Em 2021, Charlie Javice, a jovem fundadora e ex-CEO da Frank, deu um golpe de mestre: vendeu sua fintech para o JP Morgan Chase por US$ 175 milhões (R$ 910,6 milhões). “Não é todo dia que uma empreendedora consegue seu começo feliz de conto de fadas (não o final!)”, escreveu ela no LinkedIn na época.
Pouco mais de um ano depois, o executivo-chefe do JP Morgan, Jamie Dimon, está sob ataque por causa de um processo de devida diligência que parece ter deixado passar o que o banco agora afirma ser um grande sinal de alerta sobre os negócios de Javice: um grande número de clientes falsos. O JP Morgan está processando Javice por supostamente enganá-lo para comprar a fintech – que promete simplificar o processo de solicitação de auxílio financeiro estudantil – criando uma lista de mais de 4 milhões de usuários em idade universitária que não existem.
Em uma ação movida no final do ano passado no Tribunal Distrital dos EUA em Delaware, o gigante financeiro alega que Javice contou com a ajuda de um professor de ciência de dados para gerar uma enorme lista de usuários falsos da Frank para impressionar o JP Morgan, quando, na realidade, menos de 300 mil alunos se inscreveram. Javice, que se tornou diretora administrativa do JP Morgan como parte da aquisição, foi demitida e também está processando o banco. Sua ação afirma que a empresa “fabricou uma rescisão por justa causa de má-fé” e “trabalhou para forçar a Sra. Javice a sair” e negar seus milhões de indenização.
Enquanto isso, bancos e investidores lutam para se afastar da empreendedora de 30 anos. Depois que o JP Morgan fechou o site da Frank na semana passada, outros seguiram o exemplo: LionTree, o banco de investimentos que deu início ao negócio, tirou do ar seu podcast com Javice. A Ground Up Ventures, que divulgou a empresa de Javice tanto como sua primeira captação como sua primeira saída, arrancou a Frank de seu site e fez sumir uma postagem do Medium explicando por que a apoiava. O ex-alto escalão da Thiel Foundation negou publicamente que a fundadora havia sido premiada e tinha recusado uma cobiçada bolsa.
Acompanhe em primeira mão o conteúdo do Forbes Money no Telegram
A análise de documentos governamentais e registros públicos; revisões de horas de entrevistas gravadas e impressas; e entrevistas com mais de uma dúzia de pessoas que interagiram com Javice profissional ou pessoalmente revelam que ela é uma empreendedora com uma visão grandiosa de sucesso e uma postura de fazer acontecer, não importa o custo. Poucos parecem surpresos por ela ter acabado nessa confusão.
“Isso é exatamente o que ela faz, e agora [ela] foi pega por isso”, disse uma pessoa próxima com Charlie Javice à Forbes.
A pessoa, que pediu anonimato por medo de represálias, lembrou-se de ter participado das primeiras reuniões com investidores com Javice antes de qualquer produto ser construído e ouvi-la dizer a parceiros em potencial que o serviço já tinha milhares de alunos inscritos. Uma segunda pessoa próxima a Javice também relembrou os exageros dela na época. “Todos nós olhamos uns para os outros com cara de: Isso é loucura. Você não pode estar dizendo essas coisas”, disse uma das pessoas à Forbes. “Todos nós entendemos a arte da venda, mas algumas das coisas que estavam sendo ditas eram imperdoavelmente imprecisas.”
Essa pessoa disse à Forbes que, quando a equipe levou a Javice suas preocupações, ela os dispensou. “A resposta dela sempre foi: ‘Escute, esses velhos não entendem, é assim que funciona, você finge até conseguir (you fake it ‘til you make it)‘”.
Durante um podcast de 2021, Javice descreveu sua abordagem: “Sendo uma fundadora, estou obviamente inclinada a ser excessivamente otimista. Às vezes isso funciona a seu favor, às vezes não”, disse ela ao apresentador do Planet Economics.
“E definitivamente houve momentos em que pintei uma imagem mais otimista do que as coisas realmente eram”.
Charlie Javice, por meio de seu advogado, Alex Spiro, não respondeu aos repetidos pedidos de comentários e a uma lista detalhada de perguntas da Forbes. O porta-voz do JP Morgan, Pablo Rodriguez, disse em um comunicado que as reivindicações da empresa contra a fundadora “estão definidas em nossa ação, juntamente com os principais fatos” e “qualquer disputa será resolvida com o processo legal”. LionTree e Ground Up não responderam aos pedidos de comentários.
>>Leia também: JP Morgan diz que foi enganado por CEO de fintech com clientes falsos
PoverUp foi o primeiro sinal
Javice, que fez parte da lista Forbes 30 Under 30 em 2019, cresceu no rico condado de Westchester, em Nova York, onde andava a cavalo e frequentou a Escola Franco-Americana de Nova York. Seu pai trabalhava em um fundo de hedge; sua mãe é coach e ex-professora. Seu irmão é CDO (chief digital officer) da Popeyes. Javice foi admitida cedo na Wharton, escola de administração da Universidade da Pensilvânia, onde se formou em apenas três anos e estudou finanças e direito.
Um ex-colega de classe que conhecia Javice socialmente na Wharton disse que “ela era realmente muito legal”, mas algo parecia errado, como se ela frequentemente “jogasse nomes de pessoas importantes e tentasse apresentar uma imagem muito maior do que era”.
Em 2011, como caloura da faculdade, Charlie Javice fundou o PoverUp. Ela esperava construir um movimento estudantil de base e uma plataforma online que usaria microfinanças para o bem social e esforços “para acabar com a pobreza com o clique de um mouse”, de acordo com o seu LinkedIn. (O site do PoverUp está disponível desde pelo menos 2009, quando Javice ainda estava no ensino médio).
A PoverUp buscou doações e possíveis parcerias com investidores, incubadoras sociais e escolas de prestígio, incluindo Harvard e Chicago Booth. “Charlie tem vendido a ideia de forma eficaz recentemente e temos algumas oportunidades potenciais novas e empolgantes em nosso caminho”, escreveu o então o COO do PoverUp para um mailing quando as coisas cresceram em 2012.
De acordo com dezenas de e-mails internos do PoverUp analisados pela Forbes, os líderes da Javice e da PoverUp alegaram que ela foi jantar em Nova York com o investidor de impacto Bobby Turner; reuniu-se na Filadélfia com o cofundador da First Round Capital, Josh Kopelman; e visitou o Harvard Leadership Institute. (Ninguém mencionado nos e-mails respondeu aos pedidos de comentários.) Ela também apareceu em artigos em veículos como Fast Company, que incluiu Javice na sua lista de pessoas mais criativas.
O burburinho em torno do PoverUp também rendeu a Javice uma entrevista em 2012 para o cobiçado Thiel Fellowship, um programa de dois anos que concede aos alunos uma bolsa de US$ 100 mil para construir um negócio ou realizar um projeto de pesquisa. Javice enfrentou nomes como o futuro cofundador da Figma, Dylan Field, mas “saiu da disputa porque queria continuar na faculdade”, de acordo com um post do Tumblr compartilhado por sua equipe da PoverUp. O sócio da Aleph, Michael Eisenberg, um importante investidor da Frank, também disse em um post do Medium, em 2022, ao comemorar a aquisição do JP Morgan que “ela foi selecionada para ser uma Thiel Fellow, mas recusou”.
Michael Gibson, cofundador do fundo de risco 1517, que anteriormente supervisionava as doações para a Fundação Thiel, tinha uma lembrança diferente de Charlie Javice. “Ela nunca recebeu uma bolsa de estudos e me incomoda que ela diga isso por aí”, disse ele à Forbes. “Por causa de sua personalidade, não confiamos que ela pudesse começar de uma maneira real”.
Pelo menos uma organização de impacto social que foi anunciada como parceira do PoverUp disse à Forbes que não eles trabalharam juntos. “O Grameen America não recebeu nenhum financiamento do PoverUp ou de Charlie Javice e vice-versa”, disse o grupo em um e-mail. “Além disso, não há informações sobre essa parceria em nosso sistema”.
Em última análise, de acordo com o advogado de Nova York que ajudou a criar a organização, o PoverUp era uma ideia grandiosa que Javice não poderia executar. Ela era “muito ambiciosa, muito brilhante, muito influente”, disse à Forbes o advogado Howard Finkelstein. Mas o PoverUp “foi uma ideia muito grandiosa e não foi tão longe assim”.
“O futuro das finanças pessoais!”
Depois de se formar na Wharton em 2013, Javice começou a trabalhar no negócio de edtech que se tornou a Frank. A ideia inicial, em 2015, era construir um produto de procura de emprego, então denominado Tapd, que evoluiu para a criação de uma alternativa à pontuação de crédito FICO, que ajuda os credores a decidir se e quanto dinheiro emprestar a possíveis tomadores de empréstimo. Ela rapidamente encontrou um entrave.
“Para garantir a aprovação de conformidade em cada estado para o nosso produto, seria necessário muito mais do que os US$ 10 milhões em seed money (capital semente) que eu buscava na época”, explicou Javice em entrevista à Medium’s Authority Magazine, que desde então foi retirada do ar pelo autor. “Eu demiti todos os meus funcionários – foi a pior coisa que já tive que fazer. Muitos dos meus funcionários eram amigos próximos e até hoje não falam comigo”. Em outra entrevista, ela descreveu ter que dispensar quase uma dúzia de pessoas em junho de 2016, incluindo um cofundador, para recomeçar e mudar o negócio de atender clientes bancários para ajudar estudantes. Em outro, no podcast “Persistence 360”, ela mencionou “navegar com US$ 500 mil no vermelho e precisar gerenciar como pagar as pessoas”.
Pessoas com conhecimento do início da Frank alegaram que a empresa anterior ficou sem dinheiro e Javice parou de pagar seus funcionários. “Virou uma coisa grande”, disse um deles, que afirma ter sentado com ela e dito: “Você está prejudicando a vida das pessoas”. Outro disse à Forbes que era muito difícil obter informações financeiras dela.
Como parte da transição de Javice para a próxima fase do negócio, ela trouxe um novo cofundador e CTO, Adi Omesy, baseado em Israel, em 2016. Mas no ano seguinte, Omesy processou Javice e a empresa por não pagar salários e não cumprir uma suposta promessa de conceder a ele 10% do patrimônio da Frank depois que ele ingressou no negócio. Javice e a Frank foram condenados a pagar US$ 35 mil por um tribunal de Tel Aviv, em junho de 2021, embora ambos neguem qualquer irregularidade. Omesy se recusou a comentar. Javice, por meio de seu advogado, não respondeu às perguntas da Forbes sobre o caso.
Em 2017, Charlie Javice lançou a Frank com um novo foco em melhorar o processo de solicitação de financiamento estudantil e tornar a faculdade mais acessível. “Frank”, como Javice explicou mais tarde, pretendia evocar um tio ou primo confiável a quem você pode pedir conselhos.
“Não há muitos bons atores neste espaço e nós só queríamos defender algo que fosse honesto, que fosse transparente e onde as pessoas pudessem realmente sentir como se tivessem alguém que as protegesse”, disse ela em uma entrevista no YouTube, em 2017, para o profissional de marketing Bill Carmody. “Frank meio que representou isso como um nome, porque significava apenas ‘honesto’”.
As ambições dela em transformar a startup em “uma Amazon para ensino superior” ganharam o apoio do bilionário CEO da Apollo, Marc Rowan, um dos principais investidores da Frank, do fundo americano-israelense Aleph e outras empresas de risco. (Rowan, por meio da Apollo, e Eisenberg, da Aleph, não responderam aos pedidos de comentários.) A empresa acabou convencendo até mesmo o JP Morgan, que adquiriu a Frank por US$ 175 milhões no final de 2021.
Eisenberg, da Aleph, ficou “encantado” com Javice desde o dia em que a conheceu, quando ela tinha apenas 19 anos, durante um café na Grand Central Station, em Nova York. Quando o negócio foi concluído, ele elogiou a maneira como ela “construiu uma marca financeira confiável, causou problemas com o Departamento de Educação dos EUA que resultaram em mudanças políticas importantes para as famílias americanas e escalou a empresa sem medo contra todas as probabilidades”.
Em 2017, o Departamento de Educação acusou a Frank de potencialmente enganar os clientes, fazendo-os acreditar que o aplicativo era filiado ao governo dos Estados Unidos, de acordo com documentos analisados pela Forbes. (Como parte de um acordo de 2018, a Frank foi forçada a mudar seu endereço na web e deixar claro que não era um parceiro oficial do governo.) Javice, por meio de seu advogado, Spiro, não respondeu a um pedido de comentário sobre a acusação. Mas Spiro disse ao Insider que o acordo estava relacionado a “uma disputa de marca registrada sobre um nome comercial. Nada mais”.
Em 2020, depois que membros do Congresso pediram à FTC (a Comissão Federal de Comércio) que investigasse as “práticas enganosas” da Frank – preocupados com o fato de a “Frank estar dando falsas esperanças e confundindo os alunos… [e] pode estar usando os dados coletados de alunos enganados para obter lucro” – a agência enviou à Frank uma carta de advertência, alegando que a empresa poderia estar enganando os alunos sobre o acesso aos fundos de ajuda para o coronavírus. Javice, por meio de seu advogado, não respondeu a um pedido de comentário sobre a carta da FTC.
Outros na indústria da educação também pareciam estar preocupados com a Frank. Um artigo de opinião do New York Times escrito por Charlie Javice em 2017 foi posteriormente corrigido, citando erros na maneira como Javice descreveu o processo de solicitação gratuita de auxílio federal ao estudante que a Frank prometeu tornar menos complicado.
“Suas alegações de que você poderia concluir o FAFSA (sigla em inglês para Auxílio Estudantil Federal) fem quatro ou cinco minutos não eram exatamente verdadeiras”, disse Mark Kantrowitz, especialista em ajuda financeira universitária e colaborador da Forbes, que também tem um site gratuito sobre finanças estudantis. A Frank afirmou em seu próprio marketing que poderia finalizar o FAFSA em sete minutos. “Era um pouco mais rápido porque eles estavam descartando perguntas e o problema é que essas são perguntas importantes para alguns alunos que vão para a faculdade”.
Kantrowitz observou outras preocupações também. O formulário de pedido de auxílio financeiro da Frank eliminou questões cruciais para as determinações de auxílio, e seu serviço de recurso de auxílio financeiro, um recurso pago, incluía apenas informações genéricas sobre os alunos. “Administradores de ajuda financeira compartilharam essas cartas e disseram que isso era ridículo”.
Mesmo assim, Javice havia apresentado a ideia aos investidores – e os investidores ouviram.
“Estou sentada lá fazendo o pitch, e os outros investidores em tecnologia estão olhando para mim como se eu tivesse dez cabeças… e Mark [Rowan] disse, ‘O futuro das finanças pessoais!’”, disse ela à Forbes em uma entrevista inédita para o 30 Under 30 do final de 2018. “Tem sido incrível e vimos altas taxas de aceitação. E, ainda não vimos fraude”.
Charlie Javice criou um castelo de areia
Javice disse na entrevista à Forbes que, no final de 2018, a Frank ajudou 300 mil estudantes a obter US$ 7 bilhões em ajuda financeira, chamando-a de “um novo produto financeiro incrível que está começando a ganhar escala”. No início de 2021, a empresa mudou seu site, alegando que seus 350 mil alunos haviam se tornado 4,25 milhões. E, quando o JP Morgan adquiriu a empresa, no final daquele ano, Javice disse no LinkedIn que Frank havia se tornado “a plataforma de planejamento financeiro universitário líder e de mais rápido crescimento” e ajudado “mais de 5 milhões de estudantes em mais de 6 mil faculdades”.
Esses números crescentes se tornariam centrais para as alegações no processo do JP Morgan contra Charlie Javice e o ex-diretor de crescimento da Frank, Olivier Amar, que também ingressou no banco como parte do negócio. O processo detalha uma suposta disputa por Javice e Amar para fornecer dados de alunos para fazer backup de perguntas da equipe de diligência do JP Morgan. Apenas dois dias depois de receber um pedido de mais informações sobre os supostos 4,25 milhões de clientes do Frank, Javice teria pedido a um professor de ciência de dados para criar uma lista falsa de alunos, usando dados sintéticos, que foi entregue em 5 de agosto de 2021, de acordo com o processo.
O processo também inclui e-mails internos da Frank supostamente enviados a Javice por seu banco de investimentos, LionTree, que a pressionou a esclarecer “dados rotulados incorretamente” que ela havia compartilhado em negociações com um licitante rival. Depois de obter as informações corretas sobre o tráfego de usuários, disse o processo, a empresa se recusou a seguir em frente.
Javice e Amar já foram demitidos do JP Morgan. Charlie Javice agora mora em Miami, onde comprou um imóvel de US$ 1,4 milhão – antes dos 30 anos – no ano em que o JP Morgan adquiriu sua empresa. (Para comprá-lo, ela fez uma hipoteca de US$ 1 milhão com JP Morgan). Quanto a Amar, seu LinkedIn diz que ele está simplesmente “aproveitando o que vem a seguir”.
“[Fundadores de startups] sempre tentam apresentar uma versão da história que pinte a melhor imagem possível do que estamos fazendo em qualquer ponto no tempo – e isso significa que você pode escolher seus pontos no tempo, você pode escolher os dados que você está olhando e pode escolher como enquadrá-lo”, disse à Forbes o ex-colega de classe da Wharton, que também é fundador de uma startup . “Mas você não pode mudar seus dados. Você não pode inventar dados. Você não pode mentir”.