Muito se fala sobre a importância da Revolução Verde realizada no Brasil durante a década de 1970, afinal ela tornou o país em um dos mais importantes atores para a segurança alimentar global. A Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), que hoje (27) apresentou o seu balanço social, foi uma das grandes responsáveis por este triunfo da agropecuária. Mas essa revolução somente aconteceu graças à visão de Alysson Paolinelli.
O engenheiro agrônomo de Bambuí (MG) foi um dos primeiros profissionais da área a discutir a importância do investimento em pesquisa e tecnologia para o campo. Ministro da Agricultura entre 1974 e 1979, embora não tenha sido o criador da empresa estatal, Paolinelli ajudou a definir o modelo da entidade que hoje conhecemos. Sua aposta foi o Cerrado brasileiro e deu certo. Hoje, a Embrapa estima que o Brasil é o responsável por alimentar 10% de toda a população mundial.
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Durante uma entrevista, em 1994, o pai da Revolução Verde no mundo, Norman Borlaug, reconheceu a importância do trabalho de Paolinelli para o Cerrado. “Acho que o Cerrado brasileiro está sendo palco da segunda “Revolução Verde” da humanidade. Os pesquisadores brasileiros desenvolveram técnicas que tornaram uma área improdutiva há 20 anos na maior reserva de alimento do mundo”, afirmou Borlaug. Agora, este reconhecimento a Paolinelli pode se tornar mundial, pois seu nome foi indicado ao Nobel da Paz de 2021.
Para entender sua experiência histórica com a Embrapa e o momento atual do Brasil, a Forbes entrevistou Alysson Paolinelli, atual presidente da Abramilho (Associação Brasileira dos Produtores de Milho) e indicado ao prêmio Nobel da Paz.
Forbes: Quando o senhor assumiu a Embrapa, pouco tempo depois da sua criação pelo Cirne Lima, em que pé estavam as discussões, no ministério da Agricultura, de qual seria o papel desse órgão do governo?
Alysson Paolinelli: Olha, foi uma discussão que eu considero importantíssima. Porque nós estávamos traçando um projeto que seria completo e estratégico para enfrentarmos uma situação. O Brasil era importador de alimentos, mas ele estava muito caro lá fora, por conta da escassez. Por isso, nossas compras eram esporádicas e o frete era muito caro. O alimento chegava aqui mais caro do que em qualquer lugar do mundo. Quase sempre, ainda caía na mão de um atravessador, porque eram poucos os importadores no país. Como resultado, o preço do alimento quase triplicava. Nós discutíamos a importância de tentar ajudar a família média brasileira, pois ela chegava a gastar cerca de 48% de sua renda só em alimentação. Ela não tinha as condições que precisava ter para vestuário, transporte, saúde e educação. Tudo isso estava prejudicado.
F: Como era o Brasil da época, de modo geral?
AP: Além do alto custo do alimento, o Brasil também passava por uma crise na área de energia. Em 1973, o Brasil importava cerca de 80% do petróleo que consumia. E a gente sabia que o país não teria, pela tecnologia da época, condição de encontrar petróleo nem em 30 anos. O que aconteceu, só com o Pré-Sal.
Por isso, a conta externa do Brasil ficou muito frágil. Qualquer economista sabia que o país não tinha recursos para mais cinco anos e entraria em default no mercado internacional; não teria como comprar o alimento e o petróleo. Foi aí que tomamos a decisão — antes de eu entrar no governo — de fazer uma estratégia para que o setor agrícola respondesse. Quando fui convidado para ser o ministro, definimos que a Embrapa seria a grande ponta de lança dessa estratégia.
Tivemos as condições de organizá-la como uma grande líder do processo de geração de conhecimento. Ela teve dinheiro para chamar as universidades e fazer um convênio para usar todas as suas competências. Também poderíamos usar todas as melhores cabeças pensantes das instituições estaduais de pesquisa. Isso deu à Embrapa, de saída, uma força muito grande, porque, além do seu pessoal, que era pouco, abrimos o concurso para mil profissionais. Essa foi a grande chave.
F: Como isso foi feito?
AP: Nós mandamos 1.530 profissionais para fora do país — os jovens mais competentes que tinham saído das universidade — e demos uma tarefa: “você vai no maior centro de pesquisa que houver no mundo para saber qual é a ciência mais moderna”. E eles fizeram isso.
A bolsa era régia, os pesquisadores poderiam ir e voltar do Brasil três ou quatro vezes por ano, sempre trazendo para o país seus conselheiros técnicos, que ajudaram nossos cientistas e fortaleceram toda a competência que o Brasil já tinha. Isso deu muita força à Embrapa — ela conseguiu conhecer as inovações e as tecnologias que eram necessárias para transformar o Cerrado em uma terra produtiva. Fizeram isso com muita competência, surpreendendo a todos nós. A ciência foi vital para sabermos que o Cerrado seria a terra mais produtiva e competitiva do mundo.
F: Qual foi a grande conquista da Embrapa com esta medida?
AP: Em um primeiro ano, a Embrapa já orientava produtores a mudar fisicamente as terras do Cerrado; tudo com ferramentas como o subsolador, equipamentos para romper camadas impermeáveis, etc. Tudo isso foi bolado rapidamente. Depois, veio a segunda fase, de recuperação biológica do Cerrado. Essa foi a grande conquista, porque finalmente sabíamos e podíamos fazer a transformação de um solo altamente degradado em um novo solo produtivo.
Nossa maior surpresa foi que, de ano a ano, o solo ia melhorando como resultado do trabalho que se fez. O produtor tinha as indicações e o apoio de nosso projeto, com assistência técnica, crédito e todas as condições necessárias. Foi um trabalho planejado, executado e avaliado ao longo do tempo.
F: Hoje, sabemos bem que as áreas de pesquisa e tecnologia são importantes para o fortalecimento do país, mas elas não possuem o incentivo necessário. Como o governo e a iniciativa privada podem ajudar mais a área de pesquisas e, consequentemente, a agropecuária brasileira?
AP: Isso é um grande drama. Por parte do governo federal, sabemos que precisa haver uma estratégia. Porque podemos achar empresários para a pesquisa aplicada, mas a pesquisa pura precisa de ainda mais suporte. Principalmente agora, pois desenvolvemos nossa agricultura de uma maneira dependente de elementos químicos que são caros. E alguns compostos para defesa de doenças e pragas também ajudam a complicar, afinal os consumidores não gostam que isso seja usado.
Por essa razão, o Brasil está passando por uma fase nova. Eu acho que a gente tem que repetir o que foi feito em 1974 [ano em que Paolinelli assumiu o ministério da Agricultura]. Nós precisamos usar a biologia como forma de controle das doenças e pragas. Essa fase é importantíssima.
F: De que forma o país pode se preparar para ela?
AP: Precisamos colocar as instituições que tenham capacidade à frente, pois elas podem dar indicações mais rápidas através da pesquisa de laboratório. O governo precisa entender isso. Sabemos que o país está apertado, está com uma dívida quase impagável, mas precisa ter o discernimento para ajudar e não deixar a Embrapa como está hoje. Ela não tem um tostão para investimento e 2,6 mil doutores com pós-graduação estão sendo subutilizados. Nossa ministra [Tereza Cristina], que é super competente e dedicada, sabe disso, mas ela não tem o dinheiro. Essas pessoas da área técnica precisam ter mobilidade e recursos para completar seus projetos na área biotecnológica. Por exemplo, a doutora Johanna Döbereiner fez uma economia bilionária ao Brasil quando conseguiu captar nitrogênio com o apoio de bactéria, fungo e uma leguminosa, como a soja. Com isso, ficamos livres da importação de nitrogenados. Isso é importantíssimo, temos que continuar com isso. Ela já morreu, mas a equipe dela ainda está aqui, buscando novas soluções.
F: Qual o caminho para o mundo enxergar, definitivamente e sem contestação, a importância do Brasil na segurança alimentar global?
AP: Hoje já é mais de 10%, e vamos passar a alimentar muito mais do que isso. Em 2050, o mundo terá mais 2,5 bilhões de pessoas. Elas estão nas áreas que mais se desenvolvem, como China, Índia, Indonésia e África. Essas quatro regiões têm mais da metade da população mundial e estão crescendo três vezes mais em relação à média dos países ricos.
As famílias que vão chegar em 2050 terão mais recursos, com maior vontade de se alimentar melhor. Portanto, a demanda será maior. A FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) estima que a demanda crescerá entre 61% e 70%. E ela sabe que só o Brasil pode atender a essa porcentagem. Isso tem que ser discutido, pois o Brasil passou a ser a chave da sustentação e segurança da oferta de alimentos.
F: Como o senhor avalia o Código Florestal quase dez anos após sua publicação?
AP: Olha, ele está demonstrando que o Brasil é sério e quer ser um grande repositório dos recursos naturais do mundo. O país ainda tem 66,35% da sua vegetação nativa imexível. Nós fazemos o contrário do que é feito em muitos países, pegamos a terra mais degradada e transformamos na mais produtiva. O Cerrado ainda possui 54% de sua área imexível, mas conseguimos alimentar o mundo só com o que está disponível hoje. Temos duas inovações que são capazes de fazer isso: a Integração Lavoura Pecuária Floresta — uma inovação que usa o solo durante 12 meses do ano com quatro tipos de culturas — e a irrigação.
F: A indicação do seu nome ao prêmio Nobel foi uma surpresa?
AP: Olha, foi! Sei que foi um gesto surgido de companheiros que comigo lutaram 40, 50 anos juntos — nós não paramos de trabalhar. Esses companheiros, alguns quase irmãos pelo tanto de tempo juntos, acabaram por me indicar como a representação do que de fato é o Brasil.
Então, eu digo a eles, “esse prêmio que vocês estão me indicando não seria meu, mas sim do Brasil”. Seria do cientista, do técnico que montou projetos de política pública viáveis e do agricultor, a grande peça dessa evolução. Quem merece esse prêmio não sou eu, é o Brasil.
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