Tentar entender a confusão de informações de vários setores, dados de mercado e boicotes desencadeados na invasão da Ucrânia pela Rússia pode levar à pergunta se ainda há alguma parte da economia global que esses dois países ainda não impactaram de alguma maneira.
Duas culturas ilustram bem o que ocorre. Ucrânia e a Rússia são conhecidas pela produção de trigo. Para a campanha de comercialização de 2020/21, o USDA (Departamento de Agricultura dos Estados Unidos) estima que os dois países foram responsáveis por quase 28% das exportações mundiais de cereal – pouco menos de um terço da Ucrânia, que ficou em sexto lugar no mundo (e um dos cinco primeiros foi o bloco de 27 países da UE (União Europeia). A Rússia é a número 1 e os EUA fica em terceiro.
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Em 1º de fevereiro, o USDA havia projetado a contribuição combinada da Ucrânia e da Rússia, no atual ano comercial, em cerca de 30% das exportações globais, com a Ucrânia fornecendo cerca de 41% desse total e subindo para o quarto lugar no mundo entre os maiores exportadores – superando os EUA, em quinto lugar – e a Rússia deslizando para o segundo lugar, atrás da UE.
Mas não é apenas no trigo que a agricultura da Ucrânia cresceu em importância. Nos últimos 15 anos, o país tornou-se um participante maior nas exportações mundiais de milho no ano passado, informou Cary Sifferath, diretor sênior de programas globais do Conselho de Grãos dos EUA. No ano comercial de 2020/21, o USDA listou a Ucrânia como a terceira força mundial em exportações de milho, atrás dos EUA e da Argentina; e a agência projeta que cairá apenas para o quarto lugar neste ano de comercialização (com o Brasil recuperando o status de Top Three).
Sifferath observou que antes de 2007, por exemplo, os agricultores dos EUA desfrutavam de 80% da participação de mercado do milho comprado pelo Egito. E Dave Lehman, que se aposentou há quatro anos como diretor administrativo do CME Group Research and Product Development, disse que o Egito é o principal comprador do trigo ucraniano para usar em seu programa de pão subsidiado, porque os custos de transporte da região do Mar Negro são muito menores do que comprar dos EUA.
Alguns dias após a invasão da Rússia, em 24 de fevereiro, o governo da Ucrânia fechou seus portos e anunciou que permaneceria assim até que a invasão terminasse. E embora os portos russos permaneçam abertos, o Egito cancelou as compras de trigo daquele país – um movimento significativo do que Dave Hightower diz ser o maior importador individual de trigo do mundo.
No final da semana passada, Hightower – diretor fundador do The Hightower Report, uma empresa de pesquisa financeira de commodities em Chicago – disse que, mesmo sem boicotes formais ao trigo russo, já havia sanções de fato sendo colocadas em prática. Ele explicou que os custos de envio dos portos russos triplicaram desde a invasão, e as empresas estão se recusando cada vez mais a fazer negócios com o país. Lehman acrescentou que os EUA e aliados cortando o acesso da Rússia aos bancos também dificultam os negócios de exportação.
Um dos portos temporariamente fechados é o de Odesa, uma importante saída para toda a região localizada no extremo sul da Ucrânia, no Mar Negro. O tipo de trigo que sai de lá, observou Hightower, é muito semelhante ao trigo de inverno plantado nos estados das planícies dos EUA, atualmente estressados pela seca.
O trigo plantado na Ucrânia
O trigo de inverno é plantado no outono e colhido no final da primavera/início do verão no Hemisfério Norte. Fiel ao seu nome, o trigo da primavera é semeado nessa estação e colhido no final do verão/início do outono. O trigo é geralmente classificado como “duro” ou “mole” para uso alimentar. Nos EUA continental, o plantio de trigo é dividido em grande parte pelo rio Mississippi – mole a leste, duro a oeste.
Lehman disse que grande parte do trigo que a Ucrânia cultiva são variedades moles e, na Rússia, os agricultores plantam os tipos duros. Trigos duros são mais ricos em proteínas e usados predominantemente na alimentação humana. Ele explicou que a variabilidade na qualidade de ano para ano no trigo ucraniano, em grande parte devido ao clima, determina qual porcentagem será usada nos alimentos. O trigo de baixa qualidade pode ser usado para alimentação do gado como um suplemento de baixo custo para substituir milho e farelo de soja – e isso ocorre na maioria dos anos.
Um mês atrás, os futuros de trigo na Bolsa de Chicago para os próximos dois anos estavam na faixa de US$ 7 por bushel [uma saca de 60 quilos de grãos tem cerca de 2,2 bushels]. Duas semanas atrás, antes da guerra, eles haviam subido para a faixa de US$ 7 a US$ 8. Na sexta-feira passada (4), os futuros fecharam entre quase US$ 13,50 para entrega imediata (março) e cerca de US$ 8 para contratos no final de 2023.
Aqui um adendo: nenhum impacto de preço por causa da invasão da Rússia pode ser comparado ao que o conflito está causando na vida das pessoas na Ucrânia hoje. Mas a ruptura econômica também afeta a vida cotidiana das pessoas, e vale a pena notar a importância da agricultura para a economia da Ucrânia. Milho e trigo não estão apenas entre suas principais exportações, mas exporta a maior parte do que cultiva.
A Ucrânia exporta cerca de dois terços de seu trigo e quase 80% de seu milho, de acordo com o USDA – compare isso com a Rússia que exporta menos da metade do trigo que cultiva (produz muito pouco milho) ou com os EUA, que exportam um pouco mais da metade de seu trigo e menos de 20% de seu milho.
E embora a agricultura represente menos de 1% do produto interno bruto dos EUA (PIB, a partir de dados de 2017) e menos de 5% do da Rússia, ela é quase um oitavo do PIB da Ucrânia. Além das preocupações sobre como os ataques militares podem afetar a qualidade e o volume da colheita final de trigo, bem como quanto milho pode não ser plantado, Hightower observou que pode ser difícil para os agricultores que ainda têm condições de fazer algum plantio obter financiamento para custeio, quando o futuro político da Ucrânia é desconhecido.
“Não acho que a Ucrânia voltará totalmente a um regime comunista, com fazendas coletivas (se o país cair), mas é muito difícil de projetar ou prever agora quanto tempo durará essa interrupção da produção”, disse Lehman.
*Ann Hinch é colaboradora da Forbes EUA e há 20 anos cobre práticas agrícolas, políticas, cultura e negócios.