Desta vez falarei sobre um importante artista contemporâneo pernambucano como eu. “Hotel Solidão”, que exibimos recentemente em nossa galeria no Chelsea, em Nova York, reúne trabalhos de diferentes épocas de Marcelo Silveira e, sob vários aspectos, cristaliza pontos de convergência do processo criativo deste artista que cria assemblages orgânicas e esculturas articuladas. Embora sua obra seja geralmente classificada como escultura, uma das principais características de sua narrativa é esgarçar as fronteiras do objeto esculpido com uma linguagem que se origina da paixão e do respeito que tem pelas coisas de sua terra. A exposição teve curadoria do também pernambucano Moacir dos Anjos (curador da 29ª Bienal de São Paulo, do Pavilhão Brasileiro na 54ª Bienal de Veneza, etc.), que assim descreve no catálogo o processo pelo qual passam as esculturas de Silveira, sejam elas de ar, de piso ou de parede: “(…) são peças feitas com pedaços de madeira que, após cortados e lixados, são encaixados, uns nos outros, por meio de cavas e pinos (…)”.
Nascido em família de donos de engenho de cana de açúcar em Gravatá, Silveira de criança se acostumou com o jeito do povo da região se referir a ele: “especialista em coisas inúteis”. Um dia descobriu um cemitério de cajacatingas e começou aí sua mania de “colecionar” partes de troncos e raízes da árvore, levado por questões que só o coração e arte explicam. Não tinha ideia que mais tarde esta madeira rubra, perfumada, típica da Mata Atlântica, de nome tupi-guarani, também chamada caierana, cajá-catinga ou canjerana, seria central na trajetória artística que trilharia a partir de meados dos anos 80.
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Mas os fragmentos da cajacatinga que fascinam Silveira são apenas aqueles calcinados pelas queimadas, o que eleva sua arte ao patamar da sustentabilidade pela sobrevida que dá aos restos carbonizados da árvore de porte majestoso que pode chegar a 20 metros de altura e viver até 300 anos. No atelier o artista dedica horas desbastando as peças para retirar as camadas queimadas até chegar à medula da madeira, intocada pela ação do fogo da caatinga, sempre forjando cada peça sem violentar a forma original, respeitando sua essência. O processo final se resume em lixar e polir com cera de abelha obtendo, assim, uma superfície sedosa, de toque macio.
Como o próprio Silveira define: “É criar beleza do improvável”. A série ‘Aéreas’ de esculturas suspensas, flutuantes, presas ao teto por fios, transmitem a leveza de um traço fugaz que dança no ar. Outra série suspensa é a ‘Pêndulo’, composta de grandes cabaças penduradas por um fio, mas quando a cabaça é apoiada no chão, o artista consegue ver nela um caráter de instrumento musical e batizou esta versão de ‘Sonora’. Na série ‘De natureza viva’ as peças mostram rendilhados de incisões florais na pele da madeira à maneira de uma delicada tatuagem.
Em ‘Manuais de Liêdo’ o caminho é outro. Após trabalhar cada peça, Silveira pede ajuda ao fogo utilizando letras de ferro quente para gravar frases na superfície da cajacatinga polida, que assim renasce como suporte para uma discussão sobre o trabalho artesanal versus o intelectual. Na série ‘Peles’, o acaso foi determinante. Essas peças estavam jogadas em um canto do ateliê, não se encaixavam de maneira nenhuma até que, pouco a pouco, elas mesmas se encontraram umas nas outras, resultando, por fim, em conjuntos articulados harmoniosos.
Encerro com a visão poética desse artista de fenomenal brasilidade: “(…) você mostra-se frágil, mas não sem alma. É o seu tronco oco, aparentemente sem utilidade, que vai dar vida às minhas primeiras experiências tridimensionais. Cajacatinga, você já não é árvore. Você é arte!”
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Com colaboração de Cynthia Garcia, historiadora de arte [email protected]
Nara Roesler fundou a Galeria Nara Roesler em 1989. Com a sociedade de seus filhos Alexandre e Daniel, a galeria em São Paulo, uma das mais expressivas do mercado, ampliou a atuação inaugurando no Rio de Janeiro, em 2014, e no ano seguinte em Nova York.
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