O objetivo era achar um córrego. Quem sabe com um pé de laranja ao lado ou uma goiabeira retorcida. Afinal, onde passa água e tem uma árvore desse tipo certamente já existiu uma casa. Com esse pensamento, Flávio Gutierrez e a pequena Angela, então com 9 anos, saíam em busca de objetos antigos Brasil afora. Bastava receberem a notícia de uma casa-grande prestes a ser demolida e lá estavam, pai e filha, atrás de novas peças para a coleção da família. Engenheiro e um dos fundadores da cons-trutora Andrade Gutierrez, Flávio apren-dera que as mais raras preciosidades não estavam na residência principal de uma propriedade, mas sim esquecidas em algum lugar por perto, talvez em uma área um dia ocupada por um casebre ainda mais antigo, visível somente por olhares cuidadosos.
“Seguíamos o córrego e, de repente, encontrávamos o que havia sobrado da estrutura de uma antiga casinhola. Juntávamos os objetos na caminhonete e o dono da fazenda ficava feliz de ver o jovem empresário limpando o pasto dele”, recorda Angela Gutierrez, hoje com 63 anos e presidente do Instituto Cultural Flávio Gutierrez (ICFG). Aquele homem “enorrrme” – nas próprias palavras da mineiríssima Angela –, barbudo, sujo de barro e sempre tão raro na vida da menininha por conta dos quilômetros de estradas que tinha para construir, plantou no coração da filha o amor por objetos praticamente esquecidos pela sociedade brasileira.
Utensílios domésticos, móveis, ferramentas de trabalho, roupas e tudo mais que pudesse ter história entravam na caçamba dos Gutierrez. Flávio morreu em 1984, aos 58 anos, e Angela seguiu sua caçada solitária. “Em determinado momento entendi que tinha em mãos peças do universo do trabalho no Brasil. Artes que são ofícios e ofícios que são pura arte”, devaneia. Em 2005, a colecionadora doou ao patrimônio público 2.470 peças para servirem de acervo inicial ao Museu de Artes e Ofícios (MAO), fundado em Belo Horizonte pelo ICFG no mesmo ano. A instituição explica por meio desses objetos a história do trabalho brasileiro no período pré-industrial. Diversas profissões, como as de sapateiro, tropeiro e chaveiro, estão muito bem representadas por lá. Impressiona uma carpintaria completa do século 18, com bedames, formões e plainas de diversos tamanhos, além de uma cadeira e acessórios usados por dentistas, quando o ofício ainda se misturava ao de barbeiro.
A pesquisadora se prepara para inaugurar em setembro, em Tiradentes (MG), o Museu de Sant’ana. O prédio tombado, onde já funcionou uma cadeia, será ocupado por 250 esculturas da santa apócrifa, avó de Jesus Cristo e mãe da Virgem Maria, feitas em diversas regiões do Brasil entre os séculos 17 e 19. A coleção barroca pertencia a Angela e também foi doada ao patrimônio público. “Essa santa aparece nas esculturas sempre ao lado da filha e de um livro, como se estivesse ensinando algo”, diz enquanto mostra algumas fotos espalhadas pela mesa de sua sala de trabalho. Neta de imigrantes espanhóis, italianos e portugueses, Angela não escapou do catolicismo. Faz orações diariamente e vai à missa sempre que pode. “Sou devota de Sant’ana.” Na sequência, tenta se explicar, tirando conclusões precipitadas de que a frase talvez não tivesse soado bem. “É uma coisa meio jeca, mas aqui em Minas usa-se ‘ser devota’”, sorri.
A fé permeia sua vida. O primeiro museu inaugurado pela presidente do ICFG foi o do Oratório, em Ouro Preto, num casarão onde Aleijadinho (1738-1814) morou. A instituição, aberta ao público em 1998, conta com um acervo de 162 oratórios provenientes da coleção particular de Angela. Geralmente feito de madeira e decorado com pintura, o oratório é uma espécie de armário em que se colocam imagens sacras. Usado para oração, sua origem remete à Antiguidade greco-romana, quando as estátuas de deuses eram guardadas no interior de objetos semelhantes. A obsessão da pesquisadora pelos oratórios é evidente. Sua única filha estava às vésperas de completar 15 anos e pediu um presente inusitado: “Mãe, gostaria que você ficasse seis meses sem pronunciar a palavra ‘oratório’ dentro desta casa”. Angela achou que sairia mais barato oferecer um anel de brilhantes.
O episódio faz a herdeira da Andrade Gutierrez cair na gargalhada e lembrar-se de sua própria festa de 15 anos, quando ganhou do pai um tear, presente um tanto quanto exótico para uma adolescente de meados dos anos 1960, que deveria estar mais interessada em Beatles e minissaia. O aparelho fora encontrado em uma área próxima à fazenda da família Gutierrez, em Cordisburgo (MG), terra de Guimarães Rosa. A menina rica poderia ter pedido o que lhe viesse à cabeça, mas naquele momento já era amante de antiguidades e ficou encantada com a possibilidade de aprender a entrelaçar alguns fios.
Atualmente, o tear está exposto no MAO, assim como um fogão de catre muito raro, outro item cuja história esbarra em lembranças pessoais da colecionadora. Certa vez, chegou até Flávio Gutierrez a notícia de que um morador de Serro, cidade famosa pelo queijo de mesmo nome, desejava se desfazer de um fogão desses. Feito de pedras dispostas em um formato parecido com o de uma cama, ele era característico dessa região. Servia não só para o preparo de alimentos, mas também para espalhar calor aos demais ambientes das frias residências. Para se ter uma ideia das baixas temperaturas da cidade, até o século 18 ela era chamada de Serro Frio.
Angela acompanhou o pai no resgate do fogão, que foi desmontado para facilitar o transporte. Com um graveto molhado em tinta azul, a jovem marcou cada peça com um número, seguindo a ordem de encaixe. As partes do fogão permaneceram guardadas por muitos anos em um bezerreiro desativado na fazenda da família. “Acho que se meu pai ameaçasse colocá-lo dentro de casa, minha mãe ficaria muito brava.” Após a morte de Flávio, Angela resolveu dar uma nova chance ao instrumento, mas a numeração das pedras havia desaparecido. Ela estava prestes a desistir da ideia quando uma funcionária da fazenda, nascida em Serro, conseguiu solucionar o quebra-cabeça.
Enquanto relembra histórias como essa, Angela demonstra apenas alegria. Gesticula, sorri, mas não demonstra nostalgia. Talvez por essa razão tenha sido tão fácil se desfazer de suas coleções. “Não tive essa fase de preparar o desapego. Foi fácil, não doeu.” No entanto, ela demorou para fazer a primeira doação, pois não acreditava no potencial das peças. Mas uma experiência mudaria completamente seu pensamento. Em 1994, a colecionadora participou de algumas exposições pela Europa, a convite do Itamaraty, e os oratórios passaram uma temporada no Museu São Roque, de Lisboa.
“Cheguei com aquelas peças pobrezinhas, feitas no interior do Brasil, e confesso que fiquei preocupada”, lembra. Para sua surpresa, a exposição despertou grande interesse e diversas mesas-redondas foram organizadas com a participação de antropólogos, historiadores e museólogos. “Eu ouvia dizer que minhas antiguidades eram importantes, mas nunca acreditei. O fato é que cheguei ao Brasil disposta a doar tudo.” Quatro anos depois nascia o Museu do Oratório.
Foi por causa do péssimo estado de conservação dos oratórios adquiridos que, ainda jovem, ela aprendeu a restaurar. Hoje sobra pouco tempo para dedicar-se ao hobby, pois, além das atividades relacionadas aos três museus, ela ocupa, ao lado da irmã e de um sobrinho, uma cadeira no conselho de administração da Andrade Gutierrez. Filha mais velha de Flávio, fundador da empresa junto com Gabriel e Roberto Andrade, ela nunca se interessou pelos negócios da família, mesmo assim, por garantia, formou-se em administração de empresas e marketing. “Meu irmão, Roberto, era executivo da empresa, então para mim a situa- ção estava resolvida.” Mesmo com a morte prematura dele, em 2006, aos 53 anos, Angela manteve o foco nas artes. “Sou uma acionista participante, compareço às reuniões, mas nunca tive um cargo executivo. Ali dentro sou herdeira.”
Ela e a família acumulam uma fortuna de R$ 2,5 bilhões e ocupam a 75ª posição entre as pessoas mais ricas do país, segundo a edição 2014 da lista de bilionários da FORBES Brasil. “Sou herdeira, não fiz nada para ter o que eu tenho. E me sinto bastante responsável para, de alguma forma, devolver o que recebi. Sou consciente do papel que tenho a desempenhar neste mundo.” Sua posição na sociedade lhe confere prestígio, admite. “Todos os caminhos são abertos para mim, mas não pelo dinheiro que tenho e, sim, porque sou uma pessoa acessível, fácil de conviver”, diz. O Museu de Sant’ana será o terceiro e último inaugurado por ela. “Depois vou trabalhar com os pequenos museus perdidos no interior do país. Quero ajudá-los”, afirma.
Muito antes de pensar em gerenciar museus, Angela foi secretária de Cultura do Estado de Minas Gerais. E se ressente dessa fase, no final dos anos 1980. “Era uma época em que cultura no Brasil ficava relegada a um terceiro ou quarto escalão. Faltava verba e, principalmente, consciência dos homens públicos sobre a importância da área cultural.” Para ela, hoje a situação é bem diferente. “O Brasil avançou. Atualmente, a cultura é respeitada tanto quanto a educação e não existe mais uma dissociação das duas áreas. O Ministério da Cultura é operante e luta por um espaço digno para a arte brasileira”, afirma.
Vestida com um terninho preto e camisa pink, combinação de cores bastante apreciada por ela, Angela caminha pelos corredores do MAO enquanto dá orientações a um dos funcionários. O museu ocupa os edifícios da Estação Ferroviária Central, um dos cartões-postais de Belo Horizonte. Restaurado no início dos anos 2000, ele tem as paredes dos fundos feitas de vidro, sendo possível a visualização do acervo por quem aguarda o trem (metrô) na estação. É dentro desse belo projeto arquitetônico que a pesquisadora presta a maior parte de seu expediente.
Ao retornar de sua caminhada, ela vê uma das moças responsáveis pela limpeza parada, lendo um dos muitos textos sobre peças do museu. “Tenho como meta ler um por dia”, diz a jovem, sabendo que agradaria a chefe. Está aí um dos raros ambientes de trabalho onde ser pego “enrolando” pode até render uma promoção…