Ao lado de Pelé, Paulo Coelho e Gisele Bündchen, Sergio Mendes é um dos brasileiros vivos mais conhecidos no mundo. É o músico nacional com o maior número de sucessos na bíblia musical das paradas, a Billboard, com 14 presenças no cobiçado Hot 100. São mais de 40 discos, lançados desde 1960. O último, Magic, de setembro, traz nomes estrelados entre seus convidados – will.i.am, John Legend, Seu Jorge e Milton Nascimento, para citar alguns. O CD foi indicado para o prêmio Grammy de melhor álbum na categoria “World Music”. O sucesso de Mendes está diretamente ligado à popularização da bossa nova nos anos 60. Mas este niteroiense de 71 anos soube se reinventar ao longo do tempo e emplacou hits aproveitando os embalos da disco music, da música romântica e do ritmo pulsante do hip hop.
Criada no Rio de Janeiro, no final dos anos 50, a bossa nova ganhou o mundo na década seguinte. A levada diferente no violão, invenção de João Gilberto, assim como um jeito mais relaxado de cantar, encontrou-se perfeitamente com os acordes jazzísticos de Tom Jobim e a poesia de Vinicius de Moraes. Em 1962, vários músicos americanos, entre eles os legendários Herbie Mann e Stan Getz, começaram a insistir para que alguns artistas brasileiros fossem para os Estados Unidos. Um show no Carnegie Hall, nesse mesmo ano, criou um interesse em todo o planeta pelo novo ritmo, que foi rapidamente adotado pelo maestro e compositor Burt Bacharach, autor de clássicos como “I Say a Little Prayer” e “I’ll Never Fall in Love Again”.
Estava aberta a porta para que um músico brasileiro surfasse essa onda. No Brasil, todos imaginavam que João Gilberto ou Tom Jobim seriam escolhidos para cair nas graças do público americano. Mas o carioquíssimo Tom preferia morar no Brasil. Já Gilberto morava nos Estados Unidos, mas faltava-lhe tino comercial. Além disso, o baiano sempre foi conhecido pela incapacidade natural de se relacionar com a maioria das pessoas.
Ou seja, a bola estava quicando em frente a um gol desguarnecido. Mendes percebeu essa chance e a aproveitou. Tudo começou em 1962, quando gravou no Rio de Janeiro um álbum com o saxofonista Cannonball Adderley. O americano veio ao Brasil atraído pela sonoridade da bossa nova e recrutou instrumentistas nacionais para acompanha-lo na gravação de um disco. Mendes foi escalado e encantou Adderley. “Eu tinha formação de pianista clássico e ouvia muito jazz desde os 12 anos de idade”, diz ele. “Misturava essa influência com a música brasileira, principalmente a bossa nova.”
Essa alquimia agradou o saxofonista. “Você precisa ir para os Estados Unidos”, repetia ele durante as gravações. Mendes, a princípio, refutou a ideia. Afinal, apesar de jovem, era um músico respeitado no Brasil e uma das estrelas do chamado “Beco das Garrafas”. O “beco” era uma travessa da Rua Duvivier, em Copacabana, que abrigava o epicentro dos bares que apresentavam os astros da bossa nova, a meia quadra da praia. Nos pequenos palcos de casas como Ma Griffe, Bacará, Little Club e Bottle’s se apresentavam, além de Mendes, Ronaldo Bôscoli, Baden Powell, Elis Regina, Sylvia Telles e Wilson Simonal.
A travessa, inclusive, ganhou seu apelido por conta do pianista. A vida boêmia dos frequentadores do bar e de seus músicos atrapalhava o sono dos moradores dos edifícios da vizinhança. Depois de presenciar uma briga entre um morador, que reclamava da janela o barulho feito pelos boêmios do lado de fora dos bares, Mendes começou a chamar a viela de “Beco das Garrafadas” – uma alusão à raiva dos vizinhos, que iriam arremessar garrafas em direção aos habitués. Depois de um tempo, a tirada de Mendes sofreu uma contração e o lugar foi imortalizado com “Beco das Garrafas”.
Depois de alguma hesitação, em 1964, ele finalmente resolveu trocar o Rio de Janeiro pelos Estados Unidos. O nascimento do filho Rodrigo, em 6 de abril daquele ano, foi o estopim involuntário de sua decisão. Quando o garoto nasceu, ele mandou um telegrama para o amigo e artista plástico Wesley Duke Lee que dizia o seguinte: “Rodriguinho barra limpa, primeiro realista mágico de Niterói, avisa ao tio Lee que a ordem do dia é fralda larga e leite morno”.
O golpe militar tinha apenas um mês de vida e o telegrama foi interceptado por agentes do Exército. “Acharam que era um código revolucionário e fiquei preso duas semanas. O pior é que, quando invadiram a casa do Lee, acharam um busto de gesso do pai dele, que era a cara do Lênin. Como explicar uma coisa dessas?”, recorda-se às gargalhadas.
Os dois primeiros anos nos Estados Unidos, porém, foram difíceis. Ele chegou a formar dois grupos, gravando um LP com cada um. Nenhum fez sucesso, mas conseguiu ser contratado para vários shows em diversas cidades americanas. Numa ocasião, o percussionista Laudir de Oliveira (que mais tarde se juntaria à banda Chicago – a música “If You Leave Me Now”, maior hit do grupo, tem ele nos bongôs. Além disso, tocou com os Jacksons no clássico dançante “Blame it on the Boogie”), quando o avião se aproximava de Los Angeles, viu um entroncamento de highways cheio de cruzamentos. Umbandista de carteirinha, Laudir ficou entusiasmado com a megaencruzilhada. Ele cutucou Mendes e disse: “Serginho, com uma encruzilhada dessas, uma galinha preta não serve para fazer um trabalho bem feito”, arriscou. “Com tanto cruzamento, só um cordeiro para resolver a parada”.
Em 1966, quando já estava começando a cogitar uma volta ao Brasil, um de seus amigos, Richard Adler, apresentou-o ao trompetista Herp Alpert, que liderava a banda Tijuana Brass. Alpert estava montando a gravadora A&M com o amigo Jerry Moss (o “A” é de Alpert e o “M” é de Moss) e Mendes foi um dos primeiros contratados.
Adler sugeriu a Mendes que mudasse um pouco o estilo e incluísse duas cantoras americanas na banda, em vez das brasileiras que o acompanhavam desde 1964. Assim, elas poderiam cantar também em inglês. Mas e as músicas brasileiras, em português? “Foi uma loucura ensinar as meninas o som das palavras em português”, lembra Mendes. “No início, elas não tinham a menor ideia do que estavam cantando, mas perguntavam o significado da letra e íamos explicando.”
A fórmula deu certo. E como. A banda foi rebatizada de “Sergio Mendes & Brasil ‘66” e o primeiro disco pela A&M lançado. Resultado: quatro músicas nas paradas, a começar pelo clássico “Mas que Nada”, de autoria de Jorge Ben (hoje Benjor).
Mendes deu outro sabor à bossa nova. Colocou tempero e suingue, sem deixar a elegância do lado. Antes dele, as interpretações de João Gilberto, apesar de excepcionais, carregavam na melancolia. As letras, muitas vezes, evocavam amores não correspondidos (caso da própria “Garota de Ipanema”) ou histórias de amor que terminavam mal (“Insensatez”, por exemplo). Tome-se o caso da gravação original de “Mas que Nada”, de Jorge Ben. É um marco da MPB, pois não é samba nem bossa nova. É Jorge Ben criando um ritmo novo, numa interpretação maravilhosa, especialmente nos segundos finais, com um falsete inesperado e genial. Apesar disso, é uma gravação que tem um pé na tristeza.
Ele, que tocava essa canção desde os tempos do “Beco das Garrafas”, investiu num arranjo mais alegre e criou uma linha de piano na introdução que é reconhecida nos quatro cantos do planeta. Os americanos não entendiam patavina da letra (há brasileiros que até hoje também não), mas foram contagiados pelo suingue de Mendes. A estreia dessa canção na TV foi precedida por um breve speech da diva Eartha Kitt, que pedia atenção para “um novo som” que seria apresentado a seguir.
Um sucesso estrondoso seguiu-se e rapidamente Mendes chegou ao estrelato. Embora tenha canções de sua autoria, ele sempre se destacou pela sabedoria em escolher as canções certas, criar arranjos impecáveis e inesperados. Garimpou, por exemplo, na obra dos Beatles, a canção “The Fool on the Hill”, do filme Magical Mystery Tour, que nunca tinha sido lançada como compacto simples. Deu uma roupagem bossanovística e chegou ao topo das paradas. O mesmo aconteceu com “Scarabough Fair”, uma canção folclórica inglesa que foi popularizada mundialmente pela dupla Simon & Garfunkel. Mendes produziu um novo arranjo e a música estourou nas rádios e nas lojas de discos.
Talvez o exemplo mais significativo do talento de Sergio Mendes em escolher seu repertório como ninguém está na canção “For Me”, outra que esteve nas paradas de todo o mundo. No original, esta canção de Edu Lobo e Vinícius de Moraes foi lançada por Elis Regina e ganhou o I Festival de Música Brasileira. A letra original de “Arrastão” fala de uma pescaria abençoada pelo sincretismo religioso que une Iemanjá, Santa Bárbara e o Senhor do Bonfim, interpretada de forma grandiloquente pelo vozeirão de Elis. Seu jeito de interpretar a música no palco, entre o entusiasmado e o desajeitado, por sinal, valeu o apelido de “Eliscóptero”, dado por Vinicius.
Mendes pegou essa música e virou-a do avesso. A letra em inglês transformou-a numa canção de amor, com um arranjo elegante e original. No final, as duas versões parecem canções distintas, graças à genialidade musical daquele que estava por trás do Brasil ’66.
Nos anos 70, o grupo, já batizado de Brasil ‘77, flertou com a disco music e emplacou alguns sucessos das discotecas da época. Outro sucesso de arromba viria nos anos 80, quando Mendes mais uma vez descobriu uma canção excepcional que tinha passado despercebida pelo grande público – “Never Gonna Let You Go”, que no Brasil virou até tema de novela. No mesmo ano, 1983, produziu a trilha sonora do filme Never Say Never Again, que marcou a volta de Sean Connery no papel de 007. Produziu depois as trilhas do desenho animado Rio e de sua sequência, ambos dirigidos pelo brasileiro Carlos Saldanha.
A relação de Mendes com o cinema começou casualmente, quando chamou o então carpinteiro Harrison Ford para construir um estúdio de gravação na sua casa de Encino, Califórnia. Ford fez um trabalho bem feito e usou Mendes como referência, o que levou o diretor e produtor George Lucas a contratá-lo para fazer alguns armários em sua casa. Por conta deste job, Ford fez uma ponta em American Grafitti e, mais tarde, foi guindado à fama pelo papel de Han Solo na trilogia Guerra nas Estrelas.
Em fevereiro de 1994, foi convidado por John Travolta, que era seu fã, para a festa de aniversário na qual o ator iria completar 40 anos. Desse encontro, surgiu uma forte amizade que o levou a arriscar uma ponta do filme Be Cool, no qual Travolta fez um de seus personagens mais famosos, o agiota Chilli Palmer, que vira produtor de cinema e de música. Na película, Palmer e a personagem vivida por Uma Thurman estão numa boate, que está prestes a apresentar um show. Ela olha para o palco e vê os Black Eyed Peas se preparando para cantar e pergunta a Palmer se ele é fã do grupo. Travolta dá um olhar de enfado e suspira: “Prefiro o Sergio Mendes”. A câmara, então, vai para o palco e vê-se que, acompanhando will.i.am e companhia, está o brasileiro. Eles tocam juntos “Sexy”, que interpõe rap com a melodia de “Insensatez” no piano. Travolta e Thurman, então, começam a dançar, repetindo a parceria que fizeram em Pulp Fiction.
A amizade com will.i.am o levaria, em 2006, a regravar “Mas Que Nada” com os Black Eyed Peas, numa versão que galgou todas as paradas de sucesso do mundo e até hoje pode ser ouvida nos sábados à tarde, pois é o tema do programa Estrelas, da apresentadora Angélica.
De lá para cá, já lançou três outros álbuns – o último dos quais é Magic, no qual repete a parceria com o líder dos Black Eyed Peas na faixa “My My My My Love”. É impressionante ver um senhor de 71 anos com tanta vitalidade e gana criativa. “Vamos agora entrar em turnê pelos Estados Unidos e depois pelo Oriente”, avisa Mendes. “Vou fazer apenas uma parada para o Natal e o Ano-Novo. Depois caio na estrada de novo.”
Casado com a cantora Gracinha Leporace desde 1971, Mendes é um típico carioca boa-praça, embora nascido do outro lado da ponte, em Niterói. Impossível não simpatizar com ele de primeira. Apesar de ser uma estrela de primeira grandeza, é de uma simplicidade a toda prova e parece ser ainda aquele garoto de 17 anos que foi substituir um amigo que ficou doente num show do “Beco das Garrafas” e não saiu mais do palco. Não se afasta nunca de suas raízes – a placa de um de seus carros, personalizada, traz o nome de sua cidade natal, que muitos americanos interpretam como “Nite Roy”, ou o Rei da Noite, numa mistura de idiomas. “Sempre estarei ligado a Niterói, ao Rio de Janeiro e ao Brasil”, filosofa Mendes. “Mesmo em todo esse tempo de Estados Unidos, nunca me senti americano. Eu sou brasileiro da gema.”