marca Dona De Si Conteúdos.
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