Promotora de justiça, autora de três livros e escolhida como uma das 100 pessoas afrodescendentes mais influentes do mundo (MIPAD), em 2020, uma premiação respaldada pela ONU (Organização das Nações Unidas), Lívia Sant’Anna Vaz tem quase 20 anos de atuação contra o racismo e o sexismo no Ministério Público da Bahia. Levou para dentro do órgão, que tem a cidade mais negra do mundo fora da África, discussões sobre a importância de se combater a intolerância religiosa, principalmente contra religiões de matriz africana, coordena um grupo especial de defesa aos direitos humanos e põe ênfase no combate ao racismo e à violência contra mulheres negras, além de fundar o coletivo Juristas Negras, que reforça essas pautas.
Aqui, trechos da conversa com a editora Fabiana Corrêa, que aconteceu na segunda (6), abrindo a semana do Dia Internacional da Mulher no perfil de Forbes Mulher no Instagram. Para assistir integralmente, só clicar.
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Forbes: Lívia, você é escritora, promotora e atua em diversos movimentos sociais, da luta antirracista e contra o machismo. Como você define seu trabalho hoje?
Lívia Vaz: Sempre começo dizendo que eu sou uma mulher negra. É porque essa essência é o que vai pautar minha existência. A escritora, a promotora de justiça, a mãe… Esses outros papéis vêm depois porque a mulher negra vai transcender, vai enxergar todas as outras formas de opressão. Me coloco com uma mulher negra, promotora de justiça, que tem como missão abrir caminhos para outras mulheres, sobretudo mulheres negras, para que possam ocupar espaços de poder.
F: Quando você decidiu por esse caminho?
LV: Eu sou promotora de justiça desde 2004. Acho importante dizer que o racismo e o sexismo acabam definindo essas escolhas. No início, eu queria fazer carreira no jornalismo. Mas meu pai, naquela época, me chamou num canto da sala para conversar e me fez uma pergunta que me fez mudar. “Você já viu alguma mulher negra na televisão?”. Eu parei pra pensar e o máximo que a gente tinha era a Glória Maria, né? Acabei indo para o direito com a orientação que meu pai me deu naquele dia. Hoje sinto uma grande responsabilidade por estar no direito, que é muito masculino e branco, tanto na sua composição como suas práticas. Isso contribui para que a gente possa ir derrubando barreiras.
F: Em que momento da sua carreira você sentiu que rompeu, pela primeira vez, essa barreira?
LV: Interessante que sou de Salvador (BA), que é reconhecida como a cidade mais negra fora da África. Nós somos 86% de pessoas negras. Aí quando eu chego no Ministério Público da Bahia, me vi como negra única em muitos espaços. E, quando eu comecei a ter uma projeção nacional do meu trabalho e a frequentar outros espaços em outros estados, isso piorou. Como mulher negra, isso nos traz não só uma solidão afetiva, mas uma solidão institucional. A presença de uma mulher negra nesses espaços é pedagógica, porque um dos maiores efeitos do racismo é naturalizar ausências nestes espaços.
Nos Estados Unidos, recentemente nomearam a primeira mulher negra na Suprema Corte. No Brasil, em mais de 130 anos do Supremo Tribunal Federal, nós não temos mulheres negras. Segundo o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), pessoas negras na magistratura brasileira são apenas 12,8% . Então temos um sistema de justiça com visões unilaterais do que é justiça, do que é liberdade, do que é a igualdade. A justiça é uma construção. E eu não consigo enxergar um Estado que se diga realmente democrático e de direito sem que o sistema de justiça, que é essa grande bolha, tão difícil de furar, se abra realmente para a diversidade.
F: Percebo, em alguns encontros de executivas, que há mulheres manifestando um desconforto quando chegam em um evento ou reunião e percebem estar em um ambiente sem (ou com poucas) mulheres negras. É um passo pequeno, mas já indica uma tomada de consciência, certo?
LV: É muito importante a gente falar primeiro numa postura antirracista e anti machista efetiva.Temos hoje um discurso que parece até moda, né? O que você faz, é só nas redes sociais? Na prática, o que você faz para transformar? Questionar os ambientes que você frequenta, questionar as organizações… Porque hoje há uma inclusão superficial. Você coloca uma dirigente negra para dizer que é antirracista, mas na verdade não é porque muitas vezes é um percentual irrisório. E de pessoas que não têm estrutura para trabalhar, não têm autonomia. A gente precisa realmente transcender o discurso. E aí, você chega em um espaço e fala que não encontra mulheres, não encontra pessoas negras, não encontra transexuais, pessoas com deficiência, pessoas idosas…
F: Uma coisa que temos falado é no poder da colaboração, em trazer aliados. No caso das mulheres, enquanto não houver mais homens participando e apoiando, as coisas vão continuar difíceis…
LV: Isso é fundamental. As mulheres negras ainda não estão nesses espaços de decisão. Se não tivermos aliados, é muito difícil que a gente consiga realmente romper essas barreiras. É importante trazer essa luta antirracista e anti-sexista para homens, para pessoas brancas. Afinal de contas, quando a gente fala de racismo, não foram as pessoas negras que criaram, né? Quando nós não estamos nesses espaços e não conseguimos ser escutados, somos objetos de política pública.
F: Você disse que há um erro na concepção do que é lugar de fala. Qual a sua concepção de lugar de fala?
LV: Que você não precisa pertencer àquele grupo para falar de certos temas. Uma vez eu ouvi uma pergunta de uma colega, um mulher branca que queria saber o que fazer para ser antirracista. Não tem lugar de fala isso. Claro que ela tem lugar de fala. É o lugar de fala de uma mulher branca antirracista, entende? Todas as pessoas têm. Você pode falar por um grupo olhando para o que eles precisam, abrir espaço para que esses grupos estejam presentes e se posicionar individualmente contra a opressão.
F: Sua imagem traz muitos elementos da sua história e identidade. Turbantes, por exemplo. Como lidou com isso estando em lugares com tantas restrições como tribunais a determinados órgãos públicos, por exemplo?
LV: Meus turbantes e minhas tranças, o meu cabelo black, os meus búzios. Isso não é estética, isso é linguagem. Nos espaços em que muitas vezes a minha voz não é escutada, meu corpo já está falando. Por que só as vestes talares são condizentes com a dignidade e o exercício da advocacia ou do exercício de funções da justiça? Por que o meu turbante não é adequado? Sou fundadora de um coletivo de juristas negras e estamos pleiteando junto às instituições do sistema de justiça, que reconheçam as vestes que identificam a nossa memória. Eu já tive que ouvir : “você vai fazer o júri com esse cabelo?”. Sim, afinal de contas, é o meu cabelo. Não temos que ser obrigadas a alisar nosso cabelo, embora isso ainda tenha acontecido em vários espaços institucionais.
F: O que você diria a uma menina que quer seguir uma carreira como a sua?
LV: Eu diria que muito solitário, é muito doloroso esse lugar. Então, procure outras pessoas, outras meninas negras que possam dar suporte afetivo e emocional para que você consiga seguir em frente. Hoje recebo muitas mensagens de meninas dizendo que escolheram a área jurídica por sua causa. Quando eu ouço isso, me animo também.