Na grande maioria das vezes, a menção a desmanches de veículos imediatamente remete o brasileiro à uma série de atividades ilegais, que passam pela compra e venda irregular de peças por oficinas, até cenários que envolvem a subtração de carros e latrocínio, roubo seguido de morte. No entanto, o mercado de desmontagem veicular traz uma série de oportunidades que a startup Octa busca aproveitar, combinando vivências tradicionais do setor à tecnologia e inovação, bem como um foco em na tríade de princípios ambientais, sociais e de governança (ESG, na sigla em inglês).
Movido pelo propósito de transformar percepções e endereçar os desafios socioeconômicos de uma cadeia altamente complexa, Geraldo Rufino fundou a JR Diesel, que hoje é uma das maiores empresas da América Latina em reciclagem e desmontagem de veículos. A ideia nasceu do problema que Rufino enfrentou ao não conseguir consertar seus dois caminhões depois de acidentes que inviabilizaram o retorno às ruas, mas apresentaram a oportunidade de desmonte e venda das peças. Ao assumir como CEO da empresa em 2002, Arthur Rufino começou a trabalhar na evolução da atividade que o pai começou, há 36 anos.
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Apesar de não existirem números oficiais, o mercado endereçável do setor de desmontagem e reciclagem de veículos é de aproximadamente R$20 bilhões, segundo o empresário. Porém, atualmente existem múltiplas ineficiências que impedem a plena geração de valor, em áreas como a dificuldade no acesso a veículos em final de vida com peças que podem ser reutilizadas, além da informalidade da atividade de desmontagem e os entraves na venda de peças para remanufatura, bem como materiais recicláveis.
“Meu objetivo era desenvolver um mercado. Acreditávamos que a JR sozinha não tinha o poder de transformar o roubo de carros em algo inútil no Brasil,” conta Rufino sobre sua motivação para criar a Octa, em entrevista à Quem Inova. O empresário deixou a presidência da JR Diesel em janeiro (o pai, Geraldo, é o líder interino até que o irmão de Arthur, Guilherme Rufino, assuma o cargo nos próximos meses) para se dedicar exclusivamente à startup, fundada em dezembro de 2020.
“Por outro lado, o mercado organizado tem este poder [de transformação]. Se há a oferta de peças de forma estruturada com volume suficiente, o consumidor não vai nem precisar pensar em comprar uma peça sem origem,” aponta o fundador, acrescentando que, após fazer diversas provas de conceito rumo à esta visão na JR Diesel e uma investigação de boas práticas do setor em 9 países, concluiu que precisava fundar uma startup, que operasse separadamente da empresa da família.
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“Percebi que, por mais que eu estivesse próximo do ecossistema [de desmanche], precisava de um cofundador com o background de tecnologia, de funding, e de práticas de recrutamento com dinâmicas muito diferentes da minha vivência até aquele ponto”, conta. Rufino, que vinha se posicionando no LinkedIn como expert em inovação de negócios tradicionais, foi convidado em junho por Daniel Oelsner Lopes, sócio da Fisher Venture Builder, para uma live sobre “empreendedorismo raiz”. As conversas fluíram e, em dezembro, ambos fundaram a empresa.
A empresa realizou uma captação inicial, pre-seed, onde participaram investidores da rede da Fisher, alem de investidores anjo que, segundo Rufino, aportam mais que seu capital no negócio. O aporte pre-seed foi focado em desenvolver a tecnologia inicial da Octa e a contratação do time inicial, com o intuito de levar a startup rapidamente à operação e geração de receita.
“Agora nosso foco está em avançar com a operação e fechar contratos que estavam no pipeline, mas já estamos pensando na próxima rodada, provavelmente uma série A, ainda em 2021″, antecipa.
FRENTES DE ATUAÇÃO
Unindo a expertise da família Rufino no business de desmontagem com as competências de inovação tecnológica e modelos ágeis de gestão e desenvolvimento de produtos digitais da Fisher, os fundadores descrevem a Octa como um negócio “asset-light”, ou seja, sem muitos ativos físicos, que já nasce atendendo uma demanda reprimida do mercado através de intermediação.
A visão da empresa para o futuro do setor se divide em ondas, traduzidas em três grandes áreas complementares de atuação, atendendo centros de desmontagem veicular (CDVs) maiores e já estruturados, além de centros de desmontagem menores e legalizados, bem como franqueados que queiram se beneficiar do modelo de gestão da cadeia de desmanche e da tecnologia que a Octa emprega para estas atividades.
A primeira frente de foco para a startup é o Octa In, produto de originação de veículos para desmanche, em formato marketplace com dinâmica de leilão, cuja plataforma digital deve ser lançada em abril. Aqui, o foco são donos de frotas de ônibus e caminhões como empresas de transporte de pessoas, de carga e veículos customizados – como os utilizados por mineradoras e empresas de serviços de eletricidade – cujas frotas tem depreciação acelerada e custam a encontrar um comprador quando os veículos chegam no final da vida útil.
“Estes veículos pesados frequentemente são submetidos a condições extremas por alguns anos, e acabam durando muito menos tempo do que um caminhão normal, por motivos de uso ou sinistro. Mas na sua totalidade, as peças ainda servem: este é um dos perfis ideais para um CDV, pois ele consegue desmontar o veículo e revender as peças, que valem muito mais do que um veículo usado”, explica Lopes.
A segunda frente trata da estruturação do mercado de centros de desmontagem, com o Octa CDV, que é um misto de tecnologia e modelo de negócios, que será licenciado para que o modelo de CDV desenvolvido pela Octa possa ser replicado por outros players – que podem incluir as próprias montadoras, que compram um produto que vem com a originação de veículos do Octa In, e o modus operandi do business de desmontagem.
O produto inclui uma plataforma proprietária de enterprise resource planning (ERP) especializada no processo, que é predominantemente manual e pode envolver até 5 mil peças por veículo, dependendo do tamanho. Além disso, traz um elemento de treinamento e a experiência dos Rufino em classificação e rastreabilidade de peças na desmontagem, sendo que este último é um elemento crucial para a segurança do comprador.
“Na compra de um motor usado, por exemplo, é preciso comprovar a origem no Denatran pois ele não pode estar registrado em dois veículos ao mesmo tempo – um sistema de rastreabilidade faz muita diferença em casos como este, pois dia uma segurança jurídica forte para fazer uma compra sem dor de cabeça”, explica Lopes.
O Octa Re, produto que propõe linhas de receita para as empresas envolvidas na cadeia de desmanche e reciclagem, é a terceira frente de atuação da startup. Para viabilizar estes canais de vendas, também será criado um marketplace de peças de reuso, que vai conectar CDVs com fabricantes de peças, que podem ser remanufaturadas ou recicladas, por cadeias de reciclagem de metal, polímeros e de outros materiais.
Segundo Lopes, o foco da Octa em seu objetivo de ampliar a capacidade automotiva do mercado é o segmento de grandes indústrias que tem interesse nos subprodutos da desmontagem de veículos, mas o escopo dos players que a startup pode atender não se limita a este espaço. Pode também incluir locadoras, que podem avaliar suas desmobilizações de veículos de forma contínua com o OctaIn, evitando que pequenos e desestruturados concorrentes tenham acesso a estes veículos. Além disso, possíveis clientes incluem organizações do setor público, como o Detran, que administra pátios de veículos que muitas vezes ficam abandonados por longos períodos de tempo.
ESG BY DESIGN
Segundo Rufino, a parceria com a Fisher vem de encontro ao interesse da empresa de venture building (organização que constroi startups usando recursos próprios) em desenvolver negócios de impacto social. O empresário ressalta, no entanto, que o ethos do business da família, assim como a Octa, é construído sob os pilares de ESG.
“No aspecto ambiental, temos um grande foco nas questões da circularidade, reuso, remanufatura, reciclagem de peças, além de garantir que os veículos não fiquem parados com contaminação e proliferação de doenças. Na frente social, temos a questão da redução do crime relacionada à estruturação deste mercado”, ressalta.
Em 2003, Rufino se aliou com o vereador Jooji Hato para desenvolver um projeto que deu origem à Lei dos Desmanches, que disciplina a atividade de desmontagem de veículos, com abrangência estadual em São Paulo, e resultou em uma redução no roubo de veículos. Sancionado em 2014, o projeto paulista deu origem a uma lei federal que regulamenta a atividade em território nacional.
“No pilar social, também há a questão da geração de empregos no mercado que cresce muito com esse impulso, assim como a democratização do acesso a manutenção. Já que as indústrias e as distribuidoras de peças tendem a manter estoque só de peças de veículos com até 5 anos, existe toda uma população descoberta em temos de manutenção veicular,” aponta Rufino, que também busca levar a governança que desenvolveu no seu negócio anterior através do produto da Octa para outras pequenas e médias empresas familiares.
“Na Octa a gente desenvolveu uma plataforma de execução de propósitos, que quer transformar o roubo de carros em algo inútil no Brasil como propósito pai, com uma base ESG muito estruturada. Temos a oportunidade de mostrar um case prático, rentável, real, escalável de uma empresa que é totalmente fundamentada nesses conceitos”, ressalta.
Para os próximos meses, a Octa pretende contratar mais de 20 pessoas, incluindo pessoas que atuarão em campo na captação de veículos, em particular em Goiás, Espírito Santo e Pernambuco, já que a OctaIn favorece zonas menos favorecidas em termos de canais de distribuição de veículos em final de vida útil. Em relação às contratações, Rufino, que diz receber milhares de abordagens via LinkedIn para as vagas que publica por lá, ressalta a importância da diversidade em emplacar o modelo junto à clientes que podem não estar acostumadas com o linguajar do ecossistema inovador.
“Temos uma demanda forte por [contratar] a galera técnica de startups, mas ao mesmo tempo, precisamos do pessoal ‘bricks and mortar‘ [especialistas no business tradicional de desmontagem] para garantir aderência – não dá para chegar num ambiente de oficinas mecânica falando termos em inglês e o cara não entender nada. Por isso, lutamos muito para garantir a diversidade do time inicial para ter um alinhamento cultural, e consideramos que atenderemos muitos públicos diferentes, em um país extremamente diverso”, ressalta.
Comentando sobre as metas para este ano, Rufino diz que espera contratar ao menos três vezes mais pessoas do que o antecipado, além de conseguir educar seu público-alvo sobre as vantagens de um mercado estruturado, captar veículos em território nacional, e ter ao menos duas estruturas de grande porte operando no modelo Octa CDV de desmontagem. Além disso, espera estar totalmente acostumado ao modelo de negócios de uma startup, e demonstrar a oportunidade da inovação no segmento em que opera.
“Queremos mostrar para outros empresários do mercado tradicional que é possível olhar para a inovação estrutural e depois tecnológica para redesenhar seus modelos de negócio e consequentemente mudar seu entorno, seja seu bairro, estado ou país, ao invés de ficar esperando o governo”, argumenta Rufino, acrescentando a Octa ilustra essa visão, ao transformar a percepção do desmanche em uma atividade positivamente produtiva, com uma abordagem inovadora.
“Pensamos muito em como impulsionar outras empresas a desenvolverem seus caminhos. E aí, cada um vai olhar o seu espaço: um vai olhar a saúde, outro vai olhar a educação. O importante é empoderar cada vez mais empresas a executar como a gente está executando – e transformar.”
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QUEM MAIS INOVA:
NINA
A NINA, startup recifense que coleta evidências sobre assédio sexual sofrido por mulheres no transporte público, avança com tratativas com prefeituras e empresas interessadas em apoiar o combate ao problema.
Fundada por Simony César, a startup já opera na rede de ônibus de Fortaleza e está em negociações com prefeituras no estado de Pernambuco, além das prefeituras de Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Para esta última, a proposta vem em boa hora, já que uma das promessas de campanha do atual prefeito Eduardo Paes foi melhorar a segurança de mulheres na mobilidade urbana.
Para além de prefeituras, a empresa agora disponibiliza, coleta e filtra dados de ocorrências de assédio para empresas do setor privado – o intuito nesse espaço é atender e entender os impactos sociais e econômicos em diversos nichos de mercado, gerando dados inéditos de transito do mulheres em cidades.
À Quem Inova, Simony conta que a maior oportunidade está em empresas do setor de varejo. “Marcas muito fortes no digital, mas também em lojas físicas, nos atraem muito, como a Magalu, que é atuante em pautas que dão visibilidade a demandas das mulheres e que têm um alcance enorme em várias classes sociais”, aponta a empreendedora cearense, ressaltando que a evasão de usuários do sistema de transporte público está em 7 a 10% por ano. Uma das principais queixas é insegurança, e 65% do público pagante do sistema é composto por mulheres.
“Não dar atenção a esse usuário em específico não só um irresponsabilidade social, mas é principalmente uma irresponsabilidade comercial, já que [mulheres são] o principal público pagante do transporte e em diversos outros setores”, pontua.
Outras melhorias recentes da NINA incluem integração com circuitos de câmeras de plataformas de terminais e dentro de ônibus, além de atendimento humanizado através de um novo fluxo conversacional e a possibilidade de usuários, tanto vítimas quanto testemunhas, fazerem o upload de vídeos e fotos direto de seus smartphones.
Segundo Simony, as melhorias em tecnologia buscam atender o objetivo da startup de estar em mais apps e cidades, e cumprir a meta de se tornar o canal padrão de denúncia para diversos modos de locomoção: mobilidade ativa (à pé ou bicicleta), transporte público, transporte ponta a ponta (através de apps como 99 e Uber), ou transporte corporativo.
“A NINA não se trata de só receber denúncias e direcioná-las, que já é um trabalho desafiador. Principalmente, queremos catequizar gestores públicos a pautar políticas de planejamento urbano e segurança, pautando os dados do trânsito de mulheres em cidades, nos mais diversos modos,” ressalta.
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JOBECAM
A Jobecam, startup que desenvolve uma plataforma de “recrutamento às cegas”, está buscando um country manager para apoiar sua expansão nos Estados Unidos e a captação de recursos por lá. A plataforma da HRtech comandada por Cammila Yochabell, que atende empresas como Magazine Luiza, Petz, além de bancos e operadoras de celular, filtra e ranqueia candidatos através de respostas em vídeo a questionários, em que a inteligência artificial é aplicada para fazer a seleção. A plataforma altera a imagem e voz dos candidatos nas entrevistas, que só são revelados quando recrutadores os selecionam, a fim de eliminar possíveis vieses na contratação.
A startup teve um crescimento de vendas de 300% no Brasil e América Latina desde o surgimento da pandemia, impulsionada pelo aumento na contratação feita de forma remota. A tecnologia da startup, que antes permitia a entrevista às cegas somente no formato pré-gravado, agora oferece o recurso ao vivo, o que permite a interação em tempo real, tal qual uma videoconferência.
À Quem Inova, Cammila afirmou que além da liderança nos Estados Unidos, a empresa deve buscar um aporte seed, de US$ 1 milhão, para fazer outras contratações nos Estados Unidos. Além disso, a fundadora diz que sua startup tem atraído o interesse de aceleradoras e investidores de Santa Monica, na California, e Nova York.
Segundo a empreendedora nascida em Mossoró (RN), o mercado norte-americano tem se mostrado cada vez mais interessante e pronto para adotar soluções como a da Jobecam: “Há uma maturidade muito maior nos Estados Unidos para este tipo de solução; o Brasil ainda está num estágio educacional quando o assunto é diversidade e inclusão – apesar do discurso, poucas empresas colocam isso em prática”, aponta.
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BLABLACAR
A empresa francesa de mobilidade BlaBlaCar passa por uma série de mudanças em seu modelo de gestão, além de um movimento interno na subsidiária brasileira. Segundo apurou Quem Inova, com a mudança na estrutura em que a divisão passa a ser por verticais, o foco em lideranças por região geográfica será extinto, e a BlaBlaCar não terá mais a figura de country manager.
O ex-head da empresa no Brasil, Ricardo Leite, agora coordena as atividades em mercados de língua portuguesa na edtech indiana WhiteHat Jr. Na BlaBlaCar, o executivo mais sênior no Brasil atualmente é Igor Soares, que lidera o negócio de marketplace de ônibus da empresa.
Angelica Mari é jornalista especializada em inovação e comentarista com duas décadas de atuação em redações nacionais e internacionais. Colabora para publicações incluindo a FORBES (Estados Unidos e Brasil), BBC e outros. Escreve para a coluna “Quem Inova” na Forbes Tech, publicada às quintas-feiras.
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