Com pouco dinheiro no bolso, eles deixaram a vida modesta em Goiânia e imigraram para os Estados Unidos, em 1999. Na cabeça, um objetivo: garantir educação e segurança aos três filhos pequenos. Mais de 20 anos depois, os Mendes, que hoje também atendem por Redwood, conquistaram, além dos sonhos que levavam na bagagem, um feito inédito entre brasileiros imigrantes. Eles se tornaram donos de um império de cannabis que comercializa medicamentos, comestíveis, cigarros e até produtos de higiene pessoal feitos da erva. Fazem sucesso ainda com a venda de máquinas desenvolvidas por eles próprios para a colheita e extração dos compostos da planta, o que atualmente representa parte significativa dos quase US$ 2 milhões de faturamento da USA Hemp.
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As últimas duas décadas foram de trabalho intenso para Corina (44 anos), José (47) e os filhos Rafael (27), Gustavo (25) e Ana Carolina (24), envolvidos na administração dos negócios da família desde a adolescência. Nos primeiros dois anos em solo americano, o patriarca trabalhou primeiro como pedreiro na construção civil e, depois, como caminhoneiro, atividade que já havia exercido em Goiânia. Cansado das longas viagens, José voltou para a construção civil. Desta vez com mais capital, o que possibilitou a compra de um terreno, logo revendido. A situação melhorou até 2008, quando perdeu tudo com a crise imobiliária que atingiu em cheio seu setor.
Corina segurou as pontas com bicos de faxineira, manicure e decoradora. Este último trabalho prosperou, e ela abriu uma empresa de decoração onde colocava os filhos e o marido para trabalhar também. “Era labuta seis dias por semana. Saíamos do último evento no sábado de madrugada e Corina colocava todo mundo no carro para viajar e desfrutar o domingo, nosso único dia de folga. Por mais duro que fosse, ela sempre fez questão de celebrar”, lembra José. Até então, a família do Centro-Oeste brasileiro tinha pouco conhecimento e até mesmo aversão à maconha. Nos Estados Unidos, após décadas de perseguição à erva e aos seus consumidores, começava o debate pela legalização.
Trabalho de escola
Rafael, o filho mais velho, então com 17 anos, interessou-se pelo assunto. Cursava o último ano do colégio. Para o trabalho de conclusão, apresentou uma detalhada pesquisa sobre os potenciais benefícios da erva na saúde, na indústria e na economia. Para além da desaprovação dos professores, Rafael conseguiu o feito de plantar, em seus irmãos, a semente da ideia do que, um dia, viria a ser o império familiar de cannabis.
Obcecados, os três adolescentes devoravam livros, revistas, jornais e todo tipo de informação sobre o tema. Rafael, Gustavo e Ana Carolina passaram dois anos nessa toada até que, em 2015, o Oregon legalizou o cultivo da erva. Tiveram então uma conversa séria com os pais. Era apostar tudo e correr o risco de ficarem milionários ou esquecer essa história de cannabis e seguir trabalhando seis dias por semana em trabalhos informais.
Resolveram encarar. Venderam todos os ativos que possuíam, tomaram o máximo de empréstimos, usaram os limites dos cartões de crédito e convenceram amigos e familiares a juntar fundos de investimento para iniciar a plantação. “Todas as pessoas mais velhas a quem perguntávamos eram completamente contra a ideia; os mais jovens adoravam o conceito e alguns concordaram em correr o risco conosco”, conta Gustavo.
Encontraram em Molalla uma fazenda de 76 acres (30,7 hectares) por US$ 2,5 milhões e fecharam negócio no fim de 2015. Ali, montaram uma das primeiras 30 plantações legais do Oregon e uma das 100 primeiras com autorização para o cultivo de THC dos EUA. “Era um mercado novo com pouca ou nenhuma referência”, recorda Corina.
Poço com mola
“Foram 200 erros para cada acerto, mas ninguém desistiu, pois ensinamos a eles que o fundo do poço tem mola.” Rafael, Gustavo e Ana Carolina até tentaram conciliar os negócios com os estudos em geologia, química e advocacia, mas desistiram das respectivas formações quando se deram conta de que a USA Hemp era um projeto tão exigente quanto promissor. Bastaram dois anos para decidirem expandir a produção e diversificar o cultivo, agora com foco no cânhamo e em seu potencial medicinal.
Plantaram dez hectares de área de cânhamo – de onde se extrai o óleo de canabidiol (CBD), conhecido por suas características terapêuticas. Viraram uma das fazendas com maior área cultivada de cannabis do mundo. A extração de canabinoides, no entanto, tinha um custo muito elevado para a USA Hemp. Então, lá foram os Mendes pensar juntos em uma solução capaz de baratear o processo. Rafael e Gustavo encontraram em máquinas chinesas de extração de cafeína uma tecnologia parecida com a de que necessitavam para extrair o CBD da flor de cannabis. Foram meses de tentativa e erro até criarem uma máquina que cumpria – e superava – o esperado.
Após o primeiro ano de sucesso no cultivo da safra de cânhamo, dedicaram-se a criar sua própria seleção de sementes de alta qualidade e multiplicaram a aposta, aumentando a área de cultivo de dez para 110 hectares. Um passo maior que a perna e perdas aproximadas de 90%. Quase perderam tudo. Começaram a estudar equipamentos de colheita de processo similar. “Não havia equipamento de colheita automatizado para fazendas em grande escala. Por necessidade, decidimos inventar um. Desmontamos as máquinas para ver como funcionavam por dentro e vimos que para colher uma flor preservada teríamos que fazer ajustes”, detalha Gustavo, sobre o processo de criação de uma das primeiras colheitadeiras de cânhamo do mundo.
A safra seguinte foi tão bem-sucedida que eles passaram a receber mais de 50 ligações por dia de agricultores de todas as partes dos Estados Unidos interessados no novo equipamento. Assim nascia a USA Hemp Combines, vendendo tecnologia capaz de substituir até mil trabalhadores por dia. As mais de 40 máquinas vendidas até agora aportaram R$ 3 milhões à empresa e muitas facilidades aos compradores. “Não conheço nenhum outro equipamento de colheita que chegue perto de produzir biomassa de alta qualidade com tão pouco caule. Isso nos salvou de ter que construir armazéns adicionais e contratar um exército de trabalhadores.
A colheita exige trabalho, mas a quantidade de pessoas necessária é muito mais administrável”, revela Van Nedergard, diretor da A&K Development, que comprou duas máquinas da USA Hemp em 2020. “Eu e meu sócio ficamos muito impressionados com o Rafael e com quem interagimos na empresa. Eles foram confiáveis e se esforçaram para ser úteis de várias maneiras.”
Redwood Reserves
Ainda em 2018, os Mendes toparam mais um desafio: lançar a Redwood Reserves, uma divisão focada na produção de flores de CBD para fumar. Segundo a USA Hemp, Redwood Reserves foi o primeiro cigarro de maconha no mercado. Ana Carolina é a CEO da marca, e uma das mais jovens mulheres executivas na indústria da cannabis, com 23 anos. Ela administra uma empresa de US$ 12 milhões que está presente em mais de 5 mil locais de varejo do país.
Com a operação comercial funcionando de vento em popa, a família dedica mais tempo à filantropia. Em 2021, eles doaram mais de US$ 1 milhão em produtos a pacientes no Brasil e no mundo. Querem dobrar o valor no ano que vem.
Esse movimento começou há cinco anos, com a doação de medicamentos a milhares de veteranos de guerra que sofrem de estresse pós-traumático. “Redirecionamos valores que gastaríamos com publicidade para doações que realmente mudam a vida de quem precisa e não tem condições de pagar”, explica Corina.
Ela acrescenta que a fundação pretende não só oferecer tratamento para pessoas carentes como também doar sementes para associações de pacientes, além de construir um laboratório de análise e controle da produção caseira das instituições e dos pacientes autorizados a plantar.
Laboratório no Brasil
Com vendas de mais de US$ 25 milhões desde 2015, a USA Hemp continua a todo vapor na sua missão, negociando parcerias com universidades públicas e privadas no Brasil para o desenvolvimento de pesquisas, cursos e simpósios voltados para os tratamentos medicinais com cannabis.
Pretendem trazer ao Brasil o primeiro laboratório de extração de cânhamo com CO2 da América Latina, com a mais alta tecnologia e as melhores práticas, seguindo as diretrizes da Anvisa. A expectativa de investimento da empresa no Brasil é de US$ 15 milhões, o que acarretará também a geração de pelo menos 300 empregos na área.
“Temos muito orgulho de ser uma empresa fundada e administrada por brasileiros, a primeira a realmente trazer capital de fora para investimento interno”, contam os Mendes, que, como forma de agradecimento às oportunidades que tiveram nos EUA, adotaram e registraram o novo sobrenome americano, Redwood.
A inspiração veio das árvores centenárias de mesmo nome: elas são resistentes porque suas raízes se entrelaçam e se fundem, o que lhes dá força suficiente para resistir a tornados, furacões e outras intempéries. Faz sentido.
*Reportagem publicada na edição 91 da Revista Forbes Brasil