No mais recente trabalho do Cicarne (Centro de Inteligência da Carne Bovina), órgão da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) na unidade Gado de Corte, em Campo Grande (MS), os pesquisadores mostraram quais os principais mitos sobre pecuária e GEEs (Gases de Efeito Estufa).
Os pesquisadores Sergio Raposo de Medeiros, Fernando Rodrigues Teixeira Dias Guilherme e Cunha Malafaia contam que a ideia é tirar dúvidas por conta das recentes polêmicas em relação ao consumo de carne como forma de reduzir o aquecimento global. De acordo com o trio, “muitas pessoas fizeram várias declarações sobre a pecuária e suas emissões de GEE. Muitas delas sem o devido amparo da ciência”.
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Foram reunidos e analisados 10 pontos sobre o tema de forma a qualificar o debate. Para o Cicarne há dois riscos: os usuais exageros que costumam circular nos vários canais de comunicação e a ideia que o setor da pecuária não deve se preocupar com o tema.
Um dos mais recentes embates em torno da proteína se deu com o movimento “Segunda sem carne”. Para o Cicarne, caso houvesse uma adesão de 100% dos consumidores de carne brasileira (inclusive da nossa carne exportada), a redução das emissões globais não chegaria a 0,1%. Isso porque todo o rebanho brasileiro (incluindo todos os tipos de animais de criação) emite menos do que 1% dos GEE globais. O grande vilão dos GEE é o carbono que vem da queima de combustíveis fósseis, ou seja, uma “Segunda sem carro” seria bem mais adequada. Confira no que se baseiam os 10 pontos abordados pelos cientistas da Embrapa:
1 – A pecuária tem emissão maior do que o setor de transporte
Usando dados da Universidade de Oxford de emissão global por setor de 2016, de cada 100 quilos de GEE, a pecuária e seus dejetos seriam responsáveis por 5,8 quilos, enquanto o setor de transporte é responsável por 16,2 quilos, ou seja, o transporte emite quase três vezes mais GEE.
O mito da emissão maior pela pecuária foi criado por um relatório da ONU de 18 anos atrás, cujo título já adiantava um viés que não deveria haver em um documento dessa natureza: “A grande sombra da pecuária”.
A maior crítica nessa comparação é que, no caso do transporte, teria sido contabilizada apenas a emissão direta da queima de combustíveis fósseis, mas, no caso da pecuária, as emissões indiretas envolvidas na cadeia produtiva foram consideradas.
2 – A redução de metano entérico exige mudanças que podem inviabilizar a pecuária
Conforme vão surgindo as informações sobre o aquecimento global e o papel do metano entérico, inclusive com ameaças de taxação da produção ou outras restrições, é natural que o pecuarista se sinta incomodado e temeroso que seu negócio seja impactado negativamente.
Há, contudo, grandes oportunidades para o produtor, uma vez que várias opções de redução de pegada de carbono têm custo marginal negativo, isto é, elas aumentam a rentabilidade do produtor.
Por exemplo, a suplementação com proteinados na seca que são capazes de reduzir o tempo de abate em até um ano, ou seja, não só é um ano a menos de emissão, mas a emissão ao longo do tempo, por quilo de carne produzida, também é menor. Não raro, a relação benefício – custo do uso do proteinado chega a 3 para 1, ou seja, para cada real investido, três reais são ganhos no ganho de peso.
Por outro lado, práticas de intensificação sustentável, como o uso de proteinado, dependem de algum investimento extra: além do desembolso na compra do proteinado, é necessário ao menos dobrar a estrutura de cochos da fazenda, considerando que ela seja adequada à suplementação mineral. Assim, muitas vezes as práticas de intensificação sustentável, como o proteinado, dependem de algum investimento extra.
Há, portanto, sempre o risco desse processo alijar os produtores com menor capacidade de investimento e gestão. Isso deve ser foco da atenção de todos, podendo ser, inclusive, alvo de políticas públicas que garantam essa travessia para níveis superiores de produção para o maior número possível de produtores.
3 – A única maneira de reduzir a emissão de metano é reduzindo o rebanho
Reduzir a parte do rebanho que gera ineficiência ao sistema (confira item 8) é interessante para reduzir as emissões, mas não a única forma. Há várias estratégias que podem ser usadas para reduzir a emissão.
Evidentemente que intervenções nutricionais, como o uso de valores mais elevados de gordura na dieta ou uma formulação com menor teor de fibra, têm destaque. Aditivos de vários tipos estão disponíveis e, apesar dos efeitos nem sempre serem consistentes, acabam ajudando.
Recentemente, foi lançado pela DSM, multinacional de nutrição, o primeiro aditivo especificamente desenvolvido para reduzir a emissão de metano entérico e o Brasil foi um dos primeiros países a receber sinal verde das autoridades. Os resultados de pesquisa mostram que se pode esperar, em média, redução de 30% na emissão.
4 – Não faz diferença a métrica que usamos, afinal é tudo GEE
Um animal em uma pastagem rapada e seca emite menos metano do que um animal em confinamento, o que parece ser um contrassenso quando se considera as reiteradas informações de que melhores desempenhos costumam reduzir a emissão de metano.
Ora, o animal em pasto rapado emite menos porque come menos, mas, evidentemente, engorda menos. Para consertar essa distorção, a métrica em que a emissão é dividida pelo ganho de peso faria mais sentido.
A outra grande vantagem dessa métrica é que, ao se calcular a emissão por unidade de produto (por exemplo, quilo de carne produzida), fica claro que a redução deve ser da emissão por unidade de produto e não da produção do alimento.
5 – Pecuária intensiva aumenta a produção por área, portanto reduz a emissão
Na verdade, o aumento de produção por área pode ter o efeito oposto e aumentar as emissões. Ao se elevar o número de animais por área, a resposta esperada é um menor desempenho individual, pois com a forragem disponível mais disputada, reduz-se as chances dos animais selecionarem as partes mais nutritivas das forrageiras.
Como há uma relação inversa entre a digestibilidade da dieta e a produção de metano na fermentação ruminal, deve-se esperar um aumento na emissão por quilograma de forragem ingerida. Na hipótese da menor digestibilidade da dieta reduzir o consumo da forragem, isso serviria como uma compensação e o animal pode acabar emitindo igual, ou até menos que antes.
6 – A pecuária feita com pastagens em boas condições tem balanço positivo de carbono
Já há trabalhos mostrando situações em que o carbono sequestrado no solo sob pastagem contribui para um balanço positivo de carbono numa fazenda de produção pecuária, isto é, em que há mais carbono fixado do que emitido.
O importante aqui é destacar que foram situações de produção, em geral, bem superiores à média brasileira, e seria errado extrapolar esse resultado para a pecuária bovina brasileira em geral.
Falta entender melhor a dinâmica do C em solos sob pastagens e se a contabilização de todo o C medido, como feito nesses trabalhos, seria a melhor opção, pois não há ainda consenso e muitos defendem que apenas as frações mais resistentes deveriam contar, por serem menos passíveis de retornarem à atmosfera. Isso é melhor discutido no próximo item.
7 – A resistência em aceitar o sequestro de C no solo pelas raízes das plantas é para desconsiderar uma vantagem de países com pecuária baseada em pastagem
A questão do C no solo é tanto a mais importante, como a mais complexa. O fato é que a medição dos estoques de C no solo é uma medida muito trabalhosa, cara e com resultados muito variáveis.
Por vezes, apenas em um horizonte de vários anos é possível detectar aumentos do C no solo. Assim, técnicas mais baratas, acuradas e precisas têm sido buscadas. Outra questão que gera resistência em aceitar o C no solo seria porque grande parte dele seria muito lábil, isto é, perturbações no solo (como seu preparo) podem rapidamente fazer parte do C retornar à atmosfera.
Assim, outra busca seria a de medição de frações mais resistentes e que poderiam ter menos resistência da comunidade científica internacional de serem aceitas como C sequestrado. Essa é uma agenda que interessa muito ao Brasil, com sua pecuária baseada em pastagens e solos com grande potencial de sequestrar C.
8 – O metano entérico tem vida curta, se transforma em gás carbônico e é usado pelas plantas em razão de seu crescimento, portanto os ruminantes não têm nada a ver com o aquecimento global
Ultimamente, excelentes pequenos vídeos animados têm defendido este argumento e, de fato, considerando um rebanho estável, o metano entra no ciclo do carbono (C) e o nível desse gás, portanto, permaneceria estável.
Todavia, o importante aqui é reconhecer a possibilidade de produzir a mesma quantidade de carne (ou até mais), com um rebanho menor. Por exemplo, se aumentarmos a média de fertilidade brasileira dos atuais 65% para 80%, precisaremos de cerca de 10 milhões a menos de vacas para a mesma produção de bezerros.
Vacas que falham na reprodução são exemplo, portanto, de animais que emitem GEE sem a contrapartida de produção de carne. Outros exemplos seriam as novilhas que tardam a entrar na vida reprodutiva e animais que perdem peso.
9 – É usado o GWP para prejudicar os pecuaristas
O GWP, sigla em inglês para “Global Warming Potential”, ou seja, potencial de aquecimento global, é uma métrica que coloca os GEE em uma moeda única. Mais especificamente, é usado o GWP100, expresso em CO2- equivalente (CO2-eq).
Uma tonelada de CO2-eq é o efeito climático pelo período de 100 anos de um pulso de emissão de 1 t de um gás. Por definição, o GWP100 do CO2 é igual a 1. Ele é 28 e 256, respectivamente para CH4 e N2O, mostrando que esses GEE têm maior capacidade de aquecimento muitas vezes maior que o CO2.
Há outras métricas propostas e uma delas seria o GTP (Global Temperature Potential) que, ao contrário do GWP, que seria o aquecimento ao longo de um determinado período, seria o efeito na mudança de temperatura no final do período. Os valores deste último para a metano seriam mais baixos, o que levanta a suspeita de má vontade dos cientistas do IPCC que a escolheram contra a pecuária.
Ocorre que, para a maioria dos dados, os valores de GWP e GTP costumam ser equivalentes e o GWP seria mais fácil de calcular e teria uma menor variabilidade, o que poderia justificar sua escolha. Ainda assim, há quem defenda que o GTP seria melhor. Todavia, antes que algo de fato mudasse, surgiu um novo candidato: o GWP.
10 – Quem defende o GWP tem interesse apenas em ajudar os pecuaristas
Ainda nessa linha de métricas alternativas para fazer uma “moeda “ única para os principais GEE, surge o GWP. O motivo de buscar essa nova alternativa seria porque o GWP100 não representaria o real impacto dos gases, pois, por exemplo, a maior parte do impacto climático resultante da emissão de CH4 ocorreria dentro de poucas décadas e compará-lo considerando o período de 100 anos, distorceria o resultado.
Pela forma como o GWP é calculado, capturam-se melhor os efeitos da constante retirada de emissões passadas de CH4 da atmosfera. Publicação recente[2] mostra que, quando se aplica GWP*, o impacto relativo do CH4 da agropecuária é 33% menor que com GWP100. Aqui inverte-se a dúvida e questiona-se se ele teria surgido para beneficiar os setores que emitem metano.
Na verdade, por representar melhor a realidade, a maior vantagem e seu uso é que ele permite perceber melhor o que realmente faz diferença. Por exemplo, o GWP, por distorcer a vida útil do metano, é menos sensível às reduções de emissão desse GEE do que o GWP* e, portanto, não se percebe tanto a vantagem em sua redução. O uso do GWP mostra que a redução do metano é interessante, exatamente, porque é a forma mais rápida de reduzir os GEE.