Nas diversas atividades que exerce, a empreendedora e ativista Sauanne Bispo diz fazer o que gosta: a diferença. Responsável pela área de Nova Economia e Desenvolvimento Territorial na Fundação Tide Setúbal, focada em empreendedorismo e empregabilidade na periferia, Sauanne também atua como embaixadora na Womby, projeto concebido com a aceleradora de projetos liderados por mães B2Mamy, que equipa mães negras periféricas a desenvolverem habilidades e negócios na economia digital.
Além disso, Sauanne – que tem formação em estatística e é especializada em gestão de tecnologia e áreas emergentes como big data e inteligência analítica – é empreendedora. Depois de não se ver representada em diversos espaços durante um intercâmbio e viagens ao redor do mundo, fundou a Go Diáspora, primeira agência de intercâmbio a racializar o turismo, que oferece cursos de línguas e imersão focada nos países africanos e sua diáspora.
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Nesta primeira entrevista da série Futuros Possíveis, Sauanne, que forma a primeira turma da Womby na próxima sexta-feira (4), conversou com a Forbes sobre temas que transitam pelo empreendedorismo feminino, inovação, representatividade, propagação de influência e as mudanças que quer ver no mundo.
“Será que o futuro é feminino? Nas eleições dos Estados Unidos, alguns gráficos circularam em relação a como a eleição seria se fossem só as mulheres. Você via o mapa norte-americano quase todo azul [representando eleitores do presidente-eleito Joe Biden]. Eu vi aquilo e disse: já que é para fazer o recorte de gênero, vamos fazer um de pessoas brancas.
Com estes recortes sobrepostos, vimos que mulheres brancas eram majoritariamente vermelhas [representando eleitoras do atual presidente, Donald Trump]. Quando falamos de diversidade, se não aplicamos a interseccionalidade, caímos em uma armadilha. Dito isso, pergunto se o futuro é mesmo feminino. Não é, porque a definição atual de futuro feminino é uma em que todo mundo vive exatamente como agora.
Se aplicamos o recorte étnico, e dizemos que o futuro é feminino e negro, aí vemos as mudanças que estão acontecendo. O que vivemos hoje é uma revolução sem volta, pois quando uma mulher negra ascende, inspira outras: e essas outras passam a se multiplicar. Ao assumir esse papel multiplicador, uma simples mulher negra causa um efeito dominó, porque quando outras a veem, dizem: eu também posso.
Estamos vivendo um movimento de ocupação de novas líderes e de formação. As líderes negras de hoje estão estimulando outras, para que as gerações futuras exerçam essas competências o quanto antes, e não de maneira tão tardia como tem acontecido com a gente.
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A tecnologia propaga a voz da mulher negra da atualidade. A mesma tecnologia que nos omitia hoje tem um papel multiplicador e possibilita que nossas vozes sejam ouvidas, que nossos pensamentos sejam compartilhados, e nossas expertises sejam demonstradas.
Cada vez que falo publicamente em uma palestra virtual com pessoas de diferentes partes do Brasil, estou plantando esperança, compartilhando dores e vitórias, me multiplicando. Por isso, estou incentivando outras pessoas para que busquem ocupar os seus espaços através da tecnologia. É a tecnologia que me dá esperança e o propósito de deixar de ser exceção e virar a regra.
Enxergar pessoas negras que estão ocupando espaço através das mídias sociais estimula, de certa forma. As mídias sociais mostram a nossa existência, em uma sociedade onde as pessoas negras são maioria e a gente não se vê na televisão, em uma prateleira de mercado. Mas não é só sobre isso. As mídias sociais atuam apenas um meio, porque o fim é o impacto, a inspiração, a motivação, a multiplicação.
É muito comum ver pessoas negras falando sobre a negritude, sem necessariamente ter estudado para isso. É uma questão do sistema, que inclusive leva a pessoa negra a desviar seu caminho. Eu estudei estatística, mas fiquei conhecida no momento no movimento do Vidas Negras Importam, por exemplo. Eu tenho uma empresa de viagens, faço várias outras coisas, mas não foi graças a esses meus conhecimentos que caí “no gosto do povo”.
As mulheres negras são múltiplas, e podem ser complementares, ou distintas. Cada uma tem a sua área de conhecimento, seus gostos, prazeres, estilo e seus objetivos. Nesse ponto, a tecnologia permite que a mulher negra possa se posicionar com base no que deseja. Ela pode falar de moda, beleza, viagem, estatística, compartilhar seu conhecimento. Ela se pode se impor, definir seu lugar na sociedade, exercer seu poder de escolha.
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A expertise da mulher negra não está sendo bem aproveitada por empresas que dizem querer inovar. Isso ocorre justamente pela segmentação da sociedade, em que define-se o lugar do negro e o quê o negro sabe, ou não sabe, falar. Um banco afirma que não encontra pessoas negras capacitadas, o que é algo gravíssimo de se dizer: se você não procura, não acha, mas não quer dizer que as pessoas não existam.
A inovação e a resiliência em meio às mudanças sempre existiram para mulheres negras. O que ocorre agora é uma adaptação tecnológica, que estas mulheres também acompanham. Não em sua grande maioria, no entanto: não podemos deixar de considerar que grande parte da população negra se encontra em vulnerabilidade. A inovação que é considerada uma mega adaptação nos centros urbanos frequentemente não é aplicável em territórios periféricos. Considerando as atuais prioridades corporativas, pergunto: inovação para quem?
Seria lógico ter lideranças negras femininas tratando de temas de inovação em corporações, mas isso não é enxergado como algo necessário, em termos de reparação. Além disso, também seria financeiramente óbvio, pois a população negra tem uma movimentação de mais de R$ 1 bilhão anuais. Mas não se considera a inserção da mulher negra para trazer a solução dos problemas, causar a redução dessas desigualdades e ampliar o impacto social, que sempre é maior quando aplicado à maioria.
O valor que uma mulher negra traz para a inovação vai muito além do óbvio. Estas mulheres têm extrema competência e diversas habilidades necessárias e exigidas pelo mercado de trabalho. Por outro lado, são as pessoas que mais sofrem as consequências do racismo estrutural. Nesse cenário, a mulher negra num ambiente corporativo voltado para novos produtos e serviços de base tecnológica traz uma inovação preventiva, para que os danos sejam cada vez menores à sociedade, porque ela já sofreu muito.
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Representatividade e visibilidade são fundamentais. Para além de contratar mulheres negras, é preciso dar projeção a elas. Permitir que elas tenham vez e voz, que possam se expressar, se expor de maneira que outras se sintam estimuladas. Também não adianta ter uma pessoa negra com toda a habilidade de fazer uma revolução na sociedade embaixo do guarda-chuva corporativo e só mostrá-la em situações estratégicas.
Estudei estatística com o objetivo de ensinar na universidade onde eu estudava. Isso significa que, por mais inteligente que eu fosse, por mais que tirasse 10 nas provas de cálculo, eu achava que o máximo que eu poderia ocupar estava naquele lugar onde eu aprendia o que ensinaria futuramente. Nem mesmo trabalhar em um banco passou pela minha cabeça: não por questão de baixa autoestima, mas porque realmente não me ocorreu. Mas era isso?
Se lá atrás eu tivesse pensado nesta resposta, hoje, aos 34 anos, já teria construído uma carreira corporativa incrível. Mas comecei tardiamente, quando passei a enxergar e entender que existem outras possibilidades. Quando entrei no meio corporativo, uma das coisas que eu sempre pedia às empresas era: me dê oportunidades de me expor, compartilhar meu conhecimento, atrair. Senão tudo fica muito distante para as outras pessoas negras. Mas se eu passo a enxergar pessoas semelhantes a mim ocupando diferentes espaços e corporações, de diferentes formas, eu posso escolher e ser o que eu quiser.”
* Conforme relatado à Angelica Mari, jornalista especializada em inovação há 18 anos, com uma década de experiência em redações no Reino Unido e Estados Unidos. Colabora em inglês e português para publicações incluindo a FORBES (Estados Unidos e Brasil), BBC e outros.
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