
Nos últimos dois anos, a produtora gaúcha de alma baiana Carminha Gatto Missio, conselheira da Sementes Oilema, fundada em 1998, que se dedica à produção de sementes de soja e sorgo, com sede em Luís Eduardo Magalhães, o principal centro do agro da Bahia, começou a escrever um livro. São fragmentos de relatos de memórias, como se ela estivesse catalogando sua vida. Carminha conta que vem anotando no bloco de notas do celular suas lembranças sem ordem cronológica, como vão surgindo quando ela está nas fazendas, em casa ou em viagens.
A catarse, ainda em construção, materializa a realização do sonho de sua maturidade. “Quando criança, meu sonho era ter uma propriedade onde minha família pudesse produzir alimentos”, diz ela. “Meu sonho agora é o livro. Penso nele com 10 histórias, memórias minhas que sejam um legado para as gerações futuras de tudo que fizemos no agro e a evolução da nossa família.”
Mas o livro, que não tem uma data para sair – e seu título ainda é uma incógnita na cabeça de Carminha –, caminha para ser muito mais que um legado para a família Gatto Missio. Aos 68 anos, que serão 69 no dia 16 de julho, essa figura emblemática de seu tempo é um exemplo da transformação do agro brasileiro, um setor que elevou o país ao status de esteio global da segurança alimentar.
E isso não é retórica, porque ela viveu a tropicalização do Cerrado brasileiro. “Foi um acontecimento muito marcante para mim, porque o Brasil, que era um importador de alimento, se tornou um exportador”, diz ela, se referindo à expansão da fronteira agrícola na década de 1970 para o Centro-Oeste. Foi a partir daí que o país se tornou um dos maiores produtores de soja, milho e algodão do mundo.
Uma agenda para o mundo
Ainda hoje a agenda de Carminha é frenética, indo do seu próprio negócio às suas atividades institucionais como presidente do Instituto de Agropecuária (Iagro) e vice-presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado da Bahia (Faeb).
Em janeiro, ela assumiu a tarefa de embaixadora do Congresso Nacional das Mulheres do Agronegócio (CNMA), evento que está completando uma década e reúne na capital paulista cerca de 3 mil mulheres anualmente, e desde 2022 também faz parte do grupo de 50 mulheres convidadas pela Forbes Brasil para integrar seu think tank Forbes MulherAgro.
Na história da família, Carminha é a primeira mulher e a quarta filha de 10 irmãos, todos nascidos em Espumoso, até hoje um minúsculo município a cerca de 200 km ao norte de Porto Alegre. “O começo da minha vida foi plantando milho, melancia, melão, pepino, arroz, cana de açúcar, criando porco, galinha e vacas de leite, basicamente tudo que precisávamos para sobreviver. Se sobrava algo, vendíamos para comprar o café”, conta Carminha. Sim, sem glamour, naquela época o agro era uma atividade de subsistência para a família Gatto.
E se até hoje Espumoso é pequeno, imagina lá em meados dos anos 1980. Foi por isso que o pai, Amelio Gatto, e dois de seus irmãos seguiram de carro rumo ao centro-oeste e nordeste do país. Como em uma aventura na busca de um tesouro, eles chegaram onde hoje está Luís Eduardo Magalhães. O município só seria emancipado em março de 2000. Comparam um pedaço de terra quatro vezes maior do que os 60 alqueires, que tinham em Espumoso, na mesma cartilha de muitos gaúchos daquele tempo. “Meu pai viu a necessidade de procurar outros locais onde se instalar e realizar o sonho de produzir alimentos”. Ela abraçou o sonho do patriarca.
Uma história que se repete
Não por acaso, em 1980 Carminha repetiu o feito de seus pais. Junto com o marido, o engenheiro agrônomo Celito Missio, eles traçaram um plano e partiram para o Mato Grosso, onde ele exerceria atividades profissionais em uma empresa de produção de sementes. Ela já era mãe de um filho e em Rondonópolis, onde se instalaram, trabalhava de costureira e artista plástica.
No Rio Grande do Sul, Carminha havia estudado até a quarta série em uma escola rural, e só foi cursar uma faculdade aos 45 anos de idade. Passou no vestibular no mesmo ano em que o filho Giovani: ela em Direito, ele em Medicina.
“Nasci, cresci, me desenvolvi e escolhi seguir no agro. E mesmo se não tivesse tido essa influência, acho que buscaria uma profissão que representasse a cadeia produtiva do setor”, diz ela. Na história dessa mulher, parece que todos os caminhos a levaram para onde está hoje, e nessa caminhada uma figura foi decisiva: Holalia Missio Gatto, sua mãe, aliás, uma costureira de mão cheia. “Ela foi uma grande mulher. Na necessidade, deixava os filhos debaixo da sombra das árvores e trabalhava na lavoura com meu pai”, diz.
Foram as experiências acumuladas em mais de 20 anos no setor sementes no Mato Grosso e Mato Grosso do Sul fatores que impulsionaram o negócio de sementes na Bahia. “A Sementes Oilema é fruto desse esforço e do trabalho de meus irmãos que foram pioneiros na Bahia na década de 1980”, conta. E uma curiosidade, Oilema é o nome do pai Amélio escrito de trás para frente.
Carminha se orgulha da sua história no agro, um setor ainda majoritariamente masculino. “Tive o privilégio de ter um marido muito parceiro, que sempre me ajudou a ser cada vez melhor e mais forte”, conta.
Para os próximos anos, ela já tem traçado seus objetivos: servir de espelho para as pessoas que a sucederão nos negócios, agir para orgulhar os pais onde eles estiverem (seus pais morreram juntos em um acidente de carro), produzir alimentos de forma eficiente e com respeito ao solo e ao meio ambiente, e ver mais mulheres atuando no setor.
“Não somos apenas mulheres glamourosas ou mulheres bonitas. Precisamos ter conhecimento e capacitação para sermos voz e ouvidos de toda uma classe produtora”, afirma Carminha, que também pode ser um espelho. Na jornada desta heroína, que é chamada de “Rainha das Sementes” por amigos e parceiros, disposição para a ação é o que não lhe falta.