
“A Netflix venceu a guerra do streaming. Caso encerrado”, escreveu o analista Robert Fishman em um relatório da Moffett Nathanson publicado sobre a recente divulgação de resultados da empresa. “Mas para onde a companhia vai a partir daqui? Quanto espaço ainda há para crescer?”
Desde novembro de 2021, a Netflix, que recentemente ultrapassou a marca de 300 milhões de assinantes no mundo, tenta convencer usuários, investidores e desenvolvedores de que uma das respostas para essas perguntas pode estar nos jogos.
A empresa colocou dinheiro de verdade nessa aposta. Até o outono de 2023, a Netflix já havia investido US$ 1 bilhão no setor de games, adquirindo quatro pequenos estúdios de desenvolvimento, construindo outros dois na Califórnia e em Helsinque, na Finlândia, e publicando dezenas de atividades para celulares.
Analistas acreditam que a empresa gastou mais de US$ 1 bilhão apenas em 2024, aumentando sua oferta para 140 jogos disponíveis para qualquer assinante da plataforma, todos sem anúncios ou vendas dentro dos aplicativos.
No entanto, ganhar espaço no mercado de games é um desafio. O portfólio de jogos para dispositivos móveis da Netflix já acumulou 192 milhões de downloads, segundo a provedora de dados Apptopia, mas o número de usuários ativos diariamente gira em torno de 1,1 milhão — uma fração do volume de concorrentes no setor e um percentual ainda menor em relação à base total de assinantes.
“Ainda não somos a Netflix dos games”, disse Alain Tascan, presidente da divisão de jogos da empresa durante sua apresentação na Game Developers Conference, em São Francisco. “Mas é exatamente para onde estamos indo.”
Tascan chegou recentemente à Netflix, assumiu o cargo em julho de 2024, substituindo o primeiro chefe da divisão, Mike Verdu. Sob sua liderança, a empresa tem reformulado sua estratégia para games, deixando de lado a concorrência direta com grandes desenvolvedoras e adotando um papel mais complementar à sua principal oferta como produtora e distribuidora de conteúdos audiovisuais.
A partir de agora, a Netflix Games focará no desenvolvimento de jogos que possam ser jogados diretamente no aplicativo em TVs conectadas — onde está 70% da audiência da plataforma — e o celular servirá como controle remoto. A empresa também quer criar atividades casuais para festas, algo que possa “substituir a noite de jogos em família” e ampliar sua oferta para crianças pequenas, que, segundo Tascan, representam 15% do tempo de exibição da Netflix em conteúdos lineares.
Além disso, pretende desenvolver mais “experiências interativas” que prolonguem a vida útil de franquias populares, como já fez com Round 6 e Brincando com Fogo.
Essa estratégia é bem diferente da tradicional ideia de “Netflix dos games”, na qual startups como Blacknut e Shadow, além de gigantes da tecnologia como Google (Stadia), Apple (Arcade) e Microsoft (Xbox Game Pass), criaram bibliotecas de jogos baseadas na nuvem vendidas por assinatura. O Google encerrou o Stadia em 2023 devido à falta de interesse dos usuários. Apple e Microsoft tiveram sucesso (respectivamente no mobile e nos consoles), mas principalmente como marketplaces de conteúdo de terceiros, e não como plataformas de criação original.
A mudança de rumo da Netflix também parece afastá-la da corrida para criar o próximo grande fenômeno dos games, como Fortnite ou Call of Duty: Warzone. O primeiro indício disso veio em outubro, quando a empresa demitiu dezenas de funcionários e fechou seu estúdio na Califórnia, que estava focado em projetos de alto orçamento — antes mesmo de lançar um único jogo.
“A Netflix não deveria tentar ser algo que não é”, diz Jason Chapman, cofundador e sócio-gerente do fundo de investimentos em games Konvoy Ventures. “Eles não são uma produtora de conteúdo AAA, mas deveriam continuar apostando na interatividade.”
A transição da Netflix de um modelo de entretenimento linear e passivo para experiências mais interativas faz muito sentido, pelo menos na teoria. A indústria de games, avaliada em US$ 180 bilhões, já supera de longe os setores de cinema e televisão de Hollywood, estimados em US$ 100 bilhões anuais, e se tornou o passatempo preferido das novas gerações. Já em 2019, o co-CEO da Netflix, Ted Sarandos, citava Fortnite como um dos maiores concorrentes da empresa pela atenção do público — o que, sem dúvida, influenciou a contratação de Tascan, ex-executivo da Epic Games que trabalhou justamente em Fortnite.
Porém, as primeiras iniciativas da Netflix em conteúdo interativo — como o ambicioso Black Mirror: Bandersnatch — não tiveram grande adesão. Em novembro, a empresa anunciou que removeria dezenas de títulos desse formato do catálogo, deixando apenas quatro disponíveis, incluindo Bandersnatch.
Até agora, a Netflix ainda não criou um jogo ou experiência interativa que conquistasse e mantivesse o interesse do grande público por um longo período. Mesmo Squid Game: Unleashed, um dos maiores sucessos da plataforma, alcançou seis milhões de downloads no lançamento, atingiu o pico de quase 13 milhões em janeiro, mas despencou para 700 mil em fevereiro e pouco mais de 100 mil em março, segundo a Apptopia. Esse jogo, vale notar, foi o primeiro a não exigir uma assinatura da Netflix para ser jogado.
A resposta da Netflix, por ora, tem sido investir em licenciamento. Em dezembro de 2023, a empresa anunciou a oferta de três títulos antigos da franquia Grand Theft Auto para assinantes. Até hoje, GTA: San Andreas segue como o jogo mais baixado e jogado da plataforma.
Internamente, a empresa afirma ter seu próprio critério para medir o sucesso dos games, levando em conta fatores como aquisição e retenção de assinantes, além da capacidade de direcionar a audiência de volta para seu conteúdo linear. Com Squid Game: Unleashed, por exemplo, os desenvolvedores testaram um recurso de “assistir e jogar”, no qual os jogadores desbloqueavam recompensas ao assistir às temporadas um e dois da série.
“Os efeitos ainda são pequenos, mas, sinceramente, nosso investimento em games também é relativamente modesto dentro do nosso orçamento geral de conteúdo”, disse Greg Peters, co-CEO da Netflix, na conferência de resultados da empresa em janeiro. “E vamos continuar disciplinados ao expandir esse orçamento conforme percebemos benefícios concretos para os assinantes.”
O que a Netflix Games tem a seu favor são tempo e recursos para experimentar. A empresa aumentou sua receita em 16% em 2024, gerando US$ 10 bilhões em lucro operacional e quase US$ 7 bilhões em fluxo de caixa livre.
Na recente análise da Moffett Nathanson, a projeção apontou crescimento contínuo da receita, margens mais robustas e um preço das ações mais alto — sem sequer mencionar a divisão de games no relatório de 26 páginas.
“Acredito que games sejam um foco central para a Netflix? Absolutamente não”, diz Chapman. “Mas isso também não é algo descartável ou um tiro no escuro. Eles já investiram muito dinheiro nisso.”
No futuro próximo, Chapman prevê que a Netflix implementará estratégias de monetização, como compras dentro dos aplicativos e anúncios — aproveitando a experiência adquirida com sua incursão na publicidade linear em 2024 —, o que ajudaria a esclarecer a viabilidade da divisão de games. Até lá, a empresa pode continuar explorando seu espaço no mercado.
Tascan reconhece que essa é uma posição privilegiada em meio a uma indústria de games que enfrentou demissões em massa, cortes de orçamento e fechamentos de estúdios em 2024. “Às vezes eu digo à equipe: ‘Temos um bilhete dourado’”, disse ele. “O que vamos fazer com isso?”