As algas marinhas e o fitoplâncton – responsáveis por 70% da produção de oxigênio do planeta – são os verdadeiros pulmões do mundo, e não as florestas. E, se a principal selva do planeta arde em chamas, as notícias vindas dos sete mares também não são nada acalentadoras. Os oceanos estão ameaçados, sufocados por um produto que coloca em risco a espécie que o criou: o plástico. O descarte irregular de lixo está comprometendo o complexo ecossistema marinho de tal forma que as catastróficas consequências logo afetarão a vida humana de forma irreversível. Segundo dados levantados pelo World Wide Fund for Nature, cerca de 8 milhões de toneladas de plástico vão parar nos oceanos anualmente. Quantidade suficiente para deixar 90% das aves marinhas com conteúdo plástico no estômago – do jeito que a coisa vai, até 2050 plásticos serão mais numerosos do que peixes no mar. Então, se a existência da humanidade depende da saúde do habitat marinho, quanto tempo podemos viver matando nossa fonte da vida?
A pergunta assustadora mobilizou uma família brasileira que, há décadas, trocou a segurança da terra firme pelas incertezas e horizontes sem fim dos oceanos, regidos por ventos e marés: os Schurmann. Com o intuito de mobilizar o planeta para o cenário aterrorizante a partir da observação das expedições mais recentes, criaram o projeto Voz dos Oceanos. “Em 1998, durante nossa segunda expedição de volta ao mundo, nós chegamos a uma ilha super-remota e de difícil acesso, chamada Henderson Island [Oceano Pacífico Sul]. Ninguém mora nesta ilha, mas nós a encontramos coberta de lixo plástico”, lembra-se David Schurmann, de 46 anos, filho de meio de Vilfredo e Heloísa [leia mais sobre a família abaixo]. “Desde então a gente vem assistindo à gradual degradação dos oceanos. Há diversos problemas: a pesca desenfreada, o branqueamento dos corais, mas a invasão plástica é a pior delas.”
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Outro episódio marcante para a família aconteceu, em 2016, durante a expedição de volta ao mundo mais recente. Quando eles chegaram a West Fayu, ilha paradisíaca e desabitada, localizada entre Papua Nova Guiné e Japão, encontraram mais uma vez a praia coberta de lixo. “Em 150 metros, nós tiramos 30 sacos de lixo”, lamenta David. Na ocasião, a família fez um vídeo sobre o estado da ilha que chegou a mais de 2 milhões de visualizações orgânicas na internet. “Foi neste momento que nós decidimos fazer algo. As pessoas precisam entender que a situação vai muito além da tartaruga, do golfinho. É a vida humana que está em jogo”, alerta.
A primeira etapa do projeto Voz dos Oceanos será uma expedição de 24 meses focada na problemática do plástico. Os objetivos da expedição: testemunhar a situação do resíduo plástico nos oceanos, buscar soluções inovadoras e oferecer as ferramentas e as informações necessárias para que outros também o façam, além de conscientizar as pessoas sobre um problema que as afetará diretamente, educando crianças e adolescentes para passar essa mensagem aos quatros ventos. “A comunicação é o ponto-chave para nós. Nossa família sempre foi uma grande contadora de histórias. Desta vez, não será diferente”, garante David.
Por isso, o projeto terá um forte plano de comunicação que envolve a produção de conteúdo para as redes sociais,
parcerias com influenciadores digitais e personalidades de vários países, além da divulgação de fotos, vídeos e palestras realizadas no próprio barco a serem transmitidas pela internet. O objetivo é estimular ao máximo o engajamento das pessoas. Atualmente, David está apresentando o projeto para empresas, entidades e pessoas de diversos setores para angariar o patrocínio de R$ 19,5 milhões e o apoio de que a expedição necessita.
Ao buscar soluções inovadoras, o projeto aposta na promoção do empreendedorismo consciente. Para isso, a família firmou uma parceria com a Spin, uma das maiores incubadoras de startups do Brasil, focada em encontrar soluções ambientais para as indústrias. O objetivo da parceria é buscar e fomentar empreendedores e startups com ideias e propostas inovadoras para encontrar soluções para a situação da poluição plástica dos oceanos.
A conscientização é outro ponto fundamental do projeto. Levar informação sobre o que está acontecendo no mundo em função do lixo produzido pela humanidade é, para a família Schurmann, uma missão de extrema importância. “O nosso planeta não tem ‘lado de fora’. Precisamos parar de achar que jogamos o lixo ‘fora’; na verdade, nós apenas o
deslocamos, tiramos da nossa frente, e ele vai parar nos nossos oceanos. E isso é um problema de todos os países, sem exceção. O oceano não tem fronteiras, a água que bate hoje em Ilhabela, bate na África daqui a uns anos”, explica David.
A Voz dos Oceanos Educacional é o braço do projeto que dialoga com as crianças e adolescentes. “É preciso falar diretamente com eles. Os jovens não são os agentes transformadores do futuro, são os maiores transformadores do presente. Hoje, os pais aprendem com seus filhos”, continua David. A ideia é que o conteúdo do projeto chegue às escolas e, para isso, será desenvolvido um material educacional bilíngue sobre cuidados com o plástico e como reduzir o seu uso, que será disponibilizado gratuitamente.
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As ações são voltadas à sociedade em geral. A mais ambiciosa é o braço científico do projeto. Cientistas, ambientalistas e estudiosos de vários cantos do mundo terão a chance de estudar a condição da água e a situação dos oceanos in loco em alguns dos lugares mais remotos do globo.
Uma nova tecnologia alemã, que utiliza drones, fará fotografias aéreas dos oceanos, captando a quantidade de partículas de plástico que existem em um determinado lugar. O veleiro vai funcionar como um verdadeiro laboratório de importantes pesquisas cujos resultados ficarão à disposição de diversas universidades e entidades científicas do mundo. Há três anos, a família vem se preparando para esta nova empreitada. A primeira expedição, que foca no resíduo plástico, será apenas o começo. Outras virão com novos temas, mas sempre com o mesmo propósito: escutar e propagar o grito de socorro dos oceanos.
MAR, DOCE LAR: COMO NASCE A PAIXÃO POR VELEJAR
Heloísa e Vilfredo Schurmann, hoje com 74 e 72 anos e três voltas ao mundo de veleiro no currículo (1984-1994; 1997-2000 e 2014-2016), nunca tinham colocado os pés em uma embarcação dessa até a década de 1970. Catarinense de Florianópolis, Vilfredo graduou-se em economia, foi consultor financeiro de grandes corporações brasileiras e chegou a ser convidado para a presidência de um banco, antes de trocar a terra pelo mar. Já a carioca Heloísa cursou inglês na New York University e se especializou em pedagogia, quando veio passar férias no Brasil e o destino amarrou o casal em 1967.
Curtindo as férias de verão no Caribe em 1974, eles tiveram a ideia de passear de veleiro. Foi paixão à primeira vista. De imediato, fizeram uma promessa que voltariam um dia, em seu próprio barco. Nascia também o sonho de dar a volta ao mundo. De volta a Florianópolis, compraram uma casa perto do mar e o primeiro barco. “Era um barco simples, pesado, aquele que ninguém queria”, lembra Vilfredo. A partir dali, junto com os filhos Pierre, hoje com 52 anos, David, 46, e Wilhelm, 44, a família se uniu no aprendizado da arte de velejar.
“Certo dia, li em uma revista que o primeiro passo para realizar algo é marcar a data. Pois bem, marcamos. Quando David completasse 10 anos nós partiríamos”, conta Heloísa. Em 14 de abril de 1984, pais e filhos, então com 15, 10 e 7 anos, zarparam a bordo do veleiro Guapo Frers, de 44 pés, para uma expedição que inicialmente duraria três anos – passado esse período, porém, perceberam que não tinha volta. “Era aquilo o que queríamos da vida: viver do mar, e no mar”, conta Heloísa, que já escreveu quatro livros sobre as andanças da família, o mais recente “Expedição Oriente: 812 dias de uma volta ao mundo”, de 2019.
Os três meninos estudavam com as aulas que Heloísa dava a eles em alto-mar e, depois, em uma escola norte-americana por correspondência. Em 1990, Pierre desembarcou nos Estados Unidos para cursar administração. Dois anos depois, foi a vez de David descer na Nova Zelândia para estudar cinema (ele dirigiu o documentário “O mundo em duas voltas”, lançado em 2007). Wilhelm foi o único dos três que completou 10 anos de expedição, retornando com os pais em 1994. Mais tarde, ele se transformaria em um campeão de windsurf; hoje, é o segundo capitão da família.
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Com os três filhos criados, a família teve uma surpresa em 1995, no lançamento do primeiro livro de Heloísa, “Dez anos no mar”. Robert, um amigo neozelandês do casal, veio visitá-los com a filha, Kat. “Nós nos surpreendemos de ver o Robert, sem a [mulher] Jeanne. Ele, então, nos disse que ela havia falecido de HIV: havia recebido uma transfusão após ser atropelada”, conta Heloísa. Robert e Kat, na época com 3 anos, também estavam infectados. Sem saber quanto tempo tinha de vida, Robert pediu ao casal brasileiro que adotasse sua filha.
“Nós a adotamos, e ela virou nossa pequena aventureira. Era muito inteligente e curiosa”, lembra Heloísa. Kat faleceu aos 13 anos, em 2006. A revelação de condição aparece anos depois, no livro “O Pequeno Segredo”, que, mais tarde, seria adaptado para cinema por David.
A pequena marinheira segue presente: Kat é o nome do atual veleiro de 80 pés dos Schurmann, embarcação que virou o endereço da família e foi construída para a terceira volta ao mundo. É a bordo de Kat que farão o projeto Voz dos Oceanos.
Reportagem publicada na edição 81, lançada em outubro de 2020
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