Há mais de 20 anos o acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia (UE) é discutido para se tentar chegar a um denominador comum para os dois blocos, que somam 25% do PIB mundial. A França tem sido uma das principais vozes contra a proposta. Com um viés protecionista, o país defende seus agricultores, que dizem não poder concorrer com o agronegócio brasileiro. Eles acusam o Brasil de não seguir as mesmas regras de sustentabilidade e descarbonização, o que os prejudicaria na competição.
O mal-estar diplomático recente provocado pelas declarações de Alexandre Bompard, CEU global do Carrefour, ilustra bem a posição dos europeus. O executivo do grupo varejista atacou a pecuária brasileira. Ele disse que o país seria “inundado” de produtos “que não atendem às exigências e normas” francesas. Porém, diante de um boicote do agronegócio brasileiro, que se uniu para não fornecer para as lojas do grupo no Brasil, o Carrefour retrocedeu e pediu desculpas pelo que chamou de problema de interpretação.
Leia também
Apesar disso, o agronegócio francês pode não ter tanta força para atrapalhar. Marcelo Vitali, diretor da consultoria de internacionalização How2Go, explica que o agronegócio francês representa aproximadamente 3% do PIB do país. “Uma parcela pequena em relação aos consumidores franceses, que seriam beneficiados pelo acordo”.
Atualmente, a França não pode barrar sozinha o texto do acordo. Ele está passando pelas últimas negociações de questões técnicas para ser apresentado às partes no dia 6 de dezembro, na reunião do Mercosul. Depois disso, as duas partes precisarão ratificar o texto de forma unânime, o que deve demorar de 4 a 5 anos. Só então, se o legislativo francês votar contra, o acordo poderá ser inviabilizado.
Estímulo a investimentos
Segundo o diretor, empresas da Europa manifestam apreensão com um possível engavetamento. “O sentimento é de que seria um desperdício não assinar depois de tanto esforço”. Afinal, o acordo não tratará apenas do agronegócio. Ele também deverá facilitar as importações e exportações de matérias-primas e produtos industrializados.
Além disso, a expectativa é de que o texto estimule o investimento internacional, reforçando a possibilidade de empresas europeias investirem no Brasil e ajudarem a melhorar a fraca infraestrutura do país.
Sendo assim, ambos os blocos teriam seus pontos de exposição. Enquanto o agronegócio europeu seria ameaçado pelo sul-americano, o inverso aconteceria com a indústria. “Essas indústrias precisarão ser um pouco mais competitivas, estarão lidando com um competidor novo. Então isso acaba trazendo efeitos de evolução”, explica Leandro Gilio, professor do Insper Agro Global.
Cotas e o protecionismo mantido no acordo
Um dos mecanismos do acordo que exige detalhamento técnico específico são as cotas. Trata-se de um limite para que produtos vendidos entre os blocos não sejam tributados, ou tenham impostos reduzidos. Por exemplo, segundo Gilio, a carne bovina brasileira, alvo das declarações do Carrefour, terá uma cota de 99 mil toneladas anuais a mais que as 200 mil que já vende. O que é pouco perto das 3 milhões de toneladas exportadas. O valor representa apenas 6% de todas as importações da União Europeia
Sendo assim, o texto também protege a economia dos países. Em um caso inverso, por exemplo, o vinho francês também terá cotas para entrar no Mercosul. Dessa forma, a vinicultura sul-americana fica protegida.
Os detalhes de quantidades, tipos de produtos e duração das cotas para a adaptação dos ramos são os principais pontos discutidos neste final. É importante ressaltar que, quando um produto exceder sua cota, ele será tarifado. Essa tarifa poderá variar conforme o produto e poderá ser, ou não, menor do que a de outros países de fora do acordo.
Por exemplo, no caso da carne bovina, a taxa dentro da cota é de 20%. Caso a cota seja quebrada, mais 12% será somado, juntamente a uma taxa de 3,03 euros por tonelada. Com o acordo a taxa intra cota será de 7,5%, os impostos de extra cota se mantém igual. Veja tabela:
Gilio explica que as cotas limitam o acordo, mas foi o caminho encontrado para atender os lobbies que pressionaram as negociações. “O acordo tem bastante proteção, e isso faz com que os resultados fiquem muito limitados. O impacto econômico acaba sendo bastante reduzido”, explica.
Queda do protecionismo
Ao mesmo tempo, o protecionismo deverá diminuir com o tempo. O acordo prevê que, ao longo dos anos, o rol de produtos isentos cresça. Dessa forma, os setores poderão se adaptar ao mercado mais competitivo sem mudanças abruptas.
No agronegócio, a União Europeia terá 10 anos para zerar as taxas sobre 92% das importações. Já o Mercosul terá 15 anos para retirar as taxas de 91% das importações. Na área industrial, em 10 anos, o bloco europeu zerará as tarifas de todos os produtos. O Mercosul deve chegar a 91% das importações sem tributação em 15 anos.
Os especialistas ouvidos pela reportagem convergem ao dizer que, depois de tantos anos de negociações, seria uma perda não fechar o acordo agora, mesmo que limitado. Independentemente do medo e do protecionismo de alguns setores, o consumidor tem muito a ganhar com a redução de preços e o aumento da concorrência.
O momento atual apresenta uma oportunidade única. O apoio de Javier Milei, novo presidente da Argentina, ao Mercosul, combinado com os efeitos da guerra entre Rússia e Ucrânia, que impactam o mercado interno europeu, cria um cenário favorável para a aprovação do texto. Firmar o acordo agora poderá trazer benefícios significativos para ambos os blocos, ao mesmo tempo que promove competitividade e investimento.