
Baseado em uma combinação de ensaios qualitativos e dados de pesquisa, o estudo Being Human in 2035, escrito pelos pesquisadores Janna Anderson e Lee Rainie, do Imagining the Digital Future Center, da Elon University, traz insights de 301 especialistas globais sobre como a integração da IA transformará a identidade humana e as estruturas sociais. Quase 200 desses especialistas escreveram respostas completas que foram incluídas no relatório.
Os cientistas preveem, de forma quase unânime, mudanças enormes no comportamento e nas capacidades humanas até 2035. A maioria (61%) destaca que essas alterações serão “profundas e significativas” ou “fundamentais e revolucionárias”.
Erosão das capacidades cognitivas e emocionais
Um tema recorrente no relatório é a possível erosão de funções cognitivas essenciais. Metade dos especialistas ouvidos consideram uma possível diminuição na disposição e na capacidade de refletir profundamente sobre questões complexas. A conveniência oferecida por resumos gerados por IA, respostas automatizadas e decisões automáticas pode reduzir o pensamento crítico sobre as informações apresentadas.
Esse enfraquecimento cognitivo vem acompanhado de preocupações com o desenvolvimento emocional. Metade dos especialistas antecipam uma queda na inteligência social e emocional, citando a substituição das interações humanas por relacionamentos mediados por IA como um fator decisivo. À medida que companheiros sintéticos se tornam mais personalizáveis e emocionalmente disponíveis, eles podem parecer preferíveis à natureza complexa — e, muitas vezes, confusa — dos relacionamentos humanos.
“Parceiros românticos gerados por IA proporcionarão relacionamentos ‘ideais’ que farão as parcerias humanas parecerem desnecessariamente difíceis”, escreveu Nell Watson, presidente do Escritório Europeu de Inteligência Artificial Responsável, em seu ensaio para o relatório. Essa mudança pode intensificar o isolamento e reduzir o desenvolvimento da empatia, especialmente entre os jovens.
Com o tempo, a mercantilização da conexão humana pode induzir indivíduos a medir seu valor com base em critérios digitais, em vez de em qualidades humanas intrínsecas. “As pessoas terceirizarão suas interações a agentes de IA, que ficarão responsáveis por determinar a compatibilidade e decidir se vale a pena ou não se encontrar pessoalmente”, acrescentou Courtney C. Radsch, diretora do Center for Journalism & Liberty no Open Markets Institute, que também contribuiu para o estudo.
Agência e autonomia sob ameaça
Talvez a preocupação mais profunda, do ponto de vista filosófico, levantada no relatório, esteja relacionada à agência humana. 44% dos especialistas calculam uma redução na independência individual, muitos acreditam que a IA irá, sutilmente, enfraquecer nossa capacidade de tomar decisões autônomas. À medida que sistemas algorítmicos se tornam mais presentes em áreas como saúde, direito e finanças, o julgamento humano pode ser deixado de lado em favor de resultados baseados em dados.
O risco aqui é duplo: além de possivelmente perderem a capacidade de agir de forma independente, os indivíduos talvez nem percebam essa mudança. A ilusão de controle — acreditar que estamos tomando decisões quando, na verdade, sistemas de IA estão nos influenciando — pode reforçar ainda mais a dependência de decisões externas.
A integração da IA à vida cotidiana também desafiará as noções tradicionais de identidade e propósito. Trinta e nove por cento dos entrevistados antecipam uma transformação negativa na forma como os seres humanos percebem suas identidades e propósitos, em contraste com 18% que enxergam mais mudanças positivas do que negativas e 24% que veem os impactos igualmente distribuídos.
Alguns preveem um senso fragmentado de identidade, ao passo que as pessoas equilibram múltiplas personas mediadas por IA nas plataformas digitais. Outros alertam que, com a onipresença da IA no trabalho e nos critérios de validação social, muitos enfrentarão uma crise de propósito.
Polarização e perda da realidade compartilhada
Outra tendência preocupante destacada no relatório é a perda da confiança em valores compartilhados e normas culturais. Quase metade dos entrevistados prevê um aumento da polarização e uma esfera pública fragmentada. Deepfakes, desinformação algorítmica e fluxos de conteúdo altamente personalizados podem corroer qualquer consenso sobre o que é verdadeiro ou real — o que também deteriorará o entendimento coletivo e a empatia.
“Uma das preocupações mais importantes é a perda de conhecimento humano factual, confiável e amplamente compartilhado”, argumentou Giacomo Mazzone, diretor de projetos globais no Escritório das Nações Unidas para Redução de Riscos de Desastres.
Essa perda da realidade compartilhada não é apenas uma questão técnica. Quando a verdade se torna relativa e as instituições perdem credibilidade, o contrato social que mantém comunidades e nações unidas começa a se desfazer. “Não há exemplos, na história humana, de sociedades que tenham sobrevivido por muito tempo sem uma verdade compartilhada”, acrescentou Mazzone.
Apesar dessas preocupações, o relatório também carrega uma nota de otimismo. Alguns especialistas argumentam que a IA, se desenvolvida e regulamentada de forma ética, pode servir como uma ferramenta para ampliar as capacidades humanas — e não reduzi-las. Isso inclui potencializar o aprendizado, personalizar os cuidados com a saúde mental e fomentar a colaboração global.
Com essa esperança, a consultora da Euromonitor, Rabia Rasmeen, sugeriu em sua resposta que “um novo Iluminismo humano poderia começar, graças a gêmeos digitais e outros agentes de IA que realizariam até seis horas de tarefas digitais por dia, permitindo que os humanos redirecionem essa energia para aspectos espirituais, emocionais e de vivência da vida”.
No entanto, não é preciso ser especialista para saber que, quando a vida se torna fácil e confortável demais, é comum perder o senso de propósito e motivação, em vez de sentir vontade de alcançar novos patamares. Resta torcer para que a IA nos prove o contrário.