Victoria Alonsoperez, 36 anos, sempre foi fascinada por tecnologia espacial. Com sua empresa Chipsafer, ela desenvolveu uma plataforma de software e hardware capazes de monitorar gado em tempo real por meio de satélites, o que permite aos produtores cobrir áreas com pouca conectividade e melhorar a eficiência. Sua paixão pelo projeto a levou a mudar-se para Singapura.
Em setembro, ela finalizou a venda de sua tecnologia patenteada para a fabricante NuSpace, empresa de tecnologia espacial especializada em fornecer serviços de conectividade para a Internet das Coisas (IoT) em regiões remotas e com infraestrutura de comunicação limitada. A NuSpace planeja expandir o negócio e aplicá-lo em múltiplos setores, como a construção civil.
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Victoria é uma engenheira eletrônica e de telecomunicações, reconhecida por sua contribuição à tecnologia espacial e ao agronegócio Ela também participou de programas na Universidade Espacial Internacional e foi a primeira uruguaia a estudar engenharia aeroespacial.
Com o Brasil, Victoria manteve uma profunda ligação, desde 2012, quando fundou a Chipsafer, a plataforma que registra informações atuais e históricas sobre a saúde, o comportamento e as transações dos animais, reduzir os custos operacionais, além de capacitar os pecuaristas para o uso da tecnologia. Confira a entrevista:
Como surgiu a venda e o que ela implica?
É um asset deal. O valor da transação é confidencial. Trabalhamos há quatro anos com o fundador da NuSpace, Ng Zhen Ning, no design de novos dispositivos que transmitem diretamente para satélite. Eles fabricam para si mesmos e para outras empresas, mas queriam se aprofundar mais no serviço associado aos satélites. O plano deles não é apenas aplicar isso na pecuária, mas também em outras áreas. Por exemplo, para monitorar máquinas na construção civil, que muitas vezes estão em lugares remotos, são caras e alugadas.
Que potencial você viu na NuSpace?
A Chipsafer ficou em boas mãos e terá capacidade de escalar. Vejo Ng Zhen Ning como um Henry Ford. Ele é um gênio do hardware. Já trabalhei com equipes em várias partes do mundo que levam meses ou anos para desenvolver um protótipo. Ele faz isso em uma semana. Tem muita paixão por tecnologia espacial.
Com a Chipsafer, focamos em mercados como os Estados Unidos e a Austrália. Indonésia e Malásia estavam no pipeline e agora serão trabalhados pela NuSpace. Eles querem concentrar esforços nessa região porque seus satélites cobrem áreas ao longo do Equador. Estão trabalhando em uma constelação que cobrirá o mundo inteiro.
Quais são os seus próximos passos?
Continuo como consultora da NuSpace, mas quero ter tempo para outras ideias. Estou analisando algumas oportunidades de investimento, especialmente em tecnologia com foco em hardware, que é minha especialidade. Também estou interessada em empresas de deep tech.
O bom de morar onde estou hoje é que a Universidade Nacional de Singapura e a de Nanyang, ambas de classe mundial, estão a apenas 30 minutos de distância. Gostaria de explorar como conectar a Ásia com a América Latina. Há muitas oportunidades nessa conexão.
Qual foi a parte mais difícil da sua trajetória como empreendedora?
Foi muito difícil ser pioneira, além de que tudo em hardware é muito caro. Algo que no software você resolve em um mês, no hardware envolve pedir componentes, testar no campo… Isso nos levou anos! Hoje, várias empresas fazem monitoramento de gado. Quando comecei, algumas faziam isso para pecuária leiteira, detectando se a vaca estava no cio, mas nada com GPS para animais.
Existiam dispositivos para elefantes, mas custavam US$ 5 mil cada e transmitiam apenas uma ou duas vezes por dia. Nada enviava informações a cada meia hora, como o nosso. Outro momento muito difícil foi o impacto da pandemia. Sobrevivemos porque conseguimos um fundo do governo de Singapura na hora certa.
O capital de risco foca muito em software. Como isso afetou sua estratégia?
Além disso, as tendências tecnológicas mudam constantemente. Primeiro tudo era apps, depois software, mais tarde fintech, blockchain e cripto, ou então você nem era notado. No Vale do Silício, quando comecei, não se interessavam pelo que eu fazia. Mas você não pode ter software sem hardware. Veja o que aconteceu durante a pandemia com os chips e a valorização da Nvidia.
Também houve o boom das proteínas alternativas… Aqui em Singapura, diziam que o consumo de carne ia diminuir e que não haveria mais gado. Eu respondia que estavam loucos e mostrava gráficos provando que o consumo estava aumentando. Agora há mais diversificação. Existem fundos para clean tech, climate tech…
Como você desenvolveu a Chipsafer sem recorrer a investimento privado?
É muito raro que um empreendedor de startup, depois de 10 anos, ainda detenha mais de 10% da empresa. O bootstrapping me permitiu manter 90% e não ter dívidas com terceiros. Nos financiamos muito por meio de competições de startups e fundos governamentais, que são cruciais para a inovação. O primeiro foi da ANII. Todos os projetos que realizamos foram pagos por clientes. Cada contrato que fechávamos era usado para desenvolvimento e, depois, para produção.
Você teve dois sócios no Brasil. O que essa parceria trouxe para sua trajetória?
Com eles, decidimos ter o produto 100% concluído antes de buscar capital, porque, caso contrário, a avaliação seria muito ruim. Gabriel Klabin foi apresentado a mim por um professor que conheci na Singularity University. Ele é muito nerd, como eu. Fundou a primeira empresa comercial de drones do Brasil.
Ele era designer de produto e me convidou para participar de um projeto que haviam solicitado para 100 mil cabeças de gado. Peguei um voo, o conheci e nos tornamos sócios. Mais tarde, descobri que o bisavô dele fundou a maior empresa de papel da América Latina. Ele é super humilde.
Como fizeram o negócio crescer?
Precisamos de muita paciência. Fomos realizando projetos aos poucos. Recebíamos contatos da África o tempo todo, mas eu tinha que recusar. Sem fazer nenhum tipo de marketing, pessoas de 63 países nos procuraram, basicamente por artigos ou por nos encontrarem no Google. Foi difícil dizer “não”.
O que define seu DNA empreendedor?
Minha paixão por espaço e tecnologia. Não me considero uma pessoa de negócios. Sou uma pessoa de tecnologia. Desde criança, sou fascinada por construir coisas, especialmente relacionadas à tecnologia espacial.
É verdade que você começou a empreender por acidente?
Sim, é verdade! E aqui estou 12 anos depois. Eu planejava fazer doutorado em engenharia espacial, mas não sabia se nos EUA ou no Brasil. Tinha um trabalho científico feito com colegas europeus sobre regulamentação de frequências de satélite. Estávamos procurando uma conferência ou revista para apresentá-lo quando vi, no site da União Internacional de Telecomunicações, um concurso para jovens inovadores. O prêmio era de US$ 5 mil.
Inscrevi-me sem saber que teria que criar uma startup. Meu pai, contador, ajudou com o plano de negócios; minha mãe, escrevente, com o logo e os slides; e minha irmã contribuiu também. Fizemos tudo em um fim de semana. Eu cuidei da parte técnica. Para minha surpresa, ganhei.
E então você teve que colocar a teoria em prática.
Parte do prêmio foi uma viagem a Dubai para um curso de startups. Conheci empreendedores incríveis e percebi que não podia desperdiçar essa oportunidade. Nunca imaginei seguir esse caminho por tanto tempo. Como jovem, eu pensava com arrogância que “em seis meses estaria tudo pronto”. Mas criar um GPS para um animal vivo é muito diferente de fazer um para um carro.
Que desafios você enfrentou?
Isso foi, de longe, o mais difícil. Era mais um problema de design do que de tecnologia. No laboratório, os protótipos funcionavam perfeitamente, mas, nos animais, eles se quebravam. Para outras aplicações, como construção, será mais fácil.
Por que você decidiu morar em Singapura?
Tínhamos muitos problemas com fabricação. Um amigo de Singapura sugeriu boas fábricas lá. Arrumei as malas e fui. Trabalhei com várias empresas grandes. Estávamos prontos para um grande evento em fevereiro de 2020, mas veio a pandemia e adiou tudo.
Não teve medo de se mudar sozinha?
Fiz isso pela empresa. Singapura era segura, mas foi difícil. Além disso, enfrentamos uma fraude na África. Aprendi que, com esforço, sempre há solução.
Como foi essa experiência de fraude e o que você aprendeu com ela?
Eu estava morando no Brasil quando aconteceu. O problema foi que não fizemos nenhuma due diligence. A pessoa nos foi recomendada por uma grande empresa de confiança. Ele afirmava que podia fabricar tudo, com qualidade excepcional e preço muito baixo — algo que nenhuma fábrica fazia. Era bom demais para ser verdade.
Tínhamos dois contratos: um na Namíbia e outro no Quênia. Uma semana antes do prazo, ele desapareceu. Perdemos cerca de US$ 50 mil, o que para nós era uma fortuna. No entanto, honramos os compromissos com nossos clientes, e isso me ensinou que, mesmo em situações extremas, sempre há uma solução se você se dedicar.
Como você superou essa adversidade?
Foi terrível. Pensava que seria processada e que ia perder tudo. O estresse foi tanto que fiquei doente. Encontrar uma alternativa de fabricação em duas semanas parecia impossível, mas conseguimos — embora os dispositivos tenham custado dez vezes mais.
Depois, viajei para a Namíbia, onde ficava a fronteira com Angola, uma das regiões mais pobres da África. Passei cerca de um mês lá, sozinha, em condições quase de safari, para garantir que o projeto fosse implementado. Monitorávamos os animais para evitar que pastassem em terras de outras comunidades.
Você foi diagnosticada como autista na vida adulta. Como isso impacta seu trabalho?
Para empreender, os aspectos positivos superam os negativos. Um grande ponto forte é o foco. Quando me concentro em algo, fico obcecada. Minhas amigas brincam que, se eu não encontrar algo na internet, ninguém mais vai encontrar. Posso passar horas lendo artigos científicos sem parar.
Tenho uma obsessão com o uso eficiente do tempo; tudo precisa ser rápido. Isso ajuda na execução, mas pode dificultar a interação com pessoas. Precisei aprender a ser mais sensível, já que sou muito direta, o que às vezes pode soar rude. A ansiedade também é um desafio, mas sair para caminhar diariamente tem me ajudado a lidar melhor com isso.