“Nasci duas vezes no mesmo lugar”. Assim diz o artista carioca Elian Almeida, de 29 anos, ao se referir ao Cais do Valongo, seu local de nascimento. Incrustado no cais do porto do Rio e conhecido como “Pequena África”, o Valongo foi um dos principais pontos de desembarque e comercialização de africanos entre 1811 e 1831. Durante o regime escravagista, o Brasil recebeu cerca de quatro a cinco milhões de africanos, só pelo Valongo entrou um milhão de futuros escravos. Triste realidade, nosso país foi o que mais recebeu escravos africanos no mundo.
O duplo nascimento de Elian se dá pois o Valongo, onde nasceu em 1994, foi por onde chegaram há duzentos anos seus ancestrais rotulados de forma desumana como “mercadoria/coisa”, e não “pessoa/ser humano”. Fincado na formação da identidade brasileira, o legalizado desrespeito, que nossa história oficial tentou apagar, é o ponto de partida da missão que move a bela pintura de Elian que vê no apagamento a maior forma de violência.
Exposição de Elian Almeida na galeria Nara Roesler começou nesta terça (13); veja fotos
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Flavio Freire Vista da individual de Elian Almeida na Galeria Nara Roesler, São Paulo
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Flavio Freire Vista da individual de Elian Almeida na Galeria Nara Roesler, São Paulo
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Flavio Freire Vista da individual de Elian Almeida na Galeria Nara Roesler, São Paulo
Vista da individual de Elian Almeida na Galeria Nara Roesler, São Paulo
Em alusão à histórica cicatriz, “Pessoas que eram coisas que eram pessoas”, é o sugestivo título da primeira individual que o artista apresenta na galeria Nara Roesler em São Paulo, em exibição até 23 de julho. Desta vez sua pesquisa sobre a cultura e memória afro-brasileira o leva a se debruçar sobre as manifestações culturais do Recôncavo Baiano. O fio condutor das telas é a religiosidade, com seus rituais sincréticos, irmandades, cenas de danças e ritmos consagrados aos orixás, além da Umbanda e do Candomblé.
Tudo remete fielmente à atmosfera colonial-barroca do recôncavo com oratórios trabalhados, esculturas de santos, mobiliário de jacarandá, fachadas de casarios e igrejas com volutas, e interiores forrados do azul e branco dos azulejos portugueses. Dando vida à cenografia estão as tradicionais baianas com seus balangandãs de ouro, suas rendas e saias engomadas, a roda de capoeiristas com seus atabaques e o birimbau. Estão também retratados alguns personagens, como Tia Carmem do Xibuca, uma baiana de origem que viveu no Rio onde se tornou uma das líderes da “Pequena África”.
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Ali também viveu outro grande das nossas artes, Heitor dos Prazeres (1898-1966), primeiro pintor afrodescendente a retratar as manifestações afro-brasileiras nas telas. Prazeres fincou seu nome na história da arte brasileira ao romper a barreira do mercado de arte de então, ainda hoje dominado por marchands e pintores brancos.
Um dos destaques da exposição é “Ventre Livre II”. Na tela, uma mulher negra, deitada ao chão de um sobrado colonial, está prestes a dar à luz, assistida por sua parteira, uma rezadeira. A partir de sua promulgação em 1871, a Lei do Ventre Livre, uma das precursoras da Lei Áurea, atribuía liberdade aos filhos de mulheres escravizadas. Munido de sua ancestralidade africana e das nossas cores, a obra de Elian fortalece a historiografia afro-brasileira, vital para a nossa identidade como nação. Sem dúvida, uma grande missão.
Com colaboração de Cynthia Garcia, historiadora de arte, premiada pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) – [email protected].
Nara Roesler fundou a Galeria Nara Roesler em 1989. Com a sociedade de seus filhos Alexandre e Daniel, a galeria em São Paulo, uma das mais expressivas do mercado, ampliou a atuação, inaugurando no Rio de Janeiro, em 2014, e no ano seguinte em Nova York.
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