Os R$ 3 bilhões gastos pelos beneficiários do Bolsa Família com apostas e jogos de azar não é a única informação alarmante trazida pela nota técnica divulgada pelo Banco Central. O documento, que analisa os gastos da população brasileira no setor, também aponta que aqueles com mais de 50 anos tendem a gastar, na mediana, R$ 2.500 por mês. O valor é ainda maior entre maiores de 60 anos — R$ 3 mil mensais.
O documento foi divulgado na noite de segunda-feira (23) e revela que pelo menos cerca de 2 milhões de idosos comprometem uma parcela significativa de suas rendas. Segundo o último Boletim Estatístico da Previdência Social, de fevereiro de 2024, o valor médio das aposentadorias urbanas no país é de R$ 1.863,38, e o das rurais, R$ 1.415,06.
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A epidemia de apostas no Brasil vai muito além da predominância dessas empresas como patrocinadoras de clubes de futebol, da publicidade com influenciadores ou da grande frequência de propagandas na televisão. Especialistas consultados pela Forbes Brasil indicam que os números revelam não só a possibilidade de um aumento da desigualdade social no país, mas também um adoecimento mental significativo entre os usuários.
Dados do BC
De acordo com o documento, empresas de jogos de azar e apostas receberam cerca de R$ 21 bilhões apenas em agosto, oriundos de apostadores. Os técnicos do BC apontam que esse número pode estar subestimado, já que contabiliza apenas as transações feitas via Pix, excluindo cartões de crédito e outros tipos de operações bancárias.
A autarquia identificou cerca de 24 milhões de pessoas físicas que realizaram ao menos uma aposta no período analisado. A maioria tem entre 20 e 30 anos, e o valor comprometido com jogos de azar cresce conforme a idade: para os mais jovens, o valor gira em torno de R$ 100, enquanto pessoas acima dos 30 anos apostam cerca de R$ 1,5 mil por mês. O número é ainda maior entre aqueles com mais de 60 anos, chegando a R$ 3 mil, valor superior a média nacional de aposentadorias.
Um dos dados que mais chama atenção é o comprometimento de verbas oriundas de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família. Segundo o BC, 5 milhões de beneficiários enviaram R$ 3 bilhões via Pix para as empresas de apostas, somente em agosto.
A mediana dos valores gastos por pessoa é de R$ 100. A maior parte dos apostadores — cerca de 70% — são os próprios chefes de família, responsáveis por receber o benefício. Atualmente, o Bolsa Família atende cerca de 20,5 milhões de famílias, com um benefício médio de R$ 681,09. Na prática, isso significa que cerca de 21% do total de beneficiários destinou uma parte do benefício para casas de apostas.
“Esses resultados estão em linha com outros levantamentos que apontam as famílias de baixa renda como as mais prejudicadas pela atividade das apostas esportivas. É razoável supor que o apelo comercial do enriquecimento por meio de apostas seja mais atraente para quem está em situação de vulnerabilidade financeira”, aponta o BC.
Desigualdade social em foco
Apesar de “impressionante”, Daniel Duque, pesquisador da área de Economia Aplicada do FGV Ibre, acredita que os R$ 3 bilhões provenientes de beneficiários do Bolsa Família não representam um desperdício de recursos. Para ele, parte desse valor expressivo é decorrente de uma ineficiência do novo modelo do programa — que ampliou não só o valor oferecido, mas também flexibilizou quem poderia se inscrever. As mudanças feitas pelo governo visava oferecer maior independência financeira para mulheres de baixa renda, mas os números do BC apontam que os responsáveis pelo benefício são os que mais destinam dinheiro para as bets.
“Se olharmos para a população em geral, os números não seriam tão diferentes. O problema é a epidemia de apostas virtuais. A regulação, com restrições mais severas, já deveria ter sido implementada. Precisamos urgentemente de uma força-tarefa no Congresso para discutir formas eficientes de regular essa atividade”, argumenta o economista.
Na visão de Duque, apesar do valor baixo oferecido pelo programa, algumas famílias passaram a dispor de uma renda maior, o que possibilitou gastos em setores e serviços antes inacessíveis, que refletem comportamentos das classes A e B. O problema, então, reside na epidemia generalizada.
“Vemos mais pessoas da classe C apostando do que da classe A. Quem já tem uma renda alta não sente tanta necessidade de apostar, enquanto as classes mais baixas, com algum recurso além do básico, veem nas apostas uma esperança de ascensão social. Essa atividade pode ter sérias consequências, principalmente para as famílias mais vulneráveis, que acabam gastando mais nesse tipo de consumo”, ressalta.
Duque aponta que, nos Estados Unidos, estudos mostram que, para cada dólar apostado, uma família perde o dobro em poupança. No Brasil, o impacto é semelhante. Para ele, a solução não está em modificar o Bolsa Família.
Desaquecimento econômico?
O aumento da desigualdade também pode advir de outra esfera: o desaquecimento econômico. O economista da FGV Ibre alerta que os bilhões despejados nas casas de apostas acabam alimentando um sistema pouco produtivo. O pagamento de prêmios é baixo e o setor gera poucos empregos.
“Se estamos destinando 20% para apostas, deixamos de gastar com outros bens e serviços que geram empregos, como o comércio de vestuário ou a construção civil. Esses setores virtuais não trazem os mesmos benefícios econômicos que setores mais tradicionais, como vestuário, alimentação ou turismo”, conclui.
Forte impacto social
Para Rodrigo Machado, psiquiatra e pesquisador do Ambulatório de Transtornos do Impulso, do Instituto de Psiquiatria da USP, há uma preocupação com o número de jovens envolvidos com apostas. “O córtex cerebral está em franco processo de amadurecimento até a fase de adulto jovem, entre 22 e 24 anos de idade. Antes disso, as vias cerebrais ainda não estão devidamente amadurecidas, gerando uma grande janela de vulnerabilidades para a população exposta a essas práticas nesse momento de vida”, explica.
Já os usuários do Bolsa Família pertencem ao estrato populacional mais impactado por dependências em geral. Isso ocorre devido ao menor nível de educação acerca dos riscos da prática.
“Vimos muito isso com o ‘jogo do tigrinho’, em que os influenciadores faziam pressão popular, alegando que era uma fonte de renda extra. Muitas vezes, a população nem tinha noção de que aquilo era uma aposta, e que a maior probabilidade era de não ganhar”, explica o psiquiatra.
Segundo Machado, uma população já extremamente vulnerável ficou ainda mais exposta ao ver figuras de confiança promovendo esse tipo de atividade, principalmente pela falta de informações, inclusive do governo federal, sobre os riscos envolvidos.
O vício em jogos de azar é classificado na medicina como Transtorno do Jogo, pertencente ao grupo de dependências comportamentais. O psiquiatra explica que essa condição pode ser tratada quando o paciente desenvolve dependência de um comportamento gerador de prazer.
“Não se fica dependente apenas de substâncias químicas. Também podemos nos viciar em comportamentos altamente sedutores para o cérebro, como abuso no comportamento sexual, em compras, em jogos de azar ou no uso de tecnologias em geral”, explica.
A perda de controle ocorre quando há impactos perceptíveis na vida do indivíduo, como gastos além do planejado e muitas horas seguidas em atividades de aposta. Além do prejuízo financeiro, outras esferas da vida do apostador compulsivo podem ser afetadas, como problemas familiares e queda de desempenho no trabalho ou na vida acadêmica.
“O impacto social e familiar costuma ser severo, com muitas famílias despedaçadas, separações e vínculos cada vez mais empobrecidos. Em contrapartida, o apoio e suporte familiar costumam ser fundamentais no tratamento dos indivíduos afetados para alcançarmos bons desfechos”, conclui.
Gota d’água para as bets?
A repercussão dos números fez com que o governo declarasse que está discutindo a adoção de medidas para regular as “bets”, mas ainda sem informações concretas. Em outros momentos, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, defendeu o endurecimento das regras para a propaganda das empresas e a proibição do uso de cartões de crédito.
O próprio presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, afirmou recentemente que enxerga o crescimento do setor de apostas como um problema que pode aumentar as expectativas de endividamento e inadimplência. Segundo ele, houve um aumento superior a 200% desde janeiro no valor que os jogadores transferem para empresas do setor via Pix. A declaração foi feita em um evento do Banco Safra com investidores, na última terça-feira (24).
“Estamos com a percepção de que podemos ter uma piora na qualidade do crédito, com o comprometimento significativo da renda. São números que chamam a atenção, e começamos a perceber que haverá um efeito na inadimplência no futuro”, explicou Campos Neto.
No entanto, esses números não são exatamente uma novidade para o mercado. O Raio-X de investidores, divulgado anualmente pela Anbima (Associação Brasileira das Entidades de Mercado), mostrou que 14% da população fez ao menos uma aposta online em 2023. Enquanto isso, apenas 2% realizou investimentos na bolsa de valores. Apenas a poupança perde para o mercado de apostas no momento.
O que pode ser feito para frear apostas?
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Confira algumas das possíveis soluções apontadas pelos analistas consultados pela Forbes Brasil:
- Regulamentação mediada pelo Congresso.
- Medidas voltadas para a educação e prevenção de adoecimento mental, com informações mais amplas sobre o que são jogos de azar e os riscos relacionados à prática.
- Regras rígidas relacionadas à publicidade e proibição do uso de figuras públicas.
- Bloqueio de servidores de apostas durante o período noturno, principal horário de apostas para indivíduos adoecidos.