Assim como ocorre no Brasil, a produção de alimentos e bebidas contribui para o emprego e para a economia da Argentina de maneira significativa, ao representar 1 peso de cada 3 pesos que a indústria gera, 3 de cada 10 empregos formais no setor manufatureiro e nas exportações, US$ 4 de cada US$ 10.
Mas, apesar de sua relevância, encontrou seu teto há quase 15 anos, não exatamente por fazer uso de 100% de sua capacidade instalada, mas por não contar com as condições de competitividade para liberar seu potencial, um problema crítico para todo o tecido de sua ampla cadeia de valor agregado.
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Hoje, o setor na Argentina se encontra diante de um estancamento crônico: em 2023, essa indústria alcançou o mesmo nível que havia registrado em 2012 e 2013, ou seja, 12 anos de soma zero cuja persistência é um desafio a superar que Carla Martín Bonito assumiu ao ser eleita este ano presidente da Coordinadora de las Industrias de Productos Alimenticios (Copal), em substituição a Daniel Funes de Rioja, que esteve 16 anos nesse cargo.
A executiva, que representa 33 setores da agroindústria local e mais de 14.500 empresas, também decidiu renovar a agenda e, após um ano de transição, encarar os objetivos da competitividade – a partir da redução da carga tributária e da desregulação do comércio – e promover uma maior internacionalização para cumprir com o mandato implícito de transformar a Argentina no tão almejado supermercado do mundo.
Economista pela Universidade de Bueno Aires e mestre em administração e políticas públicas pela Universidade de San Andrés, Carla Martín está há 13 anos na entidade, percorrendo diferentes instâncias de condução, e nesta entrevista expõe a marca que busca imprimir à sua gestão, em um contexto de mudanças e transformações que afetam transversalmente todos os setores. Confira:
Como terminou 2024 para a indústria de alimentos e bebidas?
Foi um ano complexo e desafiador, considerando a situação setorial da nossa indústria, que não esteve alheia ao contexto de recessão. Nossa atividade registra quedas também no consumo interno, e estamos em um nível de capacidade instalada que gira em torno de 60%. No entanto, o contexto de mudança de gestão de governo nos permitiu ser proativos e aproximar uma agenda de transição para abordar os temas da reativação produtiva.
Nosso maior inconveniente estava relacionado à falta de insumos e matérias-primas para a produção, vinculadas ao sistema de importações. E, por outro lado, tudo o que estava relacionado à intervenção em matéria de regulação do comércio, desde a Lei de Gôndolas, de Abastecimento, e o fim do controle de preços. Depois, com o passar dos meses e já superada essa situação, impulsionamos agendas muito mais orientadas à competitividade e à internacionalização dos nossos setores para superar anos de estancamento.
Quais eixos aborda essa agenda de competitividade?
Primeiro, está centrada em percorrer a redução da pressão tributária na nossa indústria, que está na ordem de 40% a 50%, dependendo do setor. É um ponto fundamental para projetar melhores condições de competitividade, pensando não somente no que implica em termos de custos não associados que acabam impactando o preço.
O regime de transparência fiscal expõe esse peso dos impostos em nível nacional e, na medida em que as jurisdições aderirem ao regime, teremos maior precisão sobre a carga tributária consolidada. Isso dá a oportunidade de ter precisão sobre a carga real e, a partir daí, transitar a redução em nível nacional, provincial e jurisdicional, e ter uma conversa distinta sobre as possibilidades de harmonização e simplificação tributária.
Como parte dessas medidas, estamos propondo uma conta única que permita, para os saldos a favor que as empresas acumulam, ter livre disponibilidade para enfrentar as obrigações tributárias e ter uma melhor posição financeira em relação ao sistema em geral.
Esse peso impositivo também transforma o setor em um exportador de impostos?
A pressão tributária que carregamos impacta nas possibilidades de inserção ou internacionalização da nossa atividade. Hoje, temos o desafio de fazer crescer o tecido empresarial exportador: do universo de 14.500 empresas que representamos, apenas 1.200 registram algum tipo de atividade exportadora, e isso significa que precisamos desenvolver capacidades e uma agenda de internacionalização muito mais estratégica, que integre a agenda de competitividade e a agenda de acesso a mercados.
Neste último aspecto, temos impulsionado, para distintos destinos, um inventário de todo tipo de inconvenientes de acesso que deveria complementar-se com a agenda de competitividade, mas também às ineficiências da logística de distribuição que impactam entre 15% e 30% de sobrecustos, focadas nas limitações que apresenta a própria infraestrutura de rodovias, portos e tudo o que faz parte do sistema.
Quais expectativas esse governo gera na superação dessas dificuldades?
O governo tem sido bastante explícito sobre como vai percorrer esse caminho. Em primeiro lugar, o imposto país, com todas as possibilidades de flexibilizar a situação até sua eliminação; depois, as alternativas em torno dos direitos de exportação, onde há sinais concretos que estão, em alguns casos, incorporados no projeto que o governo impulsionou em matéria de promoção do emprego e do investimento, com alguma possibilidade de isenção à exportação incremental.
Sem ir mais longe, Milei também acabou de se pronunciar em relação às retenções, com uma projeção que poderia também prever sua eliminação. Mas nessa vocação de diálogo amplo, sempre pensando em como as possibilidades da nossa agenda de redução tributária podem conciliar-se com o horizonte de trabalho que a gestão de governo pauta, com a premissa fundamental que vai guiando as discussões, que é custo fiscal zero, para o qual propusemos diferentes cenários para transitar o horizonte de eliminação.
Como a abertura das importações afetou alguns setores de alimentos básicos?
A dinâmica comercial da Argentina, historicamente, é muito estável em relação às importações, sendo amplamente superavitária. Cada US$ 12 que o setor exporta, em média importa US$ 1, de modo que a importação nunca se apresentou como uma ameaça.
A balança Argentina é favorável em US$ 25 bilhões, mas ainda assim é importante ter uma visão muito mais profunda e analisar em que condições nossos produtos chegam ao exterior. As importações que estamos registrando também caíram no decorrer do ano, apesar da importante recomposição da disponibilidade de matérias-primas e insumos que não têm fabricação a nível nacional.
Por que os alimentos são caros em um país que é claramente produtor em todos os segmentos?
As possibilidades de recuperar o consumo, em primeiro lugar, estão associadas à recomposição do poder aquisitivo na Argentina. Nesse sentido, a consolidação deste caminho de redução da inflação contribui sem nenhuma dúvida para essa posição, e, depois, as possibilidades de concretizar a agenda de redução da pressão tributária, que chega até 50% do preço final do produto.
O que ocorreu na primeira fase do ano não foi novidade, o que vivemos foi mais inflação, mas em função da situação ou ao ponto de partida da recomposição, do atraso que havia gerado todo tipo de intervenções. Agora, o que a evidência nos mostra é a consolidação de um caminho com os esforços de todos os setores para reduzir a inflação e, nesse contexto, a indústria esteve envolvida e comprometida. Hoje, é contundente que estamos falando de uma desaceleração da inflação em níveis que superaram qualquer prognóstico.
Por que esses anos de estancamento da indústria alimentícia ocorreram na Argentina, apesar da alta demanda global?
Quando consideramos o horizonte temporal dos últimos 10 a 12 anos, o setor não consegue deslanchar ou aproveitar todo o seu potencial, porque atingiu níveis máximos que foram alcançados em diferentes momentos, dependendo dos setores, mas que não puderam ser recuperados.
Quando analisamos os 17 setores que compõem o índice de atividade, a maioria não consegue superar seus níveis máximos. Mas também é necessário associar essa análise à capacidade ociosa disponível, porque, embora o foco seja na onda de investimentos, também é preciso colocar em marcha a capacidade produtiva disponível, que pode dar resultados rapidamente. Portanto, é fundamental também focar nos incentivos para utilizar essa capacidade ociosa no curto prazo e, em seguida, pensar no marco necessário para incentivar novos investimentos.
O quão longe está o país de ser, finalmente, o supermercado do mundo?
Não tenho dúvidas do potencial que temos na Argentina para poder responder com uma melhor posição à demanda mundial. Hoje, temos uma baixa inserção, que não alcança 1% das compras globais de alimentos, mas produzimos tudo o que o mundo requer.
Assim, precisamos assumir o valor indiscutível que essa indústria gera e concentrar todos os esforços para ter uma melhor inserção, pois a oferta exportável existe, e a demanda também. O que precisa acompanhar são as condições para ter uma melhor inserção da nossa indústria no mundo.
No entanto, as possibilidades de nos tornarmos o supermercado do mundo devem levar em consideração que a matriz de produtos exportados está concentrada em três complexos principais, que são responsáveis por 77% da oferta exportável.
Também é necessário trabalhar na diversificação da matriz de destinos, porque os 10 principais mercados de exportação – entre os 180 países de destino – absorvem 60% das vendas. Portanto, é importante diversificar tanto a matriz de produtos quanto a de destinos.