Inteligência sem ambição é como um pássaro sem asas. A frase, atribuída ao pintor catalão Salvador Dalí (1904-1989), não poderia refletir alguém tão bem quanto o francês Jean-Pierre Grivory, de 68 anos. Por sorte do destino e também boas doses de ambição e determinação, ele criou, em 1982, o primeiro perfume de celebridade do mundo. A celebridade? Dalí.
Tudo começou quando o empresário, aos 36 anos e uma década de experiência em perfumaria internacional, incluindo seis na própria empresa, teve a ideia de associar o nome e o trabalho de um grande artista a uma fragrância. Amante das artes, o audacioso Grivory decidiu escrever um telegrama para Dalí, cujo trabalho ele admirava desde os 10 anos, quando ganhou de sua madrinha um álbum do artista.
Para sua maior surpresa e, como ele mesmo diz, “graças a uma sorte surrealista”, seu telegrama foi entregue alguns dias antes de o novo secretário de Dalí ser contratado. Resultado: o gênio do surrealismo acabou lendo-o antes da volumosa correspondência que o aguardava há tempos. O jovem propunha não só a assinatura de Dalí nos perfumes como também seu design nos frascos. Tempos depois, Grivory recebeu uma resposta positiva do mestre.
Dalí e Grivory se encontraram em 17 de dezembro de 1982, na casa do artista, o Castelo de Púbol, na Espanha. Nessa reunião foi assinado o acordo de uma licença mundial que concedeu ao francês o direito exclusivo de uso do nome do artista na perfumaria. E assim nasceu a primeira fragrância da marca no mundo – “Dali le Parfum”, lançada em 1983 no Museu Jacquemart André, em Paris, e distribuída em 1985 por várias perfumarias. O célebre frasco, com a boca e o nariz de Afrodite, foi desenhado pelo artista, que se inspirou na pintura que estava produzindo de Afrodite, a deusa da beleza e do amor.
Ao todo, a linha de perfumes Salvador Dalí, lançada pela companhia francesa Cofinluxe (de Grivory), produziu mais de 30 fragrâncias (75% delas femininas) distribuídas em cerca de 100 países, incluindo o Brasil. O país, aliás, é uma das paixões do empresário. “Há mais de 40 anos que desfilo com as escolas de samba do Rio de Janeiro”, conta em um português impecável, que começou a aprender de forma autodidata quando viajou ao país em 1969 como estudante. “Eu tinha que escolher um país estrangeiro para fazer estágio e escolhi o Brasil porque sou fanático por futebol e sonhava em conhecer o Maracanã. Eu não falava português nem espanhol, somente inglês, alemão e francês. Para aprender seu idioma, passei a circular apenas com pessoas que falavam português e lia o Jornal do Brasil, para me esforçar a aprender. Minha gramática foi pura dedução”, brinca.
Natural de Saint-Étienne e com escritório em Paris, Grivory mora em Bruxelas (Bélgica) e viaja diariamente de trem para a Cidade-Luz. “Essa 1h20 que passo no trem é o único momento que tenho para mim. Posso dormir ou trabalhar no computador, sem influência de terceiros. Se parar o trem, ninguém vem me perguntar o que deve fazer. É um momento de irresponsabilidade que eu aprecio”, afirma o empresário que tem 40 funcionários e anda com vários vidrinhos de essências no bolso. Ele as trouxe, inclusive, para São Paulo, quando esteve presente na abertura da exposição de Salvador Dalí.
A lembrança de Dalí é recorrente em seus pensamentos enquanto o trem corre. “Eu só encontrei com ele no dia da assinatura do contrato. Fiquei emocionado pelo ambiente [o Castelo de Púbol] e me senti entrando em uma pintura daliliana. Foi uma das grandes emoções da minha vida”, lembra. Quando encontrou o artista, Grivory propôs uma “estratégia igual à arte, com produção de perfumes em três níveis iguais às obras (originais, originais múltiplos limitados e numerados e a reprodução não numerada de pôsteres). Foi assim que a Cofinluxe lançou a primeira edição limitada de 1,5 mil frascos de perfumes, com certificado, para compradores que surgiram de diversas partes do mundo, inclusive do Brasil. “Naquela época, ele estava terminando a tela do rosto de Afrodite, o que serviu de inspiração para o frasco. O Dalí se envolveu na criação olfativa e exigiu que a fragrância fosse à base de rosa, a flor preferida de sua mulher, Gala, e jasmim. Depois fizemos Laguna, um sucesso tremendo à venda até hoje nas perfumarias.”
A decisão de lançar a marca de perfumes Dalí ocorreu quando Grivory decidiu investir no nicho de fragrâncias seletivas. Naquela época, ele produzia perfumes de distribuição em massa, como o Café, que chegou ao mercado em 1979, foi um tremendo sucesso e existe até hoje. O que resta do gênio do surrealismo além de memórias e frascos que atingiram milhões de vendas (Grivory não abre números, mas especialistas em perfume confirmam vendas históricas gigantes)? A tela Le Roi Soleil, uma aquarela que o catalão pintou em 1945 em homenagem ao rei Luís XIV, conhecido como “Rei do Sol”, o homem por trás da construção de Versalhes. Hoje na casa de Grivory.