
Enquanto a incerteza econômica domina os Estados Unidos, a indústria global de alimentos, avaliada em US$ 9,43 trilhões (R$ 55,5 trilhões na cotação atual), enfrenta desafios sem precedentes em diversas frentes. Do campo à mesa, mudanças recentes nas políticas estão transformando o sistema alimentar — e levantando questões cruciais sobre custos, segurança e sustentabilidade.
Não é segredo que as ações do atual governo dos EUA estão causando uma ampla ansiedade econômica. O mercado de ações despencou, e o dólar americano registrou sua maior queda desde 2008. Os preços dos alimentos atingiram níveis históricos, enquanto a inflação não dá sinais de desaceleração.
O sentimento dos consumidores está em queda livre, à medida que os americanos enfrentam o aumento dos custos de itens essenciais. Novas estimativas do J.P. Morgan agora indicam 60% de chance de que o país entre em recessão até o final do ano.
Política Comercial de Trump Cria Turbulência nas Cadeias de Suprimento
O presidente Donald Trump anunciou na quarta-feira (9) as tarifas mais altas vistas no país em mais de 100 anos, o que pode desencadear uma guerra comercial global. Embora a maioria dessas tarifas tenha sido subsequentemente colocada em espera por 90 dias, especialistas do setor alimentício alertam que a simples ameaça já está causando disrupções nas cadeias de suprimento e criando incertezas de custo em todo o setor.
Como isso impacta a indústria alimentícia americana? Segundo o Departamento de Agricultura dos EUA (USDA), o país importa cerca de 60% das frutas frescas e 35% dos vegetais frescos. Os agricultores americanos preveem margens de lucro ainda mais comprimidas por causa do aumento dos custos de insumos como fertilizantes e pesticidas. Todo o potássio, um ingrediente essencial nos fertilizantes usados pelos produtores, vem do Canadá, Rússia e Belarus. Com novas tarifas variando de 10% a 50% sobre bens importados de todo o mundo, os preços dos alimentos inevitavelmente subirão.
As tarifas funcionam, na prática, como um imposto regressivo, atingindo mais duramente as famílias de baixa renda, que gastam uma porcentagem maior de sua renda com alimentos. A Axios Consultants prevê que essas famílias podem perder até 5,5% de sua renda disponível em função das novas políticas.
Executivos da indústria alimentícia estão soando o alarme. A Consumer Brands Association — que representa gigantes do setor como PepsiCo, Conagra e Procter & Gamble — instou o governo a “ajustar sua abordagem e isentar ingredientes e insumos-chave para proteger os empregos na manufatura e evitar uma inflação desnecessária nas prateleiras dos supermercados.” Com mais de 2 mil membros, a associação representa 22 milhões de empregos — o maior setor empregador dos EUA — e US$ 2,5 trilhões do PIB americano (R$ 14,73 trilhões).
“As tarifas aumentam o custo de produtos que não estão disponíveis domesticamente,” explica Tom Madrecki, vice-presidente da Consumer Brands Association. “Inevitavelmente, isso levará a aumentos de custo que têm alguns caminhos possíveis. É fato, prejudica os empregos nos EUA. Dificulta que as empresas invistam em seus negócios ou abram novas instalações, ou leva ao aumento de preços para o consumidor em um momento de inflação alimentar já elevada.”
Mudanças Regulatórias Criam Incertezas
Para a indústria alimentícia, os EUA têm alguns dos padrões mais rigorosos do mundo para proteger os consumidores contra doenças e contaminações alimentares. A Agência de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA na sigla em inglês), que depende de inspeções regulares e regulamentações baseadas na ciência para garantir a segurança alimentar, recentemente demitiu 170 funcionários do seu Escritório de Inspeções e Investigações, levantando preocupações sobre a capacidade da agência de manter uma fiscalização rigorosa.
“O governo articulou algumas políticas alimentares ambiciosas e até progressistas,” afirma Deepti Kulkarni, sócia do escritório de advocacia Covington & Burling LLP. “Mas, por outro lado, fez cortes significativos no quadro de funcionários das agências que normalmente implementariam essas políticas e, em alguns casos, ainda não forneceu uma base científica ou legal clara para mudanças importantes. Resta saber se e como essas políticas serão implementadas e, em última instância, como serão vistas pelos tribunais.”
Como parte da agenda “Torne a América Saudável Novamente”, do secretário de Saúde e Serviços Humanos Robert F. Kennedy Jr., certos aditivos e corantes alimentares considerados potencialmente perigosos agora estão proibidos em alimentos processados pela indústria alimentícia. Em janeiro, a autorização para o uso do corante Vermelho nº 3 foi revogada em nível federal, e as empresas alimentícias têm até janeiro de 2027 para se adequarem. Em 2023, a Califórnia baniu quatro aditivos alimentares, e neste ano a Virgínia Ocidental proibiu a venda de alimentos com sete aditivos nas refeições escolares a partir de agosto de 2025.
Embora essas iniciativas tenham sido elogiadas por grupos de defesa do consumidor, como o Center for Food Safety, fabricantes de alimentos alertam que reformular produtos exigirá tempo e elevará custos. Enquanto isso, o setor de carne cultivada continua a navegar por seu cenário regulatório, com a Mission Barns recentemente recebendo aprovação para sua gordura de porco cultivada em laboratório. Produtos como almôndegas e bacon usando essa gordura devem chegar em breve ao restaurante Fiorella, de São Francisco, e à rede Sprouts Market.
A Política Imigratória de Donald Trump Ameaça a Mão de Obra
O sistema alimentar dos EUA depende fortemente da mão de obra imigrante para colher, embalar, processar e servir os alimentos. Imigrantes representam 70% da força de trabalho nas fazendas americanas, 20% dos trabalhadores da indústria de carnes e 20% dos trabalhadores do setor de serviços alimentares. Em todo o espectro político, agricultores e fabricantes estão clamando por um afrouxamento nas leis trabalhistas para enfrentar a escassez crítica de mão de obra.
“O forte foco e as ações rápidas deste governo em segurança nacional e imigração levaram a uma escassez rápida da força de trabalho específica para a cadeia alimentar,” afirma James Maloney, sócio-gerente da empresa de políticas públicas Tiger Hill Partners. “Isso contrasta com as taxas estáveis de participação na força de trabalho em outras áreas do país, e ainda não está claro se novas políticas ou ajustes baseados no mercado conseguirão resolver esse problema setorial.”
A indústria de processamento de carne em Nebraska, que depende fortemente de trabalhadores sazonais e imigrantes, atualmente conta com apenas 39 trabalhadores para cada 100 vagas abertas. Relatos semelhantes surgem no Vale Central da Califórnia, celeiro de frutas e vegetais dos EUA, onde a falta de trabalhadores está forçando produtores a deixar as colheitas no campo. Diante da repressão à imigração, alguns trabalhadores rurais têm até medo de se apresentar para o trabalho.
O Conselho Nacional de Empregadores Agrícolas está defendendo um caminho mais fácil para que trabalhadores indocumentados se qualifiquem para o programa de vistos H2A. Os membros do conselho representam 95% dos empregadores que utilizam esse programa em todo o país. A legislação proposta visa tornar o programa mais eficiente, ampliando os tipos de trabalho cobertos, permitindo empregos durante todo o ano, eliminando possivelmente a estrutura de salário mínimo e fornecendo mais de US$ 1 bilhão (R$ 5,89 bilhões) para habitação de trabalhadores rurais.
Mesmo para empresas com trabalhadores “qualificados”, há ampla preocupação sobre o impacto das políticas na estabilidade da força de trabalho. Quase 20% das plantas de processamento de alimentos — que exigem treinamento especializado mesmo para cargos de entrada — relataram escassez de mão de obra no 4º trimestre de 2024. Isso ocorre enquanto a indústria de bens de consumo embalados aumentou os salários dos trabalhadores em cerca de 30% nos últimos cinco anos, segundo pesquisa recente da Price Waterhouse Cooper e da Consumer Goods Association.
À medida que essas políticas continuam a se desenvolver, especialistas alertam que a indústria global de alimentos pode enfrentar realinhamentos significativos se as tendências atuais persistirem. Fabricantes de alimentos podem acelerar investimentos em automação, transferir a produção para o exterior ou repassar os custos crescentes aos consumidores — tudo isso com consequências potencialmente profundas para a segurança alimentar e a acessibilidade nos EUA.
“O que muitas empresas querem é previsibilidade,” diz Madrecki. “Mesmo que elas não gostem do ambiente de custos atual, ainda prefeririam que ele fosse estável, em vez de ter 80 fatores diferentes mudando todos os dias.”
Para os consumidores americanos, que já enfrentam inflação nos alimentos, o risco é alto. As políticas da administração podem, no fim das contas, redesenhar não apenas a indústria alimentícia, mas o próprio conteúdo do carrinho de compras do americano médio pelos próximos anos.
* Shayna Harris é colaboradora da Forbes EUA. Escreve sobre tecnologias e tendências emergentes na indústria alimentícia. É bolsista Fulbright, com experiência em mais de 50 países, e hoje sócia-gerente da Supply Change Capital.