Há quem diga que os Irmãos Campana são gêmeos – mais que isso: que nasceram grudados e que de alguma forma são grudados até hoje, como conta o primogênito Humberto de sua casa, em São Paulo, ao telefone. Uma hora depois, o “encontro” é com Fernando, que passa a quarentena em Fortaleza, na casa do terceiro irmão, o economista José Alberto.
Não estão grudados, portanto. Mas sofreram juntos os infortúnios causados pelo avanço do coronavírus, que culminou no fechamento temporário da exposição “Irmãos Campana – 35 Revoluções”, a maior já feita em homenagem à dupla, no dia seguinte ao de sua abertura, em 14 de março.
Nada impediu, no entanto, que eles continuassem criando, apesar de distantes, por meio do Estúdio Campana, de onde saíram peças que ganharam o mundo. Eles se mantêm ativos também nos projetos do Instituto Campana – e ainda encontram tempo para criar de forma individual, cada um com sua própria assinatura.
Nascidos em Brotas, no interior de São Paulo, começaram a conquistar o mundo antes mesmo de conquistar o Brasil, ao ter uma matéria publicada na revista italiana “Domus”, em 1993. Na sequência, em 1998, foram convidados para expor no MoMA, em Nova York, que desde então abriga em seu acervo a Vermelha, cadeira feita de ferro, alumínio e corda,
inspirada no processo de tecelagem brasileiro. Foi naquele ano também que assinaram uma parceria profissional que perdura até hoje com a marca italiana Edra. A relação com a Itália, aliás, ultrapassa o aspecto profissional: eles são netos de italianos e costumam viajar frequentemente pelo país em nome de suas raízes (Humberto chegou a morar em Roma).
A união entre os dois nunca foi planejada. Humberto, de 67 anos, mudou-se para a Bahia logo depois de se formar em direito na USP, onde descobriu o que queria fazer da vida. Começou a criar espelhos de conchas, que já mostravam certo apelo para o design. Um ano depois do “período baiano”, voltou a São Paulo e começou a estudar técnicas manuais. Quando Fernando, hoje com 59 anos, concluiu a faculdade de arquitetura (ele queria ser ator, mas o ambiente do regime militar então vigente o desestimulou), começou a ajudar o irmão mais velho e “foi ficando”.
Em tempos de pandemia, os hábitos de ambos foram reconfigurados. Humberto encontrou uma nova forma de expressão para sua “turbulência mental” por meio de colagens. Já Fernando, que também diz amar essa técnica artística, está aproveitando o confinamento para “assistir muitos filmes e jogar com os sobrinhos” em Fortaleza. Confira a seguir trechos das entrevistas com os irmãos famosos.
Forbes: Como foi o começo da grife Irmãos Campana?
Humberto Campana: Eu me formei em direito na São Francisco em 1977 e dei o diploma para a minha família – na época, eu não sabia o que queria. Na sequência, um amigo me convidou para advogar em Itabuna, na Bahia, para uma cooperativa de cacau. É quase uma história de Jorge Amado. Foi lá que falei para mim mesmo que ia levar a minha vida com as minhas mãos. Eu ia até Ilhéus, pegava conchas e voltava para casa para fazer espelhos. Depois de um ano morando lá, percebi que aquilo que eu fazia era bem feito, não era coisa de hippie, já tinha um olhar mais apurado. É engraçado como a gente nasce com algum talento. Voltei para São Paulo e quis investigar melhor isso que estava começando a aflorar. Fiz alguns cursos de joalheria, terracota, serralheria… Aí meu irmão se formou em arquitetura e começou a dar funcionalidades para minhas esculturas. Viramos uma dupla. Nunca foi planejado, o Fernando foi ficando. Ele veio me ajudar em uma entrega de pedidos de Natal, e assim fomos descobrindo um canal de identidade juntos, uma coisa estranha.
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Qual é sua criação preferida?
Eu gosto da Cadeira Favela [criada em 1991], inspirada na Rocinha (hoje eu não chamaria de favela). É uma peça presente em acervos de vários museus e indica um caminho novo, uma oposição à Escola de Bauhaus, que representa a perfeição e a funcionalidade. É uma peça que vai contra isso. É um olhar do fazer de comunidades carentes.
Você se considera artista ou designer?
Até hoje eu não sei, sabia? (risos) E não quero saber. Gosto de transitar em várias disciplinas e dar o melhor de mim. O que me interessa é o novo, a busca constante. Me considero um contador de histórias, de experiências que nos afetam. A partir do contato com artesãos, vou absorvendo “pelo estômago”. Sou muito intuitivo, tudo é através do meu estômago.
Qual é o fio condutor das suas criações?
A matéria-prima. Mas até chegar ao material tem muita viagem antes, sair pela rua observando tudo. No momento não dá para sair, a quarentena foi uma desconstrução total para muitas pessoas. Fiquei muito mal no início. Estou pegando os pedaços de mim, aqui e ali. Tenho muitas revistas de arquitetura aqui em casa e comecei a fazer colagens. Corto as imagens que me interessam e fico montando. Esse será o diário da minha quarentena.
Você começou sozinho, juntou-se a seu irmão e, há algum tempo, passaram a assinar trabalhos solo. Por quê?
Foi uma necessidade de ambos. Eu não sou o “irmão Campana”, eu sou o Humberto e ele, o Fernando. Chegou um momento em que ficou tudo muito junto, parecia uma coisa só. Nós fomos atrás das nossas identidades, do individual de cada um. Antes, para fazer uma palestra, por exemplo, eu não me sentia bem se não estivesse ao lado dele e vice-versa. Essa escolha de permanecermos juntos, mas tendo também trabalhos individuais, melhorou nossa relação como irmãos. Nossa amizade continua muito grande, trabalhamos juntos no estúdio, temos uma equipe de 20 pessoas sob nosso comando.
Acredita que haverá uma onda de valorização do design nacional?
O mundo está caminhando para bens mais duráveis. Hoje existe a preocupação com o lixo, o descarte. A geração millennial pensa diferente. O consumidor hoje quer comprar aquilo que tenha uma história. O fazer manual também vai se valorizar cada vez mais. Desde o início da nossa trajetória, pensamos que a necessidade é a mãe da criatividade. Podemos ressignificar as coisas, dar uma segunda vida ao que já existia.
O que lembra do início da sua carreira?
Fernando Campana: Eu me formei em arquitetura na Belas Artes, em 1983. Queria mesmo é ser ator, mas desisti por causa da ditadura militar. Então optei pela arquitetura para construir cenários. Em 1989, criamos nossos primeiros móveis, uma exposição com 40 peças de ferro. Eram superdesconfortáveis. A gente queria fazer a escultura de um móvel, sem pretensão de sermos designers. Mas aí a exposição foi destaque na revista italiana “Domus”, como sendo um manifesto contra o que o Brasil tinha feito até aquela época, que era copiar os designers italianos. A partir disso, conhecemos a Edra [grife de móveis de luxo italiana], que se interessou pela cadeira de cordas. Ocorreram situações inusitadas, como uma exposição no MoMA, o que foi bem impactante na nossa carreira.
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O que está fazendo atualmente?
Aqui em Fortaleza estou fazendo outras coisas, assim como muita gente. Estou jogando jogos de crianças com meus sobrinhos e assistindo filmes ótimos (a última série que assisti foi “Hollywood”). Também estou fazendo colagens e caminhando. Quando desligar o telefone, vou andar 4 quilômetros. A cada manhã, penso em como reorganizar a vida. Aqui eu olho para o mar. Em São Paulo, fico próximo do estúdio, e a rotina é outra.
Como define o momento do design brasileiro?
Sinto que todos os profissionais estão tentando se reinventar, o momento pede isso. Existem vários designers que eu admiro, nomes como Carol Gay, Superlimão, Zanini de Zanine. Depois da pandemia, podia acontecer uma grande exposição com o que cada um passou e produziu nesse período.
O que será da exposição do MAM?
Depois de 35 anos de carreira, é inacreditável você abrir uma exposição e ela fechar no dia seguinte. Foi realmente decepcionante, depois de um investimento grande. Espero que tudo isso passe logo. Queremos deixar um legado para os jovens.
Reportagem publicada na edição 78, lançada em junho de 2020
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