“O que é arte? Para que serve?” é o que se lê na placa pendurada no pescoço de um homem que caminha pela cidade. Nesta performance de 1978 no centro de Recife, o homem é Paulo Bruscky. Ele questiona esta manifestação na qual artistas se debruçam de infinitos modos e maneiras desde os tempos das cavernas aos cavernosos dias atuais. “Trabalho com os sólidos, os líquidos e os gasosos, com a esperança, a nacionalidade e a solidão, da primeira à quarta dimensão”, é como ele, nascido em Recife, como eu, descreve sua atuação de cinco décadas. Em sua mente fervilhante vida = arte / arte = vida. Ou melhor, VidArte, conforme resume seu domínio da palavra que reflete sobre a condição humana e seus dilemas éticos em sua vasta obra multimídia de peculiar dimensão poética.
Bruscky é um colecionador do cotidiano com raízes no Dadaísmo e no Grupo Fluxus, do qual participou quando viveu em Nova York, em 1982, por conta da bolsa da Guggenheim Foundation, com artistas como o mexicano Felipe Ehrenberg e o conceitual americano Ken Friedman, seu parceiro da memorável “Performance para um Cachorro”. Ele enxerga poesia em tudo e vê a possibilidade de reinventar qualquer objeto que encontra. Impressiona sua capacidade de subverter a função inicial das coisas e os nomes que damos a elas, assim como sua habilidade em deslocar objetos de seus ambientes originais gerando um estranhamento que, no limite, nos faz refletir sobre a vida.
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Em 1986, fui à Exposição Internacional de Esculturas Efêmeras, organizada ao ar livre no Parque do Cocó pelo escultor cearense Sérvulo Esmeraldo, para convidar Krajcberg, um dos participantes, a expor em minha galeria. Lá conheci Bruscky, ele havia montado “Fogueira de Gelo”, uma grande escultura vertical de blocos de gelo industrial sobrepostos, que o calor de Fortaleza fazia gotejar – como lágrimas – conforme a premissa poética da mostra. Achei genial. Nesta época, ele quase não expunha, preferia viver à margem do mercado de arte com o salário de funcionário de um hospital no Recife onde era responsável pela máquina xerox da instituição. Foi a maneira que encontrou de ter uma copiadora (de graça) à sua disposição para dar continuidade a seu trabalho pioneiro em Arte Postal (Arte Correio ou Mail Art) e assimilar todas as possibilidades da fotocopiadora: “Quando o artista trabalha com novas tecnologias, tem que dissecar a máquina, como um estudante de medicina disseca um cadáver”.
Desde os anos 1970, Bruscky já trocava conceitos/informações através da Arte Postal, com a turma do Fluxus e do grupo japonês Gutai, como Shozo Shimamoto e Saburo Murakami, criando arte em trânsito, transnacional, e depois com a Fax Art, a TeleArte, a arte em classificados de jornais, a Email Art, etc.. “Agradeço sempre às máquinas pelas parcerias criadoras” é outra de suas máximas sobre as coautoras de seus projetos que participam de exposições como “Art Is our Last Hope” (2013) no Bronx Museum em Nova York, na mostra solo “Paulo Bruscky” (2014) no MAM em São Paulo, bem como na Bienal de Veneza e em quatro edições da Bienal de São Paulo. Na 26ª Bienal Internacional de São Paulo, em 2004, seu ateliê de Recife foi remontado em uma sala especial com parte dos 70 mil itens, que compunham (naquela época) seu acervo particular de obras conceituais nos materiais mais diversos: cartas, carimbos, postais, catálogos, folders, convites, livros etc..
Durante a montagem, em vez de dormir no hotel, ele preferia passar as noites em sua sala da Bienal, tão acostumado com a convivência diária de sua obra por todos os cantos de sua casa-ateliê. Ao se tornar artista da nossa galeria, minha primeira providência foi comprar uma copiadora para sua filha Raissa catalogar o gigantesco acervo. Quando achávamos que a incumbência chegara ao fim surgiam mais obras embaixo da cama, debaixo da geladeira. Para ele, arte é um eterno work in progress, a Última Esperança, como escreve assim mesmo em maiúscula.
Além de um questionador nato, a inteligência de seu trabalho ultrapassa fronteiras, não só as físicas (como a Arte Correio que circulou por todo o mundo mesmo durante os anos mais duros da ditadura militar no Brasil), mas também as próprias fronteiras da arte. Daí ser tão difícil categorizar sua obra: um objeto vira performance, que vira foto, que vira colagem, que vira xerox, que vira fax, que vira um envelope enviado para o outro lado do mundo, que vira uma corrente de mensagens trocadas com outros artistas, que viram novas ideias, que voltam a ser performance, que vira vídeo e por aí vai.
Aprendi com Bruscky que subverter o cotidiano com humor torna nosso dia a dia mais sedento por Poesia. Esse encantamento que ele tem com as coisas mais simples faz lembrar que estamos vivos e que a vida deve ser enxergada e vivida a cada minuto, percebida em cada uma de nossas ações, em cada Palavra.
Com colaboração de Cynthia Garcia, historiadora de arte ([email protected])
Nara Roesler fundou a Galeria Nara Roesler em 1989. Com a sociedade de seus filhos Alexandre e Daniel, a galeria em São Paulo, uma das mais expressivas do mercado, ampliou a atuação inaugurando no Rio de Janeiro, em 2014, e no ano seguinte em Nova York.
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