A revelação pela Americanas de inconsistências contábeis de cerca de R$ 20 bilhões mobilizou especialistas em contabilidade que tentam entender como um rombo desse tamanho passou despercebido em uma das maiores empresas de varejo da América Latina.
As ações da Americanas (AMER3) desabaram 77% ontem (12) após a varejista afirmar que detectou problemas na contabilização de operações com fornecedores e bancos. Sergio Rial, que havia assumido a presidência da empresa apenas nove dias antes, renunciou ao cargo, junto com o diretor de relações com investidores, André Covre. Eles tinham substituído Miguel Gutierrez, que estava há 20 anos no comando do grupo.
Especialistas em contabilidade ouvidos pela Reuters mantêm algum ceticismo frente as explicações divulgadas até agora e apontaram falta de detalhamento no balanço da empresa, ainda que tenham destacado a necessidade da divulgação de mais dados sobre as inconsistências, inclusive com relação à origem dos fatos.
“O que chama muito a atenção é o tamanho do negócio. R$ 20 bilhões não é fácil de esconder”, disse Eric Barreto, professor do Insper. “Está todo mundo falando sobre isso…principalmente a gente que trabalha com a área”, afirmou ele, doutor em ciências contábeis, citando grupos de mensagem com auditores.
Rial disse a investidores em evento fechado na quinta-feira que operações de “risco sacado”, quando uma empresa contrata um banco para realizar a antecipação de recebíveis a fornecedor, foram registradas incorretamente pela Americanas por anos na conta de fornecedores quando deveriam ter sido consideradas dívidas com instituições financeiras.
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Uma das dúvidas levantadas pelos contadores é se os R$ 20 bilhões e os juros dessas operações de risco sacado estão integralmente no balanço da varejista ou não. Isso porque o balanço patrimonial da Americanas referente ao terceiro trimestre –a data-base do valor de 20 bilhões é o final de setembro– mostra um passivo com fornecedores de apenas cerca de R$ 5 bilhões.
Rial disse, observando sua curta permanência na empresa, que até onde ele sabe, todo o valor divulgado está integralmente no balanço da Americanas. Porém, ele afirmou que a discrepância ocorre pois a quitação de juros das operações em questão, além de outros mecanismos redutores, foi usada, em sua visão de modo incorreto, para diminuir o passivo de fornecedores.
Em meio à falta de detalhes e ao caráter ainda preliminar da apuração, a explicação não parece ter ganhado totalmente os especialistas, que aguardam por mais detalhes. “Não sabemos até que ponto esses juros foram registrados ou não”, afirmou Ahmed El Khatib, coordenador do Instituto de Finanças da Fecap.
“Se as operações estão dentro do balanço, é um problema de apresentação. Mas eu não sei se elas estão totalmente dentro do balanço”, disse Barreto.
“NÃO É PRETO NO BRANCO”
As operações de “risco sacado” são comumente utilizadas por empresas em relações com fornecedores, mas não há uma norma contábil sobre como registrá-las, disseram os especialistas. “Não é preto no branco”, resume o professor de contabilidade Fernando Dal-Ri Murcia, da FEA-USP. O prazo, a intenção, e a existência ou não de juros são alguns dos fatores que podem determinar se uma transação do tipo é principalmente comercial, e portanto entra na linha de fornecedores, ou financeira, devendo entrar como dívida bancária, afirmou.
A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) alertou em ofícios circulares ao longo dos anos para questão. O órgão abriu pelo menos dois processos para investigar a Americanas após a revelação do caso na quarta-feira.
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Enquanto isso, a Abradin, associação de acionistas minoritários de empresas, denunciou o caso à CVM pedindo investigação sobre a empresa de auditoria da Americanas, a PwC. Procurada na quinta-feira, a PwC, não comentou.
Essa reclassificação contábil é importante, por exemplo, porque em contratos de financiamento em que o valor da dívida da empresa ultrapassa um nível combinado, o credor tem direito a renegociar os termos. Analistas da XP liderados por Danniela Eiger escreveram que a Americanas tem “parte pequena” de seus contratos sujeitos a essas condições, mas que ainda assim o limite poderia ser ultrapassado a depender do ajuste.
FALTA DE DETALHAMENTO PELA AMERICANAS
Outro ponto levantado pelos especialistas em contabilidade é a forma de divulgação da operação pela varejista. “É normal que as empresas apresentarem em notas explicativas a existência dessas demonstrações”, disse Khatib, da Fecap.
O balanço do Magazine Luiza, por exemplo, diz que em seu caso os riscos sacados estão na linha de fornecedores, porque não alteram os prazos, os preços e as condições estabelecidas com os fornecedores. A Via, que acabou publicando esclarecimentos ao mercado após investidores ficarem preocupados com possível contágio das revelações da Americanas, coloca essas transações em uma rúbrica própria chamada “fornecedores convênio”.
“Quando a gente procura nos balanços (da Americanas) não encontramos essas palavras ‘forfait’, ‘confirming’, ‘risco sacado'”, disse Barreto, do Insper, em referência a outros termos como a operação é conhecida.
Rial afirmou que a varejista precisará de um aumento de capital significativo diante do potencial aumento das despesas financeiras, e que até “onde pôde ver” “todas as dívidas foram pagas, os fornecedores foram pagos” e os impostos também. Impactos no caixa não serão vistos no curto prazo, a depender da postura dos bancos credores, disse o executivo.
A empresa anunciou um comitê independente para apurar suas contas, mas não deu qualquer detalhe sobre prazos.