O coaxar das botas afundando na neve até a canela faz dueto com o espetar dos bastões de caminhada, que trespassam o tapete macio quase em câmera lenta. Rajadas da nevasca vêm na horizontal, agitam o capuz azul como uma vela solta no mastro, colam flocos brancos no rosto, fazem a testa e os olhos enrugarem, incrédulos com uma beleza inédita, acachapante.
Mais de uma vez, em menos de hora, não consigo controlar a emoção e me pego soluçando, falando sozinho, quase um delírio – apalpo novas sensações, giro 360 graus, ando de costas, me perco na paisagem. A cena tem o ritmo de um sonho – sonho antigo, diga-se. Nos meus 50 anos, desde sempre quis perambular à toa por esquinas antárticas. Nesse instante, deixo pegadas em Damoy Point, perto de Port Lockroy, na Ilha Wiencke – Antártica.
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Observo sem pressa o trânsito de pinguins-gentoo, a conversa entre eles, a paquera, e até os finalmentes – se é que me faço entender. Mesclo a admiração de planos abertos (enquadrando centenas de indivíduos, impávidos sob a cortina de neve); com planos mais fechados, atento ao tamanho de cada animal (podem chegar a 90 cm –, é o terceiro maior pinguim, atrás do imperador e do rei); a detalhes como a mancha branca na cabeça e o bico de um laranja intenso; ao jeito trôpego de ser (talvez não exista bicho mais hilário e fofo no mundo) e a preguiça de andar de barriga cheia e preferir deslizar tobogã abaixo, com as asas abertas, até mergulhar no mar coalhado de gelo e pôr em prática o que sabe fazer de melhor: nadar. O gentoo é um exímio nadador, a ave mais rápida sob a água, alcançando 36 km/h – não o suficiente para escapar de uma orca, que arranca a mais de 50 km/h…
Como pano de fundo a esses momentos mágicos, picos escarpados de rocha vestidos de neve, dramáticos pela proximidade da água, iluminados – minuto sim, minuto não – por um sol fraco, mas eficiente no driblar de nuvens que se fundem ao cinza que domina o horizonte. Entre os planos, como se pintado à mão, o SH Vega se esconde na penumbra, tenta não chamar a atenção – mas, não consegue. É um navio bonito demais – sensação na abertura da temporada de cruzeiros antárticos, que enfrentam a temida Passagem do Drake do início de novembro até o fim de março. Ele faz parte da frota de três navios da Swan Hellenic – fique de olho (swanhellenic.com) nas datas da temporada 24-25.
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Por dentro do navio
O SH Vega foi fabricado pelo Helsinki Shipyard, estaleiro finlandês especializado em quebra-gelos e navios de cruzeiro. Desde a fase de projeto, ele foi concebido atendendo aos mais recentes requisitos ambientais: limpeza de gases de escape, sistema avançado de tratamento de águas residuais e instalações de armazenamento de resíduos – embarcação autossuficiente por até 40 dias ou 8 mil milhas náuticas.
Ele ganhou os mares em julho de 2022. Está tinindo de novo, com design escandinavo e ambientes espaçosos para lá de agradáveis – mal voltei da viagem e já tenho uma saudade danada do navio. Sabe aquele lugar de que você gosta do cheiro, dos móveis, da comida, da música, do serviço, do spa com massagem da balinesa Yuslianti Ab, da sauna com vista para o mar, da jacuzzi quente no deck externo com temperaturas abaixo de zero? Então, esse lugar é o SH Vega.
Fiquei 10 dias nele, no roteiro que zarpa de Ushuaia, localizada no extremo sul da Argentina, que costuma vendê-la como a “cidade mais austral do mundo”, o que não é verdade. Isso porque Puerto Willians, no Chile, fica mais ao sul (a latitude de Ushuaia é 54º 48’ 57’’ contra 54º 93’ 35’’ da sua vizinha chilena). Bom, o que importa para nós, viajantes, é que Ushuaia é linda pra chuchu, cercada por picos nevados, com o porto na boca do Canal de Beagle, que funciona como uma confortável sala de estar antes da balbúrdia do Drake.
São 115 metros de comprimento, 23 de largura, nove decks, capacidade para 152 passageiros, tripulação de 120 funcionários e 76 cabines. As duas maiores são a Premium Suítes, com 49 metros quadrados, walking closet, banheira, sala, quarto e um terraço privativo de 12 metros quadrados – fiquei em uma delas, a 629, no deck 6.
“Nosso conceito de luxo está ligado à quantidade de pessoas que levamos a bordo, que é menor do que a da concorrência, e à exclusividade dos serviços”, explica o italiano Andrea Zito, CEO da Swan Hellenic, que lançou a marca em julho de 2020 (estive com ele em Santos (SP), 10 dias antes do embarque à Antártica, na apresentação do navio). “O mercado norte-americano e parte do europeu já entendeu a diferença que é embarcar em uma expedição como essa.”
A frase de Andrea se reflete na ocupação da viagem que fiz: entre os 120 passageiros, havia 19 nacionalidades, a maioria de norte-americanos. Embarquei no roteiro mais curto, que sai de Ushuaia e faz um bate e volta na Península Antártica (dois dias na ida e dois na volta só para vencer o Drake), realizando desembarques em baías e ilhas (e passeios de zodiac, uma espécie de lancha para 10 pessoas). O maior roteiro da Swan Hellenic envolvendo desembarque na Antártica navega por 18 dias: sai de Ushuaia e traça no mar um grande triângulo, tendo como vértices as Ilhas Falkland, Geórgia do Sul e a Península – meu novo sonho.
Urgência de viver
O zarpar de Ushuaia no fim da tarde de 6 de novembro foi marcado por um raro arco-íris, bem baixinho, rente ao mar. “Nunca vi nada parecido”, confessou o capitão croata Tino Borovina, 58 anos de vida, 35 de mar. Sobre o navio, ele sublinhou a importância de existir um match imediato entre a maior autoridade a bordo e a embarcação. “Me apaixonei assim que entrei no SH Vega”, disse em inglês, referindo-se ao navio sempre no feminino. “É importante criar uma conexão logo no início. Caso contrário, viro as costas e vou embora. É um navio muito forte, mas é importante dizer que o que faz a diferença mesmo é a nossa equipe, a nossa tripulação, pessoas de 28 nacionalidades – são todas muito experientes. E o fato de serem menos passageiros do que cruzeiros comuns foi essencial para eu estar aqui. Não me interessam viagens com centenas e centenas de turistas.”
Enquanto o SH Vega desfila no manso Canal de Beagle, ladeado por baixas montanhas, algumas cobertas pelo verde das árvores, tomo conhecimento das histórias de vida de alguns passageiros e, de cara, entendo o que existe em comum entre eles, independentemente da idade de cada um (a média é de 53 anos): por trás da decisão de visitar a Antártica, há uma urgência de viver, de não adiar mais os principais desejos, de parar de repetir que “não tem tempo” para uma jornada mais longa, de visitar o quanto antes o que de mais maravilhoso (ainda) existe neste planeta. Talvez por tudo isso, se crie uma atmosfera de confraternização tão rapidamente. Sorrisos escapam, conversas pipocam por todos os lados, histórias e viagens mundo afora são compartilhadas e, de repente, parece que somos amigos de longa data, brindando com ótimos vinhos da França, da Itália, da Espanha, da África do Sul e da Califórnia.
“Eu e minha mulher nunca tínhamos visitado a América do Sul”, começa David Hawdon, advogado australiano aposentado, de 70 anos, de Sunshine Coast, ao lado da esposa Fiona. “Até que aconteceu um episódio que nos tocou muito. Meu melhor amigo tratava um câncer na próstata, mas daí foi para o cérebro e ele soube que não teria muito tempo de vida. Saiu viajando com a família, foi a diversos lugares e morreu um mês após retornar para casa. No funeral dele, o padre disse uma frase que gravamos: ‘a vida é muito curta para dias preguiçosos’. Ao chegarmos pra casa, sentamos na sala e ficamos em silêncio. Em pouco tempo, recebi pelo celular uma propaganda de viagem para a Antártica, algo em que nem sonhávamos. Olhei para a Fiona e perguntei: ‘vamos?’. Bom, poucas semanas depois, cá estamos – e muito felizes.”
Benjamin Brumpton, de 27 anos, australiano, este de Perth, que trabalha com mineração de ouro, é outro passageiro impactado por acontecimentos com o melhor amigo – no caso, um suicídio. “Resolvi que não dava para esperar ficar mais velho para sair viajando pelo mundo e, desde 2018, tenho rodado bastante, já fui a 39 países e pisei em todos os continentes – preciso ir ao Brasil, mas não planejo nada com muita antecedência. Só decido um mês antes.” Ao final da viagem, Benjamin resumiu a experiência como: “absolutamente fenomenal, 10 vezes melhor do que imaginava, você se sente criança de novo e passa a olhar a vida de uma forma diferente.”
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A primeira noite no Drake
Tudo ia muito bem, obrigado, até que observo, pouco antes da meia-noite, pelo mapa que se pode acessar na televisão da suíte, que vencemos as primeiras 80 milhas náuticas da viagem, o prático já voltou para Ushuaia, o Beagle está ficando no retrovisor e o SH Vega recebe as primeiras lambidas do Drake. O navio começa a balançar.
Sou aquele tipo de gente que não gosta de tomar muito remédio, então, errei (feio) em não atender à recomendação de se prevenir com alguma medicação contra o enjoo antes de a vaca ir para o brejo. Com o tempo, o balançar aumenta. Ondas de quatro, cinco metros. É um chacoalhar confuso, em todas as direções. Deitado na cama, o corpo faz uma pressão estranha no colchão. Durmo em intervalos e fica mais evidente o quão remoto estamos na Terra. Passo mal. Entendo, na prática, a diferença que existe entre os apelidos dos dois estados de espírito daquela faixa de oceano: Shake Drake ou Lake Drake. Acho que encarei a versão shake, mas, no dia seguinte, me avisam que ele “nem estava tão ruim assim”.
Pela manhã, ainda balançando como se estivesse no Viking do Playcenter, há um briefing obrigatório de segurança. Decido pular o café. Ao cruzar com Maurício dos Santos, português da Ilha da Madeira, diretor de hotel do SH Vega, narro minhas mazelas, que não parecem chocá-lo tanto assim. Seus olhos azuis e serenos focam nos meus, atordoados, e ele me tranquiliza com frases breves: “Bem-vindo ao mar, senhor Décio. Logo, estarás bem.”. E, de fato, já embalado na medicação disponibilizada pelo navio e com o Drake menos nervoso, horas mais tarde já me sinto o próprio Ernest Shackleton. Peço uma bela refeição no room service, sintonizo em um dos canais de música do navio, aumento o volume e danço no terraço.
O primeiro iceberg e a Antártica no terraço
No segundo dia de Drake, lá longe, pinta o primeiro iceberg. Euforia geral. A partir daí, a rotina entra em outra dimensão. Uma sucessão de surpresas, nevascas, nacos de gelo cada vez maiores, formas surreais que se desenham no horizonte e se aproximam do SH Veja como se estivessem em uma esteira rolante. O navio está em casa, passeia, parece cumprimentar cada iceberg que passa. Cresce a expectativa de passeios de zodiac e de desembarque em solo antártico.
Até que acordamos no dia 9 de novembro na Baía de Curtiss, ao sul da Ilha Trinity, cercados pelos Cabos Sterneck e Andreas, um cenário espetacular de altas montanhas com picos rochosos, valentes, furando um vestido grosso de neve fresca. Encostas brancas enormes, despencado no mar que reflete uma faixa dourada de sol antártico. Placas tabulares gigantes de gelo boiando, um silêncio absurdo como se uma orquestra fosse começar a tocar no segundo seguinte, uma emoção profunda arrebenta pela minha garganta e choro de novo, que nem criança. A Antártica está logo ali – com um esplendor divino que foto alguma consegue traduzir –, enquadrada pelas amplas portas deslizantes de vidro do terraço privativo da suíte 629. Chegamos.
Agora só resta se concentrar na sequência certa de camadas de roupa para não congelar lá fora e esperar a chamada ao Base Camp, ponto de encontro onde vestimos as botas cedidas para uso durante a expedição. O casaco duplo e corta-vento, que cobre toda a vestimenta, fica de presente para cada passageiro. Todas as peças de roupa usadas em solo antártico são esterilizadas. Antes de entrar no zodiac, é necessário passar a bota em solução química para limpeza. Tudo pronto para descer rumo ao Porto Mikkelsen. Só que não.
A Antártica não é museu, nem monumento, muito menos parque temático – não tem hora marcada por aqui. O tempo mudou de uma hora para outra, e os poucos zodiacs que deixaram rastro no mar, logo tiveram que voltar. A segurança de todos está sempre em primeiro lugar. Como bem disse o sul-africano Brandon William, líder da expedição, “quando a mãe natureza decide, não há discussão”. “Há três coisas importantes que o viajante para a Antártica precisa ter: flexibilidade, flexibilidade e flexibilidade.” Amém, Brandon. Levantamos âncora, e seguimos costurando entre as ilhas e os contornos bem recortados da ponta da Península.
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Baleias e excelentes aulas no mar
Os dias passam com Brandon e o capitão Tino avaliando mapas de clima, posições de vento, ; planos B, C e D são discutidos e compartilhados a todo momento pelo alto-falante. Lá fora, os hóspedes passeiam pelos decks de observação com potentes binóculos (emprestados durante o cruzeiro) em punho. Às vezes sozinhos, às vezes em duplas, em casais, em grupos – o fato é que estamos todos fascinados, há um clima geral de felicidade que contagia, que transforma cada segundo em um grande barato.
Até que, nessas de ficar olhando o mar, surge um jato de água na vertical. O coração já dá aquela tropicada. Vem baleia por aí – e não é no singular. Dorsos de orca emergem do mar como em um documentário da National Geographic. Gritaria no deck 7, gente se abraçando, fazendo a festa. “Meu amor, finalmente realizei meu sonho de ver orca, meu Deus, que coisa linda…”, conta Rômulo Sobral, de 50 anos, empresário do setor marítimo, carioca radicado em São José dos Campos (SP), assim que a esposa Janaína aparece no deck. “Já tinha tentado na Islândia, mas elas não apareceram”, completa Rômulo, com outra viagem especial marcada para março: trekking ao Acampamento Base do Everest, no Nepal, sob a liderança de Manoel Morgado.
Aparições de outras orcas e baleias de diferentes espécies voltam acontecer nos dias seguintes, mesmo sem ser uma época ideal para tais avistamentos. Russa de São Petesburgo, a bióloga marinha Anya Astafurova, especialista em cetáceos, não esconde a empolgação com seus objetos de estudo exibindo parte do corpo sem grandes pudores. “Não é algo cientificamente comprovado, mas acredito que a energia das pessoas a bordo pode ajudar a atraí-las”, comenta sorridente e descabelada pelas rajadas de vento que cortam o Swan Nest, um espaço redondo de observação na proa, onde tremula a bandeirinha azul da Swan Hellenic.
Anya faz parte do time de 14 guias especializados a bordo do SH Veja – e aí está outro tremendo diferencial desse cruzeiro. Os dias são salpicados por palestras extremamente interessantes e bem conduzidas por profissionais de currículos fora da curva, gente do gabarito de Antony Jinman, o 12º britânico a chegar esquiando nos dois polos da Terra (sendo que, para o sul, ele foi sozinho).
Eu, que não tenho entre minhas prioridades de vida o universo dos pássaros, mal piscava durante as aulas conduzidas pelo ornitólogo dinamarquês Lars Rasmussen; o que dizer, então, dos detalhes históricos (aí, sim, uma prioridade – sou fã da epopeia do Endurance, por exemplo) trazidos pela chinesa Rose Li na charla sobre Adrien de Gerlache (nunca tinha ouvido falar). O belga foi pioneiro na exploração antártica, o comandante da expedição que deixou a Antuérpia em 16 de agosto de 1897 e retornou em 1899 (após mapear e nomear diversos locais em cerca de 20 desembarques). Ele liderou uma rapaziada casca-grossa (média de 28 anos), entre eles um jovem norueguês, que mandou uma carta a Gerlache implorando para estar a bordo do Bélgica, já que tinha “boa saúde e sabia esquiar bem nas montanhas” – um certo Roald Amundsen…
Caiaque na Antártica com direito a foca
As condições favorecem e nosso desembarque antártico acontece em 11 de novembro último. A cena que abre este texto é a segunda parada do dia – a primeira foi em Port Lockroy, uma base inglesa construída em uma missão secreta de 1944, e que funcionou até 1962. Só em 1996 ela é renovada, e hoje funciona como centro de pesquisa, museu, além de ter uma caixa de correio que garante a entrega em até três anos.
Outra experiência impossível de esquecer é o polar plunge – um mergulho no mar (!!!) com uma corda amarrada à cintura, brincadeira de bastante impacto a uma temperatura de – 6 ºC. Poucos minutos após essa “loucurinha”, engatei uma sauna seca com vista para o mar, seguida de jacuzzi quente no deque, dessa vez com um visual de montanhas brancas. Nada mal.
Agora, tão marcante quanto andar na Antártica foi remar um caiaque (sob a liderança do especialista canadense James Roberts) em um mar repleto de gelos de diversos tamanhos, enquanto nevava. Ondulações muito suaves parecem o respirar do mar. O flow das remadas sustenta uma alegria contínua. Mais à frente, enxergo uma grande mancha escura sobre um pequeno iceberg. Remo nessa direção e uma foca vai ganhando corpo, sem se mover.
O aproximar do grupo de quatro caiaques e um zodiac de apoio faz, enfim, o bichão levantar a cabeça, curioso. Momento de observação mútua. Olhos nos olhos. Tudo está parado no tempo. Até que a foca decide se mover, com muita graça. Ela atravessa o platô flutuante, quebra uma borda, mas não perde a elegância na hora de mergulhar de cabeça. Some no mar escuro. Deu. Ali, para mim, a viagem começava a se despedir. Não há motivo para tristezas, afinal, depois de uma jornada dessa, só resta uma certeza: a de voltar à Antártica – e o quanto antes. De preferência, no balanço gostoso do SH Vega.
Reportagem publicada na edição 114 da revista, disponível nos aplicativos na App Store e na Play Store e também no site da Forbes.