Ela está sentada de frente para o espelho, no camarim de um estúdio na Vila Leopoldina, em São Paulo. São 9 horas da manhã e Djamila Ribeiro sorri. Está bem-humorada e parece disposta a encarar a sessão de fotos e entrevista com serenidade. Veste um blazer cor de laranja sobre um macacão verde-musgo. Seu tênis tem o logo da Balenciaga. Passada a fase de preconceito assumido, hoje ela enxerga a moda como uma forma de expressão pessoal e, portanto, ferramenta de comunicação.
Autora dos best-sellers Cartas para Minha Avó, Lugar de Fala e Pequeno Manual Antirracista – este último, o livro mais vendido no site brasileiro da Amazon em 2020 –, Djamila terminou o ano de 2022 assumindo uma cadeira na Academia Paulista de Letras, em uma cerimônia de posse espetacular, com a presença do pai de santo Rodney William e de toda a sua comunidade do candomblé.
Filósofa, feminista, professora universitária da PUC de São Paulo, influenciadora digital com mais de 1,2 milhão de seguidores no Instagram, Djamila é hoje uma das grandes pensadoras do país e ativista fundamental na luta antirracismo. Em entrevista à ForbesLife Fashion, ela fala sobre como a beleza, o autoconhecimento e a clareza sobre fortalezas e fragilidades pessoais podem ajudar a trazer confiança. E, você sabe, confiança é tudo.
FORBESLIFE FASHION: Crescemos ouvindo que mulher é guerreira. Até que ponto isso nos fortalece e até que ponto essa ideia é nociva?
DJAMILA RIBEIRO: Essa é uma ideia nociva porque naturaliza uma força descomunal das mulheres, sem refletir por que temos de ser guerreiras, sobretudo, no caso da mulher negra. Tem que ser forte, porque a sociedade é desigual, porque há imposição de uma série de papéis para a gente. E isso acaba tirando nosso lugar de ser humano. Muitas vezes, a gente só quer ser humano e poder dizer que está cansada, que está triste; se as pessoas naturalizam esse lugar da guerreira, quando a gente reclama de alguma coisa, dizem: “Ah, mas vocês são fortes”. E assumir nossas fraquezas e fragilidades faz parte. Atrás dessa figura de guerreira, existem muitos homens descansados.
FLF: Atrás de um folgado, há sempre uma afogada.
DR: Exatamente. Venho de uma família de mulheres que naturalizaram demais essa ideia porque foram forçadas a isso, e muitas vezes adoeceram. É claro que somos fortes, mas tem dia que estamos cansadas, fracas. Temos de lutar mais pela condição de sermos humanas.
FLF: Durante sua posse na Academia Paulista de Letras, houve uma intersecção do mundo acadêmico com o do candomblé. Qual é a importância de promover esse encontro?
DR: Foi muito importante chegar lá sendo quem eu sou. Muitas vezes, ao longo da história, as mulheres tiveram que se masculinizar para fazer parte de alguns espaços majoritariamente masculinos. Assim como muitas pessoas negras tiveram que negar quem eram para estar em determinados espaços dominados por pessoas brancas. Para mim, era importante chegar nesse espaço sendo uma mulher do candomblé, que veio da classe trabalhadora e passou por uma série de questões na vida para poder estudar. Isso elimina o lugar do inalcançável. Às vezes, parece que a gente chegou lá, e é isso, parece até que não passa mais por determinadas situações ou que a gente chegou por um caminho sem atribulações. Então, para mim, era importante me humanizar no meu discurso, contar que também não foi fácil, que eu tive meus medos, tive minhas fraquezas, mas que eu sou uma mulher de axé e que isso compõe fundamentalmente quem eu sou. E eu não chego sozinha, levo minha comunidade inteira. Uma irmã minha fez os acarajés, o outro fez o som, a outra fez a roupa que eu vesti.
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FLF: O seu figurino estava maravilhoso! Foi inspirado em um look da Whitney Houston, não é?
DR: Sim, quis levar o pop para dentro do erudito e quebrar com essa ideia de que a gente é uma coisa só, de que, se você é um intelectual, tem que ser sério. Isso faz parte de uma lógica patriarcal e acho que a gente, às vezes, incorpora coisas para poder ser aceito em determinados espaços. Durante a minha graduação, por exemplo, tive que incorporar isso. Já a posse para mim foi um momento de libertação e pensei: “vou entrar aqui sendo quem eu sou”. Acho que é importante esse simbolismo. Sou, atualmente, a única mulher negra da academia. Não sou a primeira, sou a segunda, a primeira foi a Ruth Guimarães. Mas quis chegar trazendo a ancestralidade, o candomblé, a comunidade, enfim, pessoas que nunca estariam naquele lugar se eu não tivesse sido nomeada para a casa. Quando olho o panteão do candomblé, vejo orixás tão diferentes entre si, mas todos dançando no mesmo shirê. Isso me faz acreditar que podemos ser quem somos e, ao mesmo tempo, manter a coletividade.
As mulheres têm que ser fortes, porque a sociedade é desigual, porque há imposição de uma série de papéis para a gente. E isso acaba tirando nosso lugar de ser humano. Muitas vezes, a gente só quer ser humano e poder dizer que está cansada, que está triste.
FLF: Você é uma das pensadoras mais famosas do Brasil. Ter alcançado popularidade é um problema dentro do universo acadêmico?
DR: Para mim, é muito importante me comunicar com diversos públicos. No mundo acadêmico brasileiro, existe sim um certo preconceito com intelectuais públicos, o que eu, sinceramente, não vejo tanto nos Estados Unidos e em muitos países da Europa, onde é comum que isso aconteça. No Brasil, sinto que a academia ainda é muito fechada, que acha que tem que falar só para dentro, para os supostamente escolhidos. Mas eu venho de um lugar social de mulheres trabalhadoras; é importante me comunicar com essas pessoas ao mesmo tempo que eu também quero me comunicar com a academia. Sobretudo no que diz respeito aos temas sobre a condição feminina ou a luta antirracista; quero falar de uma maneira que todas as pessoas compreendam. Fico muito feliz de chegar a uma periferia de São Paulo, do Rio de Janeiro ou do Maranhão e ser recebida por meninas que sabem quem eu sou, que estão lendo meus livros. Sair da bolha da intelectualidade é um objetivo para mim.
FLF: Você acredita na filosofia como ferramenta para mudar o mundo?
DR: A filosofia é uma maneira de interpretar o mundo, o que já é uma finalidade importante porque, muitas vezes, a não compreensão do mundo faz com que a gente não consiga se sentir parte dele. Sem interpretar o mundo é impossível transformá-lo.
FLF: A filosofia ensinada no Brasil ainda é muito eurocêntrica. Mas você vem ajudando a mudar esse quadro. Como as religiões de matrizes africanas podem contribuir com o ensino brasileiro?
DR: Para a gente, o candomblé não é só uma religião, é uma filosofia, um modo de ver a vida. E se a gente estuda, por exemplo, mitologia grega, por que a gente não estuda mitologia iorubá? Apesar de termos a Lei 10.639, que é uma lei de 2003, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação para obrigar o ensino da história africana e da história afro-brasileira nas escolas, ainda temos um longo caminho pela frente, até porque diversas escolas não cumprem a lei, infelizmente.
Tem um filósofo de que eu gosto muito, chamado Walter Benjamin. Em sua tese sobre o conceito de história, ele diz que “a história é contada pelo ponto de vista dos vencedores, e se a gente não contar a história a contrapelo, os vencedores nunca cessarão de vencer”. Ele dizia isso enquanto homem judeu, mas dá para seguir esse pensamento por diversas perspectivas: se não contarmos a história através da perspectiva das mulheres, dos negros, dos indígenas e não elaborarmos o mundo por essas perspectivas, os vencedores não cessarão de vencer, e essa história eurocêntrica e masculina, que colocou a mulher e as pessoas negras como objetos, continuará se perpetuando.
FLF: O que os orixás femininos podem nos ensinar em relação à beleza?
DR: Muito! Tem um lugar no feminismo hegemônico ocidental, que está certo no sentido de questionar a imposição dos padrões de beleza e, com isso, muitas correntes feministas questionaram, por exemplo, o fato de as mulheres usarem maquiagem para estarem bonitas. E tudo isso é compreensível, mas, quando você parte do lugar da mulher branca, faz mais sentido, né? São mulheres que, historicamente, foram consideradas padrões de beleza. Mas, para as mulheres negras, muitas vezes ter acesso à beleza foi uma conquista. Inclusive, da gente se entender bonita, em uma sociedade em que o padrão de beleza é eurocêntrico. Por exemplo, ter maquiagem para o nosso tom de pele e produtos para o nosso cabelo é algo recente. Só fui achar uma base para o meu tom de pele quando já tinha 30 e poucos anos. A mulher negra parte de outro lugar e, nesse sentido, as orixás femininas nos ajudam muito, porque elas mostram que não há problema nenhum em estar bonita.
Oxum, por exemplo, que é uma orixá muito bonita e é a orixá da fertilidade, limpa suas joias e nos ensina a importância de olhar para nós mesmas antes de cuidar dos outros, inclusive dos filhos. Da mesma forma que Iansã, uma mulher muito sensual, que, quando anda no mercado, todo mundo olha para ela, mostra que não é preciso negar a sua beleza, sensualidade e feminilidade. O problema é fixar a mulher nisso, porque, ao mesmo tempo que Iansã é muito bonita e sensual, ela é uma mãe que vai para o mercado trabalhar. Ela nos ensina que você pode ser uma mãe que trabalha fora e que é trabalhadora, mas também que cuida dos seus filhos, porque ela tem nove filhos e deixa um chifre de búfalo com eles; se eles precisarem dela, é só baterem o chifre que ela vem com a velocidade do vento para socorrê-los. Então nos ensina que você pode ser uma mãe que tem uma vida fora, é trabalhadora e que também é protetora, que esses lugares não são conflitantes, eles são complementares.
Para as mulheres negras, muitas vezes ter acesso à beleza foi uma conquista. Inclusive, da gente se entender bonita, em uma sociedade em que o padrão de beleza é eurocêntrico
FLF: Feminino é um lugar de poder pela perspectiva dos orixás. Como a espiritualidade ajuda a encarar a vulnerabilidade?
DR: Essas orixás me ensinaram a não me sentir culpada ou ficar em conflito comigo mesma por ser uma mãe protetora, que ao mesmo tempo tem vida própria, gosta de cuidar de si e tem o seu trabalho. O que os orixás trazem é uma lógica muito libertadora, não é lógica do “ou”, de acordo com a qual ou você é uma coisa ou outra. Você não tem que matar uma parte de si para viabilizar outra; podemos ser diversos e plurais. Iansã, por exemplo, é guerreira; é a única orixá que vai para a guerra. Ela empunha uma espada, mas ela é mãe protetora também e teve nove filhos. As orixás femininas nos libertam da lógica colonial. A gente consegue viver mais a nossa plenitude, sem muitos conflitos.
FLF: Para você, o que é beleza?
DR: A beleza para mim é uma construção. Durante muito tempo, tive que me entender bonita. Por mais que meus pais dissessem que eu era bonita, por conta dessa imposição de um tipo de beleza no qual eu não me encaixava, para mim, a beleza tinha de ser construída. Foi o ato de olhar no espelho e gostar do que eu estava vendo. Para muitas mulheres negras, a beleza foi uma construção recente, dura, mas, quando você consegue se ver com os olhos da beleza e do amor – porque o mundo nunca olha para você assim na rua –, é muito poderoso e transformador! A beleza para mim não é só a beleza física; beleza é também cuidar da espiritualidade. Sou uma pessoa que, ao mesmo tempo que gosto de estar produzida, lido muito bem em estar com a cara limpa.
Também gosto e cuido muito da minha dimensão espiritual. O candomblé nos ensina a beleza do nosso comportamento, que diz que a gente tem que ter um comportamento elevado para poder honrar os nossos orixás. Oxalá, por exemplo, né? É o pai de todos; a gente usa branco todas as sextas-feiras em homenagem a ele. Porque se diz “quem usa branco não se senta na graxa”, o que significa dizer que a gente precisa manter o nosso comportamento elevado.
FLF: Conte um pouco sobre os seus orixás.
DR: Sou filha de Oxóssi, que é o orixá da mata, é o caçador que sempre caça sozinho, mas para a comunidade. Eu me identifico muito com essa característica. Gosto muito de ficar no mato, no silêncio; detesto barulho, é uma coisa que me desequilibra. Então, tenho essa característica, ao mesmo tempo que gosto de estar com as pessoas, eu gosto muito de estar sozinha, entende? Também sou filha de Iansã, que é essa orixá forte, do vento, da tempestade. Ela pode ser representada tanto por um búfalo, quanto por uma borboleta. Meu desafio é melhorar até as próprias qualidades do orixá e encontrar um equilíbrio. Quero saber a hora de ser búfalo e a hora de ser borboleta, porque a gente é muito de extremos, né?
O desafio da minha vida é encontrar equilíbrio. Muitas vezes, ligo para o meu mestre irritada, e ele diz: “Calma, minha filha”. E é muito interessante como a gente vai se identificando, o orixá é uma forma de autoconhecimento. Nós batemos cabeças aos orixás, reconhecemos a grandeza de cada um deles, reconhecemos que estamos aqui e que somos uma pessoa neste mundo todo. O momento em que entendemos nossa pequenez diante da grandeza do mundo traz a dimensão de que a gente é parte do todo. Não tomei nenhuma grande decisão na minha vida sem consultar os orixás.
FLF: Você é adepta de terapias holísticas, da apometria e do reiki, certo? Isso ajuda no bem-estar? Qual o seu nível de entrega para rituais de autocuidado?
DR: Medito e sou mestre em reiki. Fiz os cursos, então posso aplicar em mim e também nos outros. Tenho uma terapeuta holística que faz apometria em mim todos os meses, que é como se fosse uma ressonância magnética energética.
FLF: Como você descobriu essa técnica, como chegou a ela?
DR: Minha vó é benzedeira, e eu fui iniciada no candomblé aos 8 anos. Sempre gostei de cultivar o lado espiritual, até que eu conheci a técnica no Rio de Janeiro, em um ateliê de mulheres onde eu fazia massagem, coisa que adoro também. Nunca tinha ouvido falar em apometria e fiquei interessada, fui querer saber mais e adorei. Para mim, é fundamental ter esses momentos de autocuidado, de limpeza energética. Sou a louca do incenso, defumo a casa; tenho orixás assentados em casa, então tem dias que passo horas cuidando deles, faz parte da minha rotina. E também gosto de alinhar os meus chakras com cristais. Tudo isso é fundamental para minha vida. Tem dias em que eu trabalho 12 horas, então preciso me manter equilibrada energeticamente e emocionalmente.
FLF: Quer trabalhar menos?
DR: Estou sempre querendo trabalhar menos. Todo ano, falo que não aguento mais, mas acho que, com o tempo, também estou aprendendo a dizer não para alguns convites e entendendo que tenho meus próprios limites. Isso era uma dificuldade para mim. Ao mesmo tempo, estou envolvida em muitos projetos, sou escritora, coordeno um selo que publica mais de 25 autores e tenho um espaço, o “Femininos Plurais’’, que oferece atendimento psicológico e jurídico para mulheres. Além disso, sou mãe, então, realmente é muita coisa. Por isso mesmo, cuidar da minha energia é fundamental para que eu consiga fazer tudo ao mesmo tempo. Agora, também estou cuidando mais da minha alimentação; fui a uma nutricionista, estou seguindo uma dieta, tomando suplementos de vitaminas. Essa era uma dimensão que eu negligenciava antes e agora não mais.
FLF: Você pratica algum esporte?
DR: Faço kung-fu, mas não com a regularidade que eu gostaria. Ainda assim, é algo que eu amo fazer; sinto prazer, pareço uma criança, eu vou feliz da vida, quero aprender os golpes novos, saio de lá bem. E já entendi que é o que gosto de fazer.
FLF: Em relação à moda, como foi entrar em contato com o universo da alta-costura?
DR: Tinha aquele preconceito com a moda, de quem não é da área. Mas, quando você chega lá e conhece de perto, vê que tem todo um estudo por trás, um trabalho criativo muito interessante. Conhecer por dentro, entender tudo que está por trás de cada coleção e também descobrir que não se trata de mera futilidade me fez perder o preconceito. Gosto muito de moda; não sou uma pessoa que está por dentro das novas tendências, mas gosto de acompanhar estilistas brasileiros, gosto de usar marcas brasileiras, como a Apartamento 03, Angela Brito, Isaac Silva, Paula Ferber, entre outras. No Brasil, tem muita gente talentosa, gente incrível e, talvez, na moda, a gente precise descolonizar um pouco o nosso olhar, porque a gente é muito pautado nas semanas de moda da Europa, no norte global e, às vezes, esquecemos de olhar para a riqueza que a gente tem aqui.
FLF: Qual é o seu sonho?
DR: Meu sonho coletivo é que a gente viva num país menos desigual e que nos tornemos um país que valorize a diversidade do seu povo. Nasci nesse lugar de pautar o coletivo, de pensar no coletivo e de fazer minha parte para o coletivo. E meu sonho individual, como pessoa, é o de envelhecer; quero chegar a ser uma mulher velha. Minha mãe morreu aos 51 anos, meu pai aos 52, minha avó aos 60 e poucos. Quero envelhecer bem, saudável, ver minha filha crescer, quero vê-la adulta. Quero parecer uma preta velha, esse é o meu sonho. A longevidade, sobretudo na minha família, é algo que muitos não atingiram. Meu sonho é envelhecer bem, saudável e feliz.
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Djamila Ribeiro
Entrevista publicada na 3ª edição da ForbesLife Fashion, de novembro de 2022