Entre os dias 28 setembro e 2 de outubro de 2020, Sarah Santiloni Cury, aluna de pós-graduação em Ciências Biológicas do Instituto de Biociências da Unesp de Botucatu (IBB), vivenciou um momento especial em sua carreira: o recebimento do prêmio de melhor apresentação oral na terceira edição da “Palestra Multidisciplinar Internacional sobre Biologia de Sistemas Computacionais do Câncer: Promessas da Inteligência Artificial”.
Em evento online organizado pela Organização Europeia de Biologia Molecular (European Molecular Biology Organization – EMBO) e pela Federação das Sociedades Bioquímicas Europeias (Federation of European Biochemical Societies – FEBS) por conta da pandemia do novo coronavírus, Sarah foi reconhecida pela abordagem de inteligência artificial e machine learning na pesquisa sobre câncer de pulmão que vêm desenvolvendo desde 2016.
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De um insight que surgiu ainda em seu período de mestrado, a doutoranda e seu orientador, Robson Francisco Carvalho, do Departamento de Biologia Estrutural do IBB/UNESP, decidiram iniciar um trabalho de pesquisa para identificar as complexidades da caquexia, uma síndrome que causa perda muscular em pacientes com câncer ou alguma deficiência no coração. Com foco no câncer de pulmão, já que a caquexia pode gerar dificuldade para respirar, o principal objetivo do estudo é conseguir diagnósticos precoces. Isso porque quanto antes se inicia o tratamento, mais chances o paciente tem de lidar com a doença.
Com sucesso, os pesquisadores conseguiram alcançar dados notáveis, inclusive encontrando células que, de alguma forma, correlacionam a caquexia com os tumores pulmonares, o que abre espaço para mais pesquisas sobre o assunto. Premiado na categoria “Doutorado”, o trabalho de Sarah foi batizado de “Um Novo Modelo Preditivo Classifica a Caquexia em Pacientes com Câncer de Pulmão para a Caracterização do Microambiente Tumoral” (ou “A Predictive Model to Classify Lung Cancer Cachexia for the Identification of Disease-Mediators, em inglês).
A FORBES Brasil conversou com a pesquisadora e seu orientador para entender mais sobre o projeto e seus impactos na sociedade. Confira na entrevista abaixo:
Forbes: Como vocês chegaram na ideia do projeto?
Robson Carvalho: Nosso laboratório sempre foi voltado para análise de doenças musculares, e a caquexia é uma síndrome que afeta principalmente o músculo esquelético, fazendo com que os pacientes percam muita massa magra. A gente estudava mais a caquexia associada a doenças cardíacas. Com o tempo, como tínhamos colegas trabalhando com câncer, percebemos que também era uma síndrome muito importante em vários tipos de tumores, então adaptamos a nossa linha de pesquisa para caquexia associada ao câncer de pulmão. Isso tem uma série de motivos, como a relevância da doença e o número de dados disponíveis publicamente para acesso livre.
A grande maioria dos pacientes com câncer ou tem ou vai adquirir caquexia: é uma síndrome que está presente em mais de 50% dos pacientes e é responsável direta por mais de 20% das mortes pela doença. Os pacientes caquéticos tem uma menor sobrevida e uma menor resposta aos tratamentos radio ou quimioterápicos.
Sarah Cury: A caquexia atua diretamente na massa muscular dos pacientes, então eles desenvolvem uma atrofia muscular bastante severa. Imagine, nosso coração é um músculo e nossa respiração é feita pelos nossos músculos intercostais. Por conta disso, as pessoas que desenvolvem essa síndrome acabam ficando bastante enfraquecidas, até mesmo para respirar. Elas podem falecer tanto das complicações do câncer quanto pela fraqueza muscular causada pela caquexia.
F: O principal objetivo do projeto é a detecção prévia então, certo?
RC: De certa forma sim. Geralmente o paciente chega na consulta relatando uma perda de peso e a família não sabe qual a causa. Nesse momento, ele já está em uma fase avançada da caquexia. Por isso estamos buscando ferramentas para tentar detectar o mais cedo possível e ter uma chance de intervenção maior. O que a Sarah faz é olhar a muscularidade dos pacientes a partir das tomografias e, em vez de enxergar apenas o tumor, foca na massa muscular. Ela determina a muscularidade do paciente.
Mesmo o paciente sendo obeso, por exemplo, ele pode ter uma baixa muscularidade. Pode até estar feliz por estar emagrecendo, mas, na verdade, está perdendo massa magra. Com isso, a Sarah consegue correlacionar a muscularidade com a sobrevida do paciente ou com o microambiente do tumor, um outro aspecto bem relevante do estudo – olhar para o tumor desse paciente com baixa muscularidade e comparar com o de um paciente que tenha alta muscularidade. Nessa comparação, a gente consegue identificar moléculas que atuam de maneiras distintas nas duas situações, obtendo uma chance maior de intervenção.
F: E como a inteligência artificial trabalha a favor de vocês nesse projeto?
SC: Nós trabalhamos com uma quantidade gigantesca de dados públicos e a inteligência artificial auxilia na hora de tentar encontrar, dentro dessa gama de informações, o que é importante para a pesquisa. Neste trabalho em particular, ela tem ajudado a montar o nosso modelo de predição. Obtém todas as características clínicas dos pacientes – a muscularidade, o estágio do tumor, a sobrevida – e os classifica em caquéticos ou não caquéticos a partir dos dados. Se fossemos fazer isso à mão, ia dar muito trabalho, então jogamos todos esses dados e o próprio computador encontra o que é relevante para o desfecho daquele paciente.
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RC: É o que o GPS faz, por exemplo, quando você coloca o endereço que quer seguir e ele encontra um percurso mais rápido. Quando falamos da nossa pesquisa, queremos encontrar quais são os parâmetros que mais facilmente detectam o paciente com caquexia no câncer de pulmão. Que conjunto de dados vai me dar essa informação de uma forma mais precisa? Então podemos dizer que não é diferente do que a gente faz quando liga o Waze. É um aprendizado de máquinas.
F: É um trabalho em conjunto então, com inteligência humana e artificial.
SC: Sim. Nós, como pesquisadores, entramos com nosso conhecimento prévio de biologia, e o computador trabalha com um dado robusto que nós demoraríamos muito mais tempo para organizar.
F: E como funciona esse trabalho com os dados públicos?
SC: O nosso estudo é focado em dados públicos. Várias unidades de saúde fazem análises de tomografia e deixam disponíveis em bancos de dados para que pessoas de qualquer lugar do mundo possam acessar e trabalhar a partir daquelas informações. É o que hoje chamamos de Open Science, trabalhar os nossos dados e deixá-los disponíveis para que outros pesquisadores também possam usá-los. É uma reciclagem de dados que temos feito.
RC: Trabalhamos com dados de grande instituições, que têm uma estrutura de pesquisa que, muitas vezes, não encontramos no Brasil. A partir disso, conseguimos trabalhar com dados de alta qualidade e isso torna o estudo bem interessante. Essa questão do Open Science ficou bastante comum durante a Covid-19 também. Tudo que é gerado é colocado à disposição de pesquisadores do mundo todo para que várias pessoas possam explorar aquele conjunto de dados e tentar extrair o maior número de informações possível. Um dado só passa a ser uma informação a partir do momento que você dá um sentido a ele.
F: Quais são os próximos passos do estudo?
SC: Queremos validar todos esses achados da inteligência artificial em um conjunto de dados de pacientes aqui do Brasil. O conjunto que geralmente usamos vem de outros países, principalmente dos Estados Unidos. É legal entender se os pacientes aqui do Brasil também podem ser classificados e diagnosticados da mesma maneira como a estamos trabalhando.
RC: Com esse trabalho, nós chegamos em um tipo específico de células que podem estar relacionadas à síndrome. Seria um alvo terapêutico, não sabemos se para doença ou para a síndrome. A única certeza é que tem o potencial de estar relacionado com a caquexia. Provavelmente não é ao acaso que um paciente que tem baixa muscularidade tem um tipo específico enriquecido de células dentro do tumor. Então, o microambiente tumoral é complexo e estamos bastante empolgados para validar e comprovar esse resultado como um dado consistente e ajudar no tratamento.
F: Como foi participar de uma premiação internacional nessa realidade online que estamos vivendo com a pandemia?
SC: Acho que eu só consegui participar por ser online. Geralmente ele acontece na Europa, o que deixa tudo mais difícil. Esse ano, em especial, por conta de ser totalmente virtual, eles abriram uma chamada para alunos de doutorado do mundo todo aplicarem suas pesquisas de maneira gratuita. Eu apliquei e fui selecionada. A partir disso, eles escolheram alguns trabalhos para apresentar no programa oficial do curso e eu fui selecionada novamente. É claro que não é a mesma coisa que estar face a face com os professores, mas deu para aproveitar muito.
RC: Também ficamos felizes porque mostrou que estamos no caminho certo. Estamos fazendo uma ciência brasileira de qualidade, competitiva e com vários laboratórios no mundo todo. Dá um gás muito grande para continuarmos trabalhando nessa linha de machine learning e análises de variáveis clínicas e moleculares. Uma das próximas etapas é correlacionar variáveis moleculares com variáveis clínicas para identificar biomarcadores da síndrome, muito relevante para o combate ao câncer de pulmão.
F: Qual o significado dessa conquista para o campo da ciência?
SC: Toda razão por trás desse longo estudo, o que move a gente, é fazer a diferença. Pode não ser agora, pode demorar um tempo, podem vir outros pesquisadores para completar a pesquisa que nós começamos. Mas, um dia, o projeto que começamos vai ter um impacto real na vida das pessoas. Outra questão muito importante é mostrar essa relevância da universidade para a geração de conhecimento. As universidades têm um potencial enorme para o campo científico.
RC: Não sei se um dia nós – eu e a Sarah – vamos encontrar a cura do câncer, mas contribuir com um tijolinho nesse combate já é um passo muito importante.
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