
“Durante a maior parte da história, ‘anônimo’ foi uma mulher.” A famosa frase da escritora britânica Virginia Woolf em seu livro “Um Teto Todo Seu”, de 1929, é sobre literatura, mas também reflete uma realidade mais ampla: por séculos, as mulheres foram relegadas ao papel de coadjuvantes na narrativa oficial da humanidade.
Na ciência, elas foram responsáveis por descobertas e inovações que transformaram a forma como vivemos e vemos o mundo – enquanto enfrentavam preconceitos, lutavam por espaço e ainda equilibravam o cuidado com a casa e os filhos. Mas muitas delas nunca receberam o devido reconhecimento em vida, ou mesmo após a morte.
Rosalind Franklin, por exemplo, morreu sem saber a importância de seu trabalho na descoberta da estrutura do DNA, a base da vida. Nettie Stevens, pioneira na identificação dos cromossomos X e Y como determinantes do sexo biológico, teve os créditos de sua pesquisa atribuídos a outros cientistas e só foi reconhecida postumamente.
Esse apagamento tem nome: Efeito Matilda. O termo, cunhado pela historiadora Margaret Rossiter, homenageia Matilda Joslyn Gage, ativista do século XIX que já denunciava a exclusão sistemática de mulheres da história da ciência e tecnologia.
É verdade que, ao longo do tempo, as mulheres conquistaram espaço não só na ciência, mas no mundo corporativo, nos esportes e nas artes. No entanto, ainda hoje, muitas têm suas ideias apropriadas por colegas, são interrompidas em reuniões e enfrentam barreiras para serem reconhecidas. Em mais de 120 anos de Prêmio Nobel, apenas 65 mulheres foram premiadas, contra 908 homens – um reflexo da falta de visibilidade e incentivo, que perpetua um ciclo de exclusão.
Neste Mês da Mulher, celebramos as “anônimas” que fizeram e fazem o mundo girar e relembramos 20 cientistas que mudaram a história, mas não tiveram reconhecimento à altura dos seus feitos. Confira:
Nettie Stevens (1861-1912) – EUA
Nettie Stevens realizou estudos cruciais para determinar que o sexo de um organismo era ditado pelos cromossomos X e Y, e não por fatores ambientais. A cientista publicou diversos artigos e citou e reconheceu o trabalho de outras mulheres, enquanto ela mesma enfrentava os preconceitos de uma comunidade científica dominada por homens e que não aceitava suas descobertas.
Muitos dos créditos da sua pesquisa foram atribuídos a outro cientista mais conhecido. Ela colaborou com grandes nomes da época, como Thomas Hunt Morgan, que mais tarde ganharia o Prémio Nobel. Mas ela mesma nunca recebeu em vida o devido reconhecimento pelo seu trabalho. Faleceu em 1912, aos 53 anos, e só postumamente ficou evidente a relevância da sua contribuição para a ciência.
Esther Lederberg (1922 -2006) – EUA
Esther Lederberg lançou as bases para futuras descobertas sobre herança genética em bactérias, regulação de genes e recombinação genética.
Em 1951, enquanto pesquisava na Universidade de Wisconsin, descobriu o bacteriófago lambda, um vírus que infecta bactérias. Ao lado de seu primeiro marido, Joshua Lederberg, desenvolveu a técnica de replica plating (placa réplica), que permitiu o estudo da resistência bacteriana a antibióticos – um método ainda amplamente utilizado. Apesar de seu impacto, foi Joshua quem recebeu o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1958, compartilhado com George Beadle e Edward Tatum, enquanto Esther foi ignorada.
Nise da Silveira (1905 – 1999) – Brasil
Formada pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1926, Nise da Silveira dedicou-se à psiquiatria sem nunca aceitar as formas agressivas de tratamento da época, como a internação, os eletrochoques, a insulinoterapia e a lobotomia. Foi também pioneira no Brasil na pesquisa das relações afetivas entre pacientes e animais, chamados por ela de co-terapeutas, e introduziu a psicologia junguiana no Brasil.
Recebeu condecorações, títulos e prêmios em diferentes áreas do conhecimento: saúde, educação, arte e literatura. Seu trabalho e seus princípios inspiraram a criação de museus, centros culturais e instituições terapêuticas no Brasil e no exterior.
Katherine Johnson (1918-2020), Mary Jackson (1921-2005) e Dorothy Vaughan (1910-2008) – EUA
Katherine Johnson, Mary Jackson e Dorothy Vaughan foram três matemáticas negras que desempenharam um papel fundamental no Langley Research Center (Centro de Pesquisas Langley) da NASA.
O trio integrava a equipe que atuava como “computadores humanos”: eram responsáveis por calcular manualmente as equações essenciais para viabilizar as viagens espaciais. Em meio à segregação racial nas décadas de 1950 e 1960, seu trabalho foi crucial para colocar os Estados Unidos à frente na corrida espacial.
As matemáticas fizeram história ao tornar possível a ida de John Glenn ao espaço e a viagem pela órbita ao redor da Terra, em 1962. O norte-americano ficou famoso pelo feito na época e só depois de mais de 50 anos, a história das cientistas ficou conhecida com o filme “Estrelas Além do Tempo”, de 2016. Katherine integrou a equipe da Apollo 11, a missão espacial que foi a primeira a chegar à Lua; Mary foi a primeira engenheira negra da NASA; e Dorothy foi a primeira pessoa negra a ter um cargo de supervisão na NASA.
Ada Lovelace (1815-1852) – Inglaterra
Ada Lovelace foi uma matemática e escritora inglesa. Filha única do escritor e poeta Lorde Byron, desenvolveu um algoritmo para computar os valores de funções matemáticas e é considerada a primeira programadora de computadores da história. Buscou explorar como os indivíduos e a sociedade se conectam com a tecnologia e abriu novos horizontes sobre a visão da capacidade dos computadores.
Jocelyn Bell Burnell (1943) – Irlanda do Norte
Jocelyn Bell Burnell foi a responsável pela descoberta do primeiro pulsar, uma estrela de nêutrons pulsante, em 1967. O estudo foi premiado com um Nobel de física em 1974, mas o prêmio foi para Anthony Hewish, seu supervisor, e para Martin Ryle, radioastrônomo da Universidade de Cambridge. Somente em 2018, a cientista recebeu o reconhecimento por sua descoberta de cinco décadas antes.
Rosalind Franklin (1920-1958) – Inglaterra
Com uma longa carreira acadêmica, a química britânica Rosalind Franklin revolucionou a biologia ao usar raios X para tirar, em 1952, a foto que foi essencial para decifrar a estrutura do DNA.
No entanto, Maurice Wilkins, James Watson e Francis Crick acabaram levando o crédito pelo feito. O trio recebeu o Prêmio Nobel Medicina de 1962, sem menção a Franklin. A pesquisadora havia morrido quatro anos antes, sem saber a relevância da sua contribuição para a ciência.
Bertha Lutz (1894 – 1976) – Brasil
Bertha Maria Júlia Lutz defendeu o direito à emancipação feminina durante toda a sua vida e protagonizou grandes passos da luta das mulheres na história.
Em 1919, tornou-se a segunda brasileira a ingressar no serviço público como bióloga do Museu Nacional, e criou a Liga Para a Emancipação Intelectual da Mulher. Graduou-se advogada anos depois e publicou o livro “A Nacionalidade da Mulher Casada”, no qual defendia os direitos jurídicos das mulheres.
Como deputada federal, lutou pela mudança da legislação trabalhista referente à mulher e ao menor, propôs igualdade salarial, licença de três meses à gestante e redução da jornada de trabalho, que, na época, era de 13 horas.
Foi premiada com o título de “Mulher das Américas”. Em 1952, foi a representante do Brasil na Comissão de Estatutos da Mulher da ONU (Organização das Nações Unidas), criada por sua própria iniciativa.
Rita Lobato Velho Lopes (1866-1954) – Brasil
Rita Lobato foi a primeira mulher a se formar em medicina no Brasil e a exercer a profissão como obstetra no país, além de ter sido a segunda na América do Sul. Ela concluiu o curso de medicina, que durava seis anos, em apenas quatro, na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Como obstetra, atendeu mulheres de todas as classes sociais, oferecendo consultas e medicamentos gratuitos. Além de sua atuação na medicina, esteve envolvida em movimentos feministas, incluindo a luta pelo direito de voto das mulheres. Em 1934, foi eleita vereadora em Rio Pardo, no Rio Grande do Sul.
Hipátia (? – 415 d.C) – Egito
Hipátia viveu no Egito Antigo, em uma época em que poucas mulheres tinham liberdade para estudar. Filha de um matemático e filósofo, foi uma das primeiras a ensinar matemática, astronomia e filosofia.
Com seu pai, atualizou livros didáticos e, com o dom de simplificar temas complexos, suas anotações rodaram gerações de matemáticos e astrônomos. Era respeitada por ensinar o uso do astrolábio, instrumento essencial para navegadores por 200 anos. Além disso, aplicou a matemática à filosofia, desenvolvendo ideias ligadas ao Neoplatonismo, que defendia que o conhecimento nasce da experiência.
Chien-Shiung Wu (1912 – 1997) – China
Chien-Shiung Wu, uma das maiores físicas experimentais de sua época, desafiou uma lei fundamental da física e contribuiu para o desenvolvimento da bomba atômica. Na década de 1940, foi recrutada pela Universidade Columbia para integrar o Projeto Manhattan, onde conduziu pesquisas sobre a detecção de radiação e o enriquecimento de urânio.
Anos depois, os físicos teóricos Chen Ning Yang e Tsung-Dao Lee a convidaram para testar sua hipótese sobre a quebra da lei da paridade, que era aceita havia 30 anos. A descoberta rendeu a Yang e Lee o Prêmio Nobel de Física em 1957, mas Wu foi ignorada pela premiação, apesar de seu papel crucial na descoberta.
Mary Anning (1799-1847) – Inglaterra
Mary Anning cresceu com dificuldades financeiras e, desde pequena, procurava fósseis para vender. Nunca teve educação formal, mas foi autodidata em geologia e anatomia.
Ela encontrou o primeiro fóssil completo de um Plesiosaurus e o primeiro Pterosaurus fora da Alemanha, dentre outras descobertas que foram fundamentais para as discussões sobre a extinção das espécies. Mesmo assim, à época, Mary Anning praticamente não foi creditada por sua atuação como paleontóloga. Em 2020, o filme “Ammonite”, protagonizado por Kate Winslet, homenageou sua história.
Vera Rubin (1928-2016) – EUA
Desde cedo, Vera Rubin encontrou inspiração em cientistas mulheres no campo da astronomia e dedicou sua carreira à busca pelo conhecimento e à luta pela igualdade de gênero.
A astrônoma fez contribuições relevantes para a ciência ao estudar a distribuição de massa na galáxia Andrômeda e o movimento das galáxias. Foi Vera quem comprovou a existência de matéria escura no universo. Ainda assim, não recebeu o prêmio Nobel por seu trabalho.
Ida Noddack (1896-1978) – Alemanha
Ida Noddack foi uma das primeiras mulheres a estudar química na Alemanha. Descobriu, junto com o marido, Walter Noddack, e o cientista Otto Berg, o elemento Rênio. No entanto, a descoberta foi creditada exclusivamente a Walter e Otto.
Ida ainda descobriu o elemento Masurium. Contudo, por não conseguir isolá-lo, a descoberta foi ignorada. Mais tarde, foi atribuída a Emilio Segre e Carlo Perrier, que produziram o elemento artificialmente e conseguiram isolá-lo.
A cientista também foi a primeira a teorizar a fissão nuclear, mas, novamente, não recebeu o crédito.
Lise Meitner (1878-1968) – Áustria
Lise Meitner foi a cientista por trás da descoberta do processo de fissão nuclear em elementos pesados, como o urânio – o princípio da bomba atômica. Até então, essa possibilidade era considerada impossível.
No entanto, seu colega Otto Hahn excluiu seu nome do estudo, justificando que queria protegê-la por ser uma mulher judia em meio ao regime nazista. Anos depois, Hahn recebeu sozinho o Prêmio Nobel de Química de 1944 e nunca reconheceu publicamente a contribuição de Meitner para a descoberta. Anos depois, seu legado foi finalmente reconhecido pela comunidade científica, que batizou o elemento 109 de meitnério (Mt) em sua homenagem. Lise Meitner faleceu em 27 de outubro de 1968, aos 89 anos.
Marie Tharp (1920-2006) – EUA
Geóloga e cartógrafa, Marie Tharp criou o primeiro mapa do fundo do oceano, junto de seu colega Bruce Heezen, o que levou à descoberta das placas tectônicas e à teoria da deriva continental. Antes, acreditava-se que o fundo do mar era uniforme e plano.
Ao longo da carreira, Tharp enfrentou desafios por ser mulher em um universo dominado pelos homens. Não era permitida nos navios que coletavam os dados do fundo do mar que usava para fazer seus mapas e não pisou em um cruzeiro de pesquisa até 1968. Suas primeiras evidências de expansão do fundo do mar foram descartadas como “conversa de menina”.
Grace Hopper (1906-1992) – EUA
Pioneira na computação, Grace Hopper ficou conhecida por suas contribuições para a programação de computadores, desenvolvimento de software e design e implementação de linguagens de programação.
Ao desafiar os grandes pesquisadores de sua época, Grace tornou a programação e a computação mais democrática e acessível. Também teve uma longa e influente carreira na Marinha dos EUA e na indústria de computadores.
Trotula de Ruggiero (1050-1097) – Itália
Também conhecida como Trotula de Salerno, foi a primeira ginecologista da qual se tem registros. Testou chás e medicamentos para aliviar a dor do parto, realizou cesáreas em situações de risco e defendeu que a infertilidade também poderia ser atribuída ao homem, e não exclusivamente à mulher.
Apesar de suas contribuições para a medicina, Trotula enfrentou situações de silenciamento, até mesmo após sua morte. Em 1566, por exemplo, o editor Kaspar Wolf publicou um livro baseado em seus escritos sem creditar a ginecologista pela autoria. Médicos e estudiosos da época se recusaram a aceitar que uma mulher poderia ter escrito a obra, chegando a afirmar que Trotula seria uma personagem fictícia. Foi apenas em 1930 que a obstetra Kate Hurd-Mead conseguiu comprovar a autenticidade e a veracidade da obra de Trotula.