Um apanhado de rabanetes é passado de mão em mão em uma roda de 12 pessoas, enquanto o grupo conversa sobre comida. O encontro, que parece inusitado, é promovido pela doutora Kristi Crymes, especialista em medicina familiar, instrutora de líder zen e mindfulness (meditação de atenção plena) e docente no Programa de Residência em Medicina da Família do Instituto Cox, em Springfield, Missouri (EUA). Um de seus compromissos do qual ela jamais faltaria são essas conversas quinzenais sobre alimentação e nutrição.
No dia desse encontro citado, uma das participantes descobriu que adora tomates – ela nunca havia sentido seu real aroma – e agora afirma que deseja cultivar os seus próprios frutos. Além de rabanetes e tomates, eles também conversaram sobre o que fazer com a erva-doce in natura, já que a maioria nunca tinha visto a planta de perto. E quem diria que a acelga tinha um sabor tão distinto? Essas e outras descobertas foram feitas com produtos locais, embalados em uma caixa, uma das ações de um programa chamado ‘Roteiro Saudável’.
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Para Kristi, a experiência alimentar também é viver a liderança zen, que é o termo usado para líderes com característica autoconfiante e que repassam o seu conhecimento. “Como médica queria que esses grupos tivessem acesso ao saber”, diz ela. “Ao realizar essas rodas de conversa, utilizo tudo o que aprendi nos programas de cura e liderança zen para profissionais de saúde”, completa.
O programa tem por objetivo adequar os regimes alimentares e seus resultados na saúde das pessoas. Mas, o mais surpreendente é o que ocorre no coletivo, nas comunidades que participam dessas rodas. Um dos exemplos são as hortas comunitárias de Springfield, que patrocinam o projeto, os agricultores que cultivam os alimentos usados na atividade do grupo e os profissionais do Cox Health, uma rede de hospitais do Missouri, que estão empenhados em descobrir novas formas de cuidar das pessoas. Com isso, toda a comunidade de Springfield está se tornando mais resiliente e reposicionando o abastecimento alimentar local.
Outros programas, como o ‘Comida é Remédio’ , estão crescendo também e trazem esperança de melhoria de vida das pessoas, além de economizar bilhões de dólares com remédios. É interessante entender porque esses programas têm funcionado tão bem. A resposta mais simples e imediata são os relacionamentos e o surgimento de lideranças nas comunidades. Conheça algumas dessas pessoas:
Maile Auterson, uma apaixonada por sistemas alimentares regionais
Maile Auterson, fundadora e diretora executiva da horta comunitária de Springfield, sonha com a redistribuição das economias alimentares. Maile é a quarta geração de agricultores da região de Ozark, também em Missouri. Cresceu ajudando o pai no cultivo de alimentos e ouvindo suas histórias de como eles não tinham dinheiro, “mas comiam como reis… ovos com creme e sorvete de pêssego”. Essa resiliência em meio às dificuldades permaneceu e é isso que deseja compartilhar. “A comida é o tecido social de uma cidade”, diz Maile, e meu objetivo com as hortas comunitárias é que todos tenham acesso a alimentos locais, desde os moradores de rua até aqueles que jantam em restaurantes sofisticados.
“Confiança” é a primeira palavra que Maile usa para descrever sua forma de trabalhar. Ela constrói relacionamentos de confiança, cumprindo o prometido e atendendo às necessidades consideradas reais da comunidade. Essa construção se deu por meio de alguns projetos, incluindo o CSA (Programa de Apoio a Agricultura Familiar), do USDA (Departamento de Agricultura dos EUA), de hortas espalhadas pelo município, incluindo a do hospital administrado pela Cox Health.
Curtis Milsap: um fazendeiro com conexões de confiança na comunidade
“A maioria dos meus clientes do Programa CSA são de classe média alta”, diz Curtis Milsap, agricultor e proprietário da Millsap Farms, uma propriedade de oito hectares no norte de Springfield. Curtis sempre quis colocar os alimentos que produz nas mãos de pessoas que precisam e não têm como comprá-los. “Eu daria toda a nossa comida às pessoas que precisam, mas preciso alimentar a minha família também. Com esse programa eu posso fazer as duas coisas”, diz ele.
E como funciona? “A Emma, que é gerente do programa, me liga e diz ‘preciso de 68 unidades de determinado produto; o que você tem disponível?’. E então, se eu tiver muitas cenouras, colocarei cenouras. Ou pode ter um pedido fixo de 40 unidades de tomilho, por exemplo.” Emma Shafer trabalha para Maile desempenhando muitas funções, entre elas, interagindo com agricultores, ajudando com as caixas de produtos e entregando-as aos participantes do programa.
Durante anos, Curtis e Maile construíram uma relação de confiança. Juntos, desenvolveram uma iniciativa de sucesso e, cada vez mais, sonham com mais patrocínio para o projeto. Ele também é um conector entre os agricultores, reconhecendo que é necessária uma diversidade de colaboradores para abastecer todas essas caixas, desde quem faz as entregas até o agricultor que cultiva. Não à toa, Curtis conseguiu convencer amigos que não confiavam nos programas governamentais, mas confiaram nele. “Toda conexão é uma oportunidade de realocar os alimentos do estado vulnerável em que se encontram para algo mais sensato”, afirma Curtis. “Você pode cultivar cenouras em todos os cantos do país.”
Curtis também tem uma ligação de confiança com a doutora Kristi, que é também diretora associada do Programa de Residência em Medicina de Família, da Cox Health. Ela leva seus residentes do primeiro ano para Milsap Farms como parte da orientação do curso de medicina. Com Curtis, os alunos aprendem três princípios que se aplicam à agricultura, à medicina e ao sucesso deste programa:
- 1 – Sempre olhar para algo enxergando o todo, mas também na profundidade, pois assim como no solo, o que ocorre abaixo da superfície afeta tudo o que vemos na parte de cima.
- 2 – A diversidade é a chave para a saúde.
- 3 – Não perca de vista o que é maravilhoso.
Médicos e pacientes cultivando círculos de admiração
Mas colocar uma caixa de produtos nas mãos das pessoas não seria suficiente para fazer a diferença que o programa propõe. Onde surge maior admiração é por meio dos círculos de confiança mantidos por Kristi e sua colega, a doutora Katie Kabonic Davenport, ao compartilharem histórias de vida, alimentação e nutrição.
Essas conversas “completam muitas lacunas no que eu aprendi sobre nutrição durante a infância”, diz Matt, um dos participantes do programa. “Não sabemos o suficiente sobre a alimentação ou o impacto que ela tem na saúde. A maior parte do que recebemos são anúncios – compre isto ou aquilo – mas não temos discussões.” De acordo com Matt, as rodas de conversa deram espaço para repensar completamente a forma como abordava a nutrição, e sobre um segundo benefício que ele não esperava: “Sinto-me muito mais ligado à comunidade”. A diversidade do grupo é o que o torna tão poderoso. “Todo mundo tem diferentes áreas de especialização”, afirma Matt.
Que receita você experimentou na semana passada? Como podemos ficar mais nutridos? Se você tem US$ 3 (R$ 15 na cotação atual), como gastaria isso com uma boa comida? Além disso, os encontros são regados com muitas risadas e algumas lágrimas. Como Kristi tem testemunhado a evolução desses círculos ao longo do tempo, ela fala com admiração. “Essas pessoas não se conheciam”, diz. “Agora eles estão trazendo até ovos para trocarem uns com os outros. Uma mulher chegou a comprar roupas no Walmart para o filho de outro paciente. Então, a comida é um princípio ativo. Muitas pessoas estão envolvidas, fazendo a sua parte, e tudo se encaixa perfeitamente.”
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A médica conta que os resultados do programa estão começando apenas começando a aparecer e fala do potencial. “Até mesmo os resultados individuais são incríveis”, diz Kristi. Por exemplo, um dos participantes com diabetes passou de um nível de açúcar no sangue muito elevado para níveis normais, em quatro meses, e não precisou mais usar medicamentos. Mas Kristi gosta mesmo de ressaltar com exemplos a mudança coletiva no círculo, que é ainda mais impressionante:
“Algo aconteceu na minha última visita ao grupo, que me pareceu muito importante. O grupo parecia assumir seu próprio poder. Começaram a falar, uns para os outros, espontaneamente, de como o programa os ajudou, demonstrando incentivo e carinho com os outros participantes que lutam contra sintomas de estresse. Um dos pacientes contou que gostaria de criar um grupo como esse em sua própria vizinhança.”
Efeito replicador é feito na veia
Melhores resultados de saúde, comunidades mais fortes, maior resiliência nas economias alimentares locais e práticas de saúde mais gratificantes. Que comunidade não gostaria de tais benefícios? A agricultora Maile já conversou com centenas de pessoas que desejam replicar o sucesso do programa. “Tem que permanecer pequeno”, diz Maile. “A resiliência vem de ser pequena e local. No entanto, todas as cidades podem fazer isso e existem 175 mil cidades pequenas no estado.”
Mas, para isso, é preciso de um integrador como Maile e de patrocinadores para viabilizar as ações. É preciso, ainda, de um agricultor bem relacionado como Curtis, que se preocupa em ajudar as pessoas da comunidade. Também são necessários médicos como, Kristi e Katie, e treinados, que possam realizar rodas de experiência, permitindo que haja trocas de sabedoria e compaixão. “Se você pensar primeiro nos relacionamentos, aumentar a confiança, experimentar a compaixão e praticar o amor, você acertará, com certeza”, afirma Maile.
*Ginny Whitelaw é colaboradora da Forbes EUA, fundadora do Institute for Zen Leadership, mestre Zen de 86ª geração, e membro do movimento One Earth, One Health, One With. Já escreveu quatro livros.