No centro de tudo estão os cavalos. São eles que ligam profissionais da saúde com crianças, adultos e idosos atendidos pela AEV (Associação Equoterapia Vassoural), localizada em Pontal, a cerca de 40 quilômetros de Ribeirão Preto, um dos principais municípios do interior paulista. Todos são atendidos gratuitamente, independentemente da situação financeira. Tem fila de espera o projeto de equoterapia por onde já passaram cerca de 600 pessoas, com 26 mil atendimentos e capacidade de manter 60 pacientes em tratamento. “A gente vai fazendo parcerias e projetos para manter a equoterapia na fazenda”, conta a agropecuarista Beatriz Biagi Becker, 66 anos, sócia da fazenda Vassoural, mãe de três homens e que já é avó. “Precisa ter coração forte, mas é uma alegria poder contribuir para melhorar a vida das pessoas e ver que estou deixando um legado para meus filhos e netos.”
Quem ouve Bia Biagi, como é conhecida entre seus pares, até pode pensar que ela está prestes a se aposentar e deixar o trabalho da equoterapia, já que desde o ano passado um dos seus filhos é o diretor da AEV. Ledo engano: Bia sabe tudo o que acontece e comemora os passos de independência da equipe que possui cinco profissionais, entre fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, psicólogo e veterinário, aumentado a turma à medida que seja necessário em função de projetos. Atualmente são 10 profissionais em atividade, todas mulheres.
“Hoje sou eu que aprendo com elas, porque são muito competentes.” Bia Biagi é dona da Beabisa, empresa que divide com os filhos as atividades de pecuária, agricultura e empreendimentos imobiliários em terras de fazendas próximas às cidades. Ela é a diretora de operações da pecuária, além de ser uma das herdeiras na holding Inova, que mantém junto com uma irmã e quatro irmãos administradores do legado da usina Santa Elisa, um dos maiores grupos do setor de bioenergia e pioneiro na produção de etanol no país, além de açúcar.
As lições dos cavalos
Bia Biagi conta que as primeiras lembranças com cavalos são de quando ela tinha quatro anos e que a partir daí não consegue se ver dissociada desses animais. “Eram cavalos de serviço na fazenda e sempre foram minha paixão”, afirma. “Mas não era gosto do meu pai que eu criasse cavalos porque, para ele, esses animais eram supérfluos na fazenda.” Além disso, uma queda em que Bia quebrou o braço e desmaiou, e que poderia ser considerado um incidente pequeno, levou a mãe grávida a perder o bebê.
Mas mesmo com o trauma, o sentimento que nutria pelos animais fez com que os pais se dobrassem ao seu desejo e os cavalos não saíram da fazenda. Mas, com o tempo, impuseram uma condição para que ela fosse uma criadora: era preciso estudar. O ano de 1975 marcou sua entrada na raça mangalarga, enquanto se tornava uma estudante de zootecnia na Unesp (Universidade Estadual Paulista), em Jaboticabal. Foi na faculdade que Bia conheceu o professor Valter Becker, um dos nomes mais importantes da história da transferência de embriões no país, que se tornou seu marido. Bia então deixou a universidade para acompanhá-lo em um doutorado na Alemanha. E a vida continuou dando solavancos.
Em 1989, Bia perdeu o marido e passou a cuidar de tudo sozinha, porque nessa época o pai também já havia falecido. “Minha vida foi marcada por acontecimentos muito fortes”, diz ela, sem mágoas da história. “Junto com os amigos, os cavalos ajudaram muito na minha recuperação porque eles têm uma função terapêutica.” Os amigos, no caso, eram grandes criadores de cavalos, amigos do pai, que continuaram juntos de Bia, como Eduardo Junqueira, principal família que forjou a raça mangalarga no país. Ela, então, contratou um hipólogo, especialista que estuda cavalos, e fundou em 1990 uma escola de equitação que durou oito anos. Não por acaso, ela é uma das fundadoras do Núcleo da Alta Mogiana de Mangalarga, que está completando 30 anos.
Mas faltava algo, segundo Bia. “A escola atraiu não apenas quem queria montar, mas também aprender as técnicas da montaria. Mas a escola não era a atividade principal e interferia na lida da fazenda.” Bia tem um dos trabalhos de melhoramento de bovinos nelore e ovinos santa inês mais respeitados do país, referência em genética animal. Ela também faz parte do NFA (Núcleo Feminino do Agronegócio), o grupo mais antigo de mulheres do setor que tem inspirado outras mulheres a se organizarem.
O nascimento de um sonho
A criadora, então, que não queria abrir mão dos cavalos – e que já tinha na pele a marca do bem que os animais provocam na vida de uma pessoa –, começou a estudar equoterapia no início dos anos 2000, até que em 2003 nasceu o seu projeto mais ambicioso: salvar vida e que ela não fosse apenas a sua. “É um privilégio ter esses animais e queria proporcionar mais coisas boas não só para mim”, diz ela. “Vi muita criança com paralisia cerebral que não tinha o tronco ereto, começar deitada no lombo do cavalo e depois se levantar. Vi crianças que não andavam, sair andando.”
Ela conta o caso de trigêmeos, em que um deles tinha deficiência e que os outros dois irmãos participavam dos atendimentos para servirem de espelho. E conta também a história de uma amiga. “Eu vi minha amiga, uma super esportista, ficar tetraplégica por causa de um acidente em uma corrida de bicicleta”, afirma. “São as histórias de superação que me dão muita força para continuar.”
A AEV, associada à Ande (Associação Nacional de Equoterapia), começou atendendo crianças das APAEs ( Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais ) de Pontal e de Sertãozinho, cidade vizinha, e hoje atende também quem procura pelo serviço, independentemente da idade. Em junho, entre 50 estudos do mundo todo, apresentados durante o HETI 2021 (Congresso Internacional de Equoterapia), realizado em Seul, Coréia do Sul, um trabalho científico brasileiro foi premiado em segundo lugar, ficando atrás apenas de outro estudo da Alemanha. Nele estava a digital do trabalho de equoterapia de Bia Biagi. Entre os nove autores do estudo, duas são da AEV: Elaine Cristina Soares Leite, fisioterapeuta e vice-presidente da escola, e a equitadora Christiane Maus Martins.
Em 2019, durante três meses, os pesquisadores avaliaram 16 pessoas com idades entre 60 a 79 anos, moradoras de um lar para idosos e frequentadores de um centro de convivência. Os dados coletados e as análises estatísticas mostraram os efeitos da equoterapia no chamado sistema estomatognático, um conjunto de estruturas bucais que interferem, por exemplo, na dinâmica da fala. A pesquisa contou com a orientação de duas doutoras da FORP/USP ( Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo).
Atualmente, a AEV conta com quatro cavalos treinados para os atendimentos e dois em treinamento. Para serem cavalos terapêutas, junto com os profissionais da saúde, é preciso que sejam dóceis, calmos, concentrados, gostem do toque humano e não liguem para sons, cenários e movimentos diferentes em suas rotinas. O árduo trabalho, diz Bia Biagi, compensa. Para ela, o ápice ocorre todo final de ano, quando uma apresentação a cargo dos frequentadores da Vassoural mostram às famílias e convidados a evolução do trabalho em forma de dança e teatro, por exemplo.
Outro momento é a realização das chamadas provinhas e endurinhos, uma modalidade visando as paraolímpiadas. “Agora, na pandemia, tivemos que nos reinventar, porque tudo ficou fechado desde o início do ano passado, até outubro, quando começamos a voltar com restrições”, afirma. A equipe então, passou a fazer lives e exercícios, sem cavalos, para que o público não perdesse os ganhos do tratamento, além do suporte às famílias. “As famílias das crianças também precisam de apoio, por isso o trabalho continua além dos cavalos, e reinventa, vai se transformando e faz diferença na vida de todos.”
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