
Aos poucos, o streetwear deixou de ser um nicho de resistência para se tornar protagonista de uma revolução silenciosa nas semanas de moda pelo mundo — e, no Brasil, não tem sido diferente. Com raízes profundas na cultura urbana, o estilo que nasceu nas ruas, nos guetos e nos esportes de periferia, hoje marca presença nas passarelas como expressão de sofisticação, diversidade e pertencimento.
Na São Paulo Fashion Week N59, o streetwear se mostrou não apenas como tendência, mas como linguagem de luxo em evolução constante — agora com sotaque amazônico, nordestino e queer.
Se antes era sinônimo de moletom e tênis, hoje o streetwear brasileiro encontra novas leituras na alfaiataria desconstruída, nas modelagens híbridas, no resgate de narrativas regionais e na apropriação afetiva de códigos urbanos. A presença de marcas como Normando, Reptilia, Walério Araújo e Weider Silveiro reforça essa virada: são criações que partem da rua, mas almejam o mundo – e que se conectam com um público jovem, cosmopolita e politicamente engajado.
Normando: a Amazônia veste o luxo urbano
Com uma coleção inspirada no romance “Chove nos Campos de Cachoeira”, de Dalcídio Jurandir, a Normando trouxe à passarela uma visão profundamente autoral e política do streetwear. As peças, confeccionadas com fibras amazônicas como látex e juta, evocam resistência, memória e pertencimento. “A obra nos transporta para um universo de melancolia e resistência, em que a chuva é tanto um desafio quanto uma promessa de renovação”, explicou o estilista Marco Normando, ao apresentar o conceito da coleção.
Mais do que estética, a Normando investe em discurso. A sustentabilidade é tratada não como tendência, mas como identidade. “Nosso papel como moda é comunicar sempre. E comunicar da forma mais correta, verdadeira, sustentável e social possível”, afirmou Normando. Essa responsabilidade é refletida em escolhas conscientes de matéria-prima — como a viscose mapeada e a fibra de buriti — e nas estampas que denunciam a destruição da Amazônia. Com isso, a marca paraense transforma o streetwear em um veículo de educação ambiental e engajamento social.
Desfile da Normando na SPFW 59
Desfile da Normando na SPFW 59
Desfile da Normando na SPFW 59
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Desfile da Normando na SPFW 59
Desfile da Normando na SPFW 59
Desfile da Normando na SPFW 59
Ao levar o Norte para o centro do debate na moda nacional, a Normando reposiciona o streetwear como linguagem de luxo com raízes brasileiras. “As pessoas não olham para o Norte. E a gente quer que isso mude. Que fomentem economicamente o Norte para que as pessoas não precisem sair da sua cidade para crescer”, desabafou o estilista. Assim, a marca não apenas representa a estética urbana, mas também a urgência de repensar os centros de poder e criação na moda brasileira.
Reptilia: camadas urbanas de um streetwear arquitetônico
Em sua coleção Tectônica, a Reptilia cavou fundo nas metáforas do subsolo para revelar uma moda construída em camadas — tanto físicas quanto simbólicas. Com forte influência da arquitetura e da geologia, a diretora criativa Heloisa Strobel interpretou o streetwear a partir da estrutura e da transformação. “A gente vai desnudando isso através das texturas e das cores das roupas”, explicou, referindo-se aos looks compostos por até cinco peças sobrepostas e tecidos de gramaturas distintas.
Desfile da Reptilia na SPFW 59
Desfile da Reptilia na SPFW 59
Desfile da Reptilia na SPFW 59
Desfile da Reptilia na SPFW 59
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Desfile da Reptilia na SPFW 59
Desfile da Reptilia na SPFW 59
Desfile da Reptilia na SPFW 59
A estética urbana se manifesta nos detalhes: mangas destacáveis, jaquetas reinterpretadas e versatilidade funcional. “Isso tem muito a ver com o modo urbano que a gente vive hoje”, afirma Heloisa. A marca aposta em roupas que se adaptam ao cotidiano dinâmico do público jovem e cosmopolita, com uma abordagem técnica refinada. Tudo é feito com resíduos têxteis e dentro de uma lógica de desperdício zero. “A gente usa tudo o que sobra de corte pra compor outros modelos, mas como um ator principal da peça”, diz a estilista.
Essa fusão entre ética e sofisticação não só conecta a Reptilia ao universo do luxo consciente como também a posiciona como representante de uma nova geração de designers que pensam moda como linguagem e ferramenta de mudança. “O streetwear é, para nós, um perfume — uma influência inevitável do mundo urbanizado de hoje”, define Heloisa. Com isso, a marca mostra que é possível fazer alta moda sem abrir mão da conexão com a rua e com as causas que movem seu público.
Walério Araújo: o glamour do avesso e a rua como palco
Ícone da opulência e da liberdade criativa, Walério Araújo levou para a passarela uma coleção que é puro manifesto: sobre gênero, identidade e desejo. Com peças do avesso, costas nuas e silhuetas fetichistas, o estilista explora o streetwear como campo de afirmação e ousadia. “O salto me levou pra esse lugar de empoderamento, de identidade, de personalidade”, contou. O uso de alfaiataria desconstruída e elementos glam mostram que o luxo também nasce da provocação.
A coleção se destacou não só pelas formas, mas pelas histórias encarnadas nos looks. A influencer Maya Mazzafera desfilou com terno e camisa, enquanto a chef Janaína Torres usou uma peça híbrida, entre dólmã e vestido. “É isso que eu quero passar na passarela: essa segurança de ser quem se é”, disse Walério. A parceria com a Guarda Mundo, marca responsável pelas bolsas do desfile, ampliou ainda mais a proposta de reconfigurar o desejo no streetwear. Com mochilas, pochetes e bolsas articuladas com estampa de onça, a collab deu vida comercial às criações.
Desfile Walério Araújo na SPFW 59
Bolsa da Guarda Mundo no desfile Walério Araújo na SPFW 59
Desfile Walério Araújo na SPFW 59
Desfile Walério Araújo na SPFW 59
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Desfile Walério Araújo na SPFW 59
Desfile Walério Araújo na SPFW 59
Para o estilista, o verdadeiro luxo é ver a moda sair da passarela e ocupar as ruas com autenticidade. “Sem essa parceria, a gente fica frustrado. Da passarela, ela não sai. A realidade é quando está na rua, quando a gente vê as pessoas consumindo.” Ao transformar o underground em sofisticação e o pessoal em político, Walério confirma que o streetwear é mais do que estética — é uma celebração das singularidades.
Weider Silveiro: feminilidade como potência urbana
A coleção de Weider Silveiro é um estudo profundo sobre a feminilidade como força visual e simbólica. Inspirado nas diferentes representações da Vênus — da pré-histórica até divas pop como Joelma e Madonna —, o estilista transforma sensualidade em linguagem urbana. “Pra mim, uma roupa extremamente feminina não é menos urbana, menos street”, afirmou. Suas peças, com ombros marcados e cinturas definidas, reafirmam o corpo como território de empoderamento.
Desfile Weider Silveiro na SPFW 59
Desfile Weider Silveiro na SPFW 59
Desfile Weider Silveiro na SPFW 59
Desfile Weider Silveiro na SPFW 59
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Desfile Weider Silveiro na SPFW 59
Desfile Weider Silveiro na SPFW 59
Desfile Weider Silveiro na SPFW 59
Mesmo trabalhando com tecidos como jersey e denim, Weider escapa do óbvio ao propor um streetwear de alta moda. As calças com modelagem ampla e tecidos leves, por exemplo, evocam a skatista que exibe suas formas com orgulho. “Acho que vários looks falam muito sobre isso, fazem essa interação”, comentou. Ao equilibrar conforto e expressão, o designer conecta o luxo ao cotidiano de uma mulher ativa, que ocupa a cidade com presença.
Para além da estética, o desfile também teve um forte componente emocional. Em entrevista, Weider foi às lágrimas ao lembrar sua infância no Nordeste, cercado por mulheres e por uma feminilidade que lhe custou bullying. “Esse desfile é, nada mais, nada menos, do que aquele menino nordestino que sempre falou de feminilidade e que sofria por isso.” Ao transformar essa dor em arte e sofisticação, o estilista reafirma que o streetwear também é lugar de cura, pertencimento e memória.