
A Tesla não deveria ser vista como uma fabricante de carros elétricos, mas como uma empresa de inteligência artificial — pelo menos se acreditarmos no que Elon Musk diz. A confiança do CEO está atrelada a um conjunto de dados único: petabytes de vídeos capturados pelos carros da companhia, enquanto seus clientes acumulam milhões de quilômetros rodados ao redor do mundo.
Em teoria, esses dados são exatamente o que a Tesla precisa para treinar seus carros para operarem sem qualquer assistência humana — um objetivo central na visão de Musk para o futuro da empresa. Mas há um problema: as informações podem não ser tão úteis quanto Musk afirma. Na verdade, parte delas não tem utilidade alguma.
Criar uma IA capaz de dirigir um carro tão bem quanto um ser humano é um desafio muito diferente do desenvolvimento de um chatbot de processamento de linguagem natural como o ChatGPT, treinado com bilhões de palavras retiradas da internet. Enquanto o GPT e sistemas concorrentes, como o Grok, da xAI, podem oferecer resultados falhos sem nenhuma grande implicação, se a IA que controla um veículo cometer um erro, vidas podem estar em risco.
Dirigir um carro envolve variáveis muito complexas — condições de direção, clima, obras, mudanças no trânsito, o comportamento de outros veículos. Dominar todas essas camadas e estar preparado para reagir a eventos inesperados é o verdadeiro desafio da IA para direção autônoma. Treiná-la apenas com vídeos intermináveis de pessoas dirigindo em rodovias não ajuda a tecnologia a lidar com o que realmente importa: os cenários extremos que causam colisões e outras situações perigosas.
“Isso pode fazer com que você dirija muito bem em situações normais, mas quando algo estranho acontece, você não tem nenhuma resposta”, disse um cientista da computação e executivo de uma empresa de tecnologia autônoma, que pediu anonimato para não criticar abertamente a Tesla. “E você acaba aprendendo apenas maus hábitos. Nove em cada dez pessoas não param completamente em um sinal de parada. Se tudo o que você faz é aprender com o comportamento humano, também não vai parar de maneira adequada.”
É por isso que os concorrentes da Tesla no setor de robô-táxis utilizam sensores a laser, para capturar imagens 3D, e radares, para detectar objetos sólidos no caminho do veículo — tecnologias que oferecem imagens mais ricas e detalhadas do ambiente. Embora seja possível depender apenas de câmeras, é necessário contar com “os melhores sistemas de câmeras para realmente lidar com isso”, afirmou Drago Anguelov, chefe de pesquisa da Waymo, durante a conferência de desenvolvedores do Google há alguns anos.
Yann LeCun, cientista-chefe de IA da Meta e professor de ciência da computação na Universidade de Nova York, também não está convencido de que os dados da Tesla lhe dão uma vantagem competitiva.
“O impacto dos dados geralmente é superestimado: à medida que se obtém mais dados, o desempenho melhora, mas com retornos decrescentes”, disse ele. “Dobrar o volume de dados traz melhorias marginais, ainda longe da confiabilidade humana.” Mesmo com quantidades massivas de dados, nenhuma empresa conseguiu desenvolver a chamada autonomia de Nível 5 — quando um veículo pode dirigir sozinho em todas as situações que um humano conseguiria.
“Ainda assim, qualquer jovem de 17 anos pode aprender a dirigir com cerca de 20 horas de prática”, afirmou LeCun. “Isso mostra que as arquiteturas de IA atuais estão deixando escapar algo fundamental na capacidade de compreender o mundo e aprender com quantidades limitadas de dados ou experiências.”
Nada disso impediu os investidores mais otimistas da Tesla de apostarem na visão de Musk para a IA, mesmo com a queda nas vendas de veículos elétricos — e no valor das ações da empresa — e enquanto manifestantes protestam em frente às lojas da montadora contra o papel do bilionário como principal defensor da polêmica iniciativa DOGE do ex-presidente Donald Trump. Alguns analistas de mercado ainda acreditam que Musk sabe de algo que os outros não sabem. “Acreditamos que a autonomia vale sozinha US$ 1 trilhão, e essa tese será comprovada nos próximos anos”, disse Dan Ives, da Wedbush Securities, à Forbes.
Musk e a Tesla não responderam aos pedidos de comentário. O mesmo aconteceu com Ashok Elluswamy, chefe do programa de veículos autônomos da Tesla.
“Lixo entra, lixo sai”
Musk apostou o futuro da Tesla em aplicações de inteligência artificial, incluindo robôs humanoides e fábricas inteligentes, abandonando a antiga meta da empresa de vender 20 milhões de veículos elétricos por ano até 2030. Um dos motivos pode ser a crescente concorrência no mercado de EVs, especialmente de empresas como a chinesa BYD. Outro fator é que, se a Tesla conseguir resolver a direção autônoma, será mais barato e lucrativo implantar centenas de milhares de robôs-táxis elétricos ao redor do mundo do que construir mais fábricas para produzir e vender milhões de veículos particulares.
Essa estratégia é tão central para a empresa que Musk não quer céticos comprando ações. “Se alguém não acredita que a Tesla vai resolver a mobilidade autônoma, acho que essa pessoa não deveria ser investidora”, falou o bilionário em uma teleconferência de resultados de 2024.
Em janeiro, ele anunciou que o vasto reservatório de dados da Tesla está sendo utilizado em seu novo centro de dados “Cortex”, em Austin, para aprimorar o software Full Self-Driving (FSD), que, apesar do nome, ainda exige supervisão humana o tempo todo.
Esse recurso baseado em IA, assim como o sistema original Autopilot da Tesla, certamente precisa de melhorias: ao longo dos anos, FSD e Autopilot foram associados a 52 acidentes fatais em todo o mundo.
“Ter acesso a fontes de dados únicas certamente representa algum tipo de vantagem”, disse o cientista da computação Alex Ratner, CEO da Snorkel AI, empresa que desenvolve software para automatizar a rotulagem de dados brutos. “Mas o velho ditado ‘lixo entra, lixo sai’ continua sendo tão válido quanto antes”, pontua Ratner, que tem um familiar trabalhando na Waymo, à Forbes. “Na curadoria de dados, como saber se um vídeo veio de um bom motorista ou de um mau motorista? Isso não é trivial e é extremamente importante, porque esses modelos aprendem com o que veem com mais frequência.”
Empresas que passaram anos refinando a IA para dirigir carros e caminhões com segurança, como Waymo, Zoox, Aurora e Waabi, focaram na criação de dados de qualidade que priorizam os chamados ‘casos extremos’, dominando situações de trânsito complexas ou perigosas por meio de simulações avançadas e testes estruturados no mundo real. Os dados da Tesla nem sempre representam esses eventos raros.
“Não há garantia de que todos os casos extremos que os carros precisam aprender estarão nos dados em quantidade suficiente para gerar um comportamento aprendido”, disse a especialista em IA Missy Cummings, professora da Universidade George Mason e consultora de órgãos reguladores federais e da Califórnia sobre tecnologia de veículos autônomos.
Mesmo identificar quais trechos de dados de direção são mais relevantes para o treinamento, em meio a milhares de horas de vídeos captados em estradas, é um grande desafio, disse um pesquisador e cientista da computação que conhece a abordagem da Tesla, mas pediu anonimato.
“Então você tem zilhões de quilômetros de dados. Como eles garantem que estão escolhendo exatamente as informações que realmente importam para o treinamento?”
É difícil dizer, já que a Tesla não tem sido transparente sobre seu processo. Tampouco é um membro ativo da comunidade de pesquisa em IA, onde engenheiros das maiores empresas de tecnologia frequentemente publicam artigos detalhando suas descobertas mais recentes.
“A Tesla praticamente não tem presença no circuito de pesquisa e desenvolvimento em IA – conferências, publicações, etc.”, disse LeCun. “É como se não existisse.”
Histórico Irregular
Os feitos da Tesla em direção à mobilidade autônoma ficaram repetidamente aquém das metas de Musk. Sua promessa de 2016 de que um Tesla conseguiria atravessar os EUA sem intervenção humana ainda não se concretizou. Sua meta de 2019 de ter um milhão de robôs-táxis operando até 2020? Nem perto.
“Elon tem exagerado e falhado em entregar o ‘full self-driving’ de forma consistente por quase uma década”, disse LeCun. “Para muitos de nós, era óbvio que todas essas promessas eram ou mentiras ou sinais de autoengano. Não entendo como alguém ainda pode acreditar em qualquer coisa que ele diz sobre esse assunto.”
Mas isso não impediu Musk de fazer promessas cada vez maiores — nem seus fãs mais fiéis de continuarem investindo nele. Os protótipos que ele apresentou até agora, no entanto, parecem bem distantes do que promete. Em outubro passado, ele organizou uma demonstração encenada do “CyberCab” da empresa, transportando participantes de um evento pelo estúdio cinematográfico da Universal Studios, em Los Angeles. Mas, mesmo em um espaço controlado, técnicos da Tesla foram vistos monitorando — se não controlando remotamente — os protótipos de baixa velocidade. Da mesma forma, as versões do robô humanoide “Optimus”, que serviram bebidas aos convidados, também eram controladas remotamente.
“Acho que, a longo prazo, o Optimus tem potencial para gerar mais de 10 trilhões de dólares em receita – é realmente insano”, disse Musk durante a chamada de resultados.
O verdadeiro teste acontecerá em junho, com o serviço piloto de robô-táxis da Tesla em Austin — supondo que seja lançado dentro do prazo. “Vamos analisá-lo muito cuidadosamente para garantir que não haja nada que tenhamos deixado passar”, contou Musk na mesma chamada. “Será um serviço de transporte autônomo pago em Austin em junho e, logo em seguida, em outras cidades dos EUA.”
Dominar a autonomia “não virá da Tesla”, disse LeCun. “Eles simplesmente não têm uma organização de pesquisa com liberdade suficiente e cientistas talentosos o bastante para conseguir isso”.
Musk tem muito a recuperar em relação à Waymo, da Alphabet, de longe a líder de robô-táxis nos EUA. Atualmente, a empresa opera seu serviço automatizado de transporte em Phoenix, São Francisco, Los Angeles e, desde a semana passada, Austin. No mês passado, anunciou que sua frota de cerca de 700 veículos estava registrando mais de 200 mil viagens pagas por semana. Ainda este ano, expandirá para Atlanta e planeja lançar em Miami no próximo ano. A Alphabet não divulga a receita da Waymo, mas a Forbes estima que tenha ultrapassado 100 milhões de dólares em 2024, com 4 milhões de corridas concluídas.
A Waymo já teve pequenos acidentes, mas, até agora, sua frota robótica não esteve envolvida em nenhuma morte. Enquanto isso, donos de Teslas frequentemente publicam vídeos de seus veículos realizando manobras perigosas no modo FSD, como quase colidir com outros carros em uma saída de rodovia em Nova Jersey ou avançar sinais vermelhos na China.
No fim das contas, a aposta de Musk na IA para a Tesla se resume ao potencial financeiro que ele enxerga para a empresa, vislumbrando trilhões de dólares em novas receitas nos próximos anos.
Para LeCun, da Meta, será necessária uma “mudança de paradigma” para que máquinas aprendam como o mundo funciona a partir de vídeos — algo que pode levar mais de uma década de pesquisa.
“Meu palpite é que não chegaremos a uma autonomia completa semelhante à humana — nem a robôs humanoides realmente práticos — até descobrirmos como fazer os sistemas de IA aprenderem sobre o mundo da mesma forma que os animais e humanos fazem.”