O bicho da arte mordeu o menino Daniel através das imagens nas enciclopédias da biblioteca da família Senise, herdadas do avô, que o pequeno folheava com curiosidade toda vez que tinha oportunidade. A experiência cravou na imaginação da criança e delineou o olhar do futuro artista até moldar seu bem tramado conceito, denominado por ele “sistemas de representações”. Desde 2000, as referências de livros de arte e de arquitetura de museus ajudam a desenvolver sua narrativa característica composta de camadas, impressões, memória e vazio, que registra o tempo/espaço em apropriações de fragmentos de obras de mestres como Giotto, Caspar Friedrich, Michelangelo, François-Joseph Heim e James Whistler.
Antes de se matricular na EAV (Escola de Artes Visuais) do Parque Lage, no Rio, entregou ao pai, aviador da Panair, o canudo de engenharia civil. Missão cumprida. EAV era “a“ escola experimental para quem queria mergulhar no universo da liberdade criativa. Não sem atropelos políticos na ditadura, a escola, fundada em 1975, fica aos pés do morro do Corcovado no bairro do Jardim Botânico, em uma vila neo-romana, construída em 1920 como residência de uma excêntrica diva da lírica italiana que roubou o coração de Lage, rico empresário carioca. Ali o Cinema Novo filmou a famosa cena da feijoada de “Macunaíma” e Glauber Rocha fez partes de “Terra em transe”. Para as artes plásticas foi lá que se deu o momento de virada, a antológica coletiva “Como vai você, Geração 80?” (1984), com curadoria de Marcus Lontra, que desafiava a “morte” da pintura.
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O evento ganhou enorme repercussão, transformando o panorama das artes nacionais ainda dominado pela racionalidade da arte concreta. A nova cena decretada pelos jovens alavancou a energia gestual da pintura neo-expressionista, sem lenço, nem documento, sem compromisso com estilos, do movimento que surgiu na Itália e na Alemanha do final dos 70/início dos 80, chamado Transvanguarda, cunhado pelo influente crítico italiano Bonito Oliva. Para “Como vai você, Geração 80?”, Senise pintou uma figura gigantesca, meio Hulk de gibi, e batizou-a Sansão. Condizente com a figura bíblica, o Sansão de Senise foi estrategicamente pendurado entre os arcos centrais da vila, no pátio da piscina com ares de banho romano. Como no Antigo Testamento, o Sansão de Senise acabou destruído, restando poucas fotos para contar. Mas Sansão impregnou Senise de força pois ele logo explodiu no mercado, virando nome do primeiro escalão das nossas artes.
Ao conversamos sobre a atual exposição, a terceira em nossa galeria, me intrigou o título: quem seria a tal Verônica? Mais uma vez é um personagem bíblico que serve de mote para sua inspiração. Em suas pesquisas, descobriu esse personagem feminino que teria, conforme lenda milenar, secado o suor da face de Cristo no caminho ao Calvário com seu manto, ficando as feições do divino impressas no tecido à maneira de uma mortalha fúnebre ou sudário. O Manto de Verônica, assim como o Sansão de Senise, não resistiram ao tempo, mas a mitificação de ambos permaneceu.
Em “Verônica”, as obras apresentam museus famosos, como Louvre, Prado, Tate, Guggenheim, todos despidos das telas nas paredes, todos com leve camada esfumaçada branca à maneira de um sudário metafórico. Nas palavras do artista: “Os trabalhos desta série surgem de escavações nas monotipias que realizo em paredes. As monotipias são feitas através de extrações compostas por várias camadas de tintas depositadas nas paredes ao longo do tempo. Em seguida, essas extrações são transferidas para o pano de algodão que utilizo no processo. Posteriormente, construo as imagens retirando, raspando ou lixando algumas dessas camadas de tinta. As imagens que represento nesta série são do manto de Verônica representado em obras de artistas dos séculos 16 e 17”. Resumindo, na visão do curador, Luis Pérez-Oramas: “Trata-se de uma reflexão ambiciosa sobre o lugar da imagem – também sobre o lugar da pintura – que condiz com o trabalho que Senise tem realizado nos últimos anos”.
Serviço:
Daniel Senise: Verônica
Galeria Nara Roesler São Paulo
De 20/08 a 01/10
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Com colaboração de Cynthia Garcia, historiadora de arte [email protected]
Nara Roesler fundou a Galeria Nara Roesler em 1989. Com a sociedade de seus filhos Alexandre e Daniel, a galeria em São Paulo, uma das mais expressivas do mercado, ampliou a atuação inaugurando no Rio de Janeiro, em 2014, e no ano seguinte em Nova York.
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