Antigas impressões são como retratos distorcidos. O tempo tende a ampliá-las ou reduzi-las conforme as referências que a vida apresenta. Imagens da memória podem tanto sumir como afrescos expostos ao ar livre quanto se agigantar sob suspeita ótica do passar dos anos.
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Era esse tipo de reflexão barata que vinha me acompanhando nas longas horas de travessia da estepe patagônica. No lugar do Opala sedã de 20 anos antes, que adernava como um bambu ao vento inclemente do sul da Patagônia, uma van moderna, pneus lameiros, suspensão reforçada. Em vez do chão de terra batida pelos intermináveis rebanhos de ovelhas, um asfalto precário, profundamente lanhado pela pressão eólica.
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De resto, a mesma desolação de deserto, um ou outro arrieiro tocando sua tropa no horizonte, uma ou outra cabana guarnecida por cercas corta-vento, sem as quais é impossível viver nesta parte do mundo.
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Até ali, as lembranças batiam, auxiliadas pela cúmplice lentidão com que o tempo passou naqueles confins da Terra. Punta Arenas, um dia pujante porto de parada obrigatória para naus que transitavam entre o Ocidente e o Oriente, não mudara um tijolo sequer. Até a cal das muradas ainda parecia a mesma, o que se explica pela decadência da cidade. Desde que o Canal do Panamá tornou irremediavelmente fora de mão o outrora cobiçado Estreito de Magalhães, a cidade ficou com as docas vazias.
Mas, apesar de tantas confirmações, o teste definitivo para a fidelidade de minha memória de duas décadas, ainda estava pelo menos duas horas a nordeste: as Torres de Paine. Percebi, vendo os retorcidos arbustos estépicos, que para fazer o trabalho já não me bastariam apenas um bloco de anotações, uma juntada de autos e alguma reserva de sensibilidade: estava se tornando indispensável desarmar qualquer armadilha da memória. Até porque, tivesse eu de descrever as Torres com base nas lembranças da primeira jornada, diria simplesmente que não há nada igual em todo o planeta.
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Aquele imenso cenário dos tempos do valente Opala tinha se tornado, com o passar dos anos, a intransponível cordilheira no fim de todos os mares e todas as terras de minha própria paisagem interna. Maior que as alturas do Aconcágua, mais dramático do que os abismos do Grand Canyon, mais temível do que as areias do Saara, mais íngreme do que as paredes de Sierra Nevada.
E, no entanto, eu acabara de ler e reler (num manual absolutamente confiável) que essa “imensa” referência de minhas lembranças não passava de uma pequena cordilheira com área de 400 quilômetros quadrados, menor que a metade da Micronésia. E que nem mesmo o nome Paine tinha origem segura, porque se uns diziam que aquilo significava “azul” no idioma dos índios selknans, outros afiançavam que Payne (antes com ipsilon) fora um dos muitos aventureiros ingleses que por ali passaram nos últimos séculos.
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O carro já deixava para trás Puerto Natales, o último pequeno povoado, 112 quilômetros distante das Torres e outros 200 quilômetros depois de Punta Arenas, e os dados disponíveis continuavam se confirmando as informações da memória. O vento seguia igualmente forte, rajadas de 100, 120 quilômetros fustigando a monótona planície da Patagônia. A emissora local narrava uma improvável corrida de automóveis e se identificava como a “voz da última esperança”, o que soava tétrico. Última Esperança (assim mesmo, com maiúsculas), soube depois, não era, no caso, um aviso ou uma profecia, mas apenas o nome daquela parte do Chile. Assim a batizara um certo Juan Fernandez Ladrillero, navegador que, em busca do Estreito de Magalhães, acabou perdido no emaranhado de baías e fiordes que recortam o extremo sul da América. A mesma triste figura era também responsável por outros nomes pessimistas da Patagônia, como Baia Inútil, Ponta Decepção e tantos que hoje constam dos mapas oficiais.
O drama de Ladrillero, concluí, deve ser a mais elementar explicação para o escasso número de visitantes que as Torres recebem. O lugar é mesmo perdido, um fim de mundo, ainda mais visto pela perspectiva dos povos ricos do Norte, a convexidade inversa do globo.
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“Só os sábios e os ricos vêm até aqui”, disse-me, dias depois, o ex-guarda-parques Pepe Alarcón, enquanto assava um cordeiro numa churrasqueira protegida, que por aqui se chama de quincho. Alarcón é um veterano de Torres del Paine. Foi para lá nos anos 1960, quando apenas se iniciava o que hoje é um parque nacional de 181 mil hectares. Por muitos anos quase não teve trabalho, até que, em 1978, a Unesco consagrou a área como Reserva da Biosfera. O que quer dizer que o lugar se tornou intocável, original como todo o planeta deve ter sido um dia. Então começaram a vir mais visitantes e Alarcón constatou que eles podiam ser divididos em dois grupos, um que conhecia o mundo em profundidade e outro que tinha capital para fazê-lo.
Mas eu só poderia conferir a teoria do guarda-parques porque a van ainda seguia para o que parecia ser um lugar ainda mais remoto. E porque antes, também, eu precisava tirar a limpo minhas próprias dúvidas. E foi depois de um cochilo que sobreveio o susto. De repente, na amplidão da planície, havia uma sombra. Que crescia metro a metro. Que, então, transformou-se no que eu supunha que só existisse no enevoado universo das impressões. Montanhas colossais formando uma fortaleza no horizonte. O indivisível encontro do horizonte com a verticalidade absoluta. Do nível zero da planície aos 3.050 metros do cume do Paine Grande, sem aviso prévio ou etapas intermediárias.
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Deve ser isso que torna essa pequena cordilheira tão espantosa. Não se chega a ela aos poucos. Embaixo há o resto do mundo, o vento inclemente e a estepe. Em cima, 15 picos com cerca de 3 mil metros, todos eles monólitos gigantescos. À medida que o maciço se aproxima, cresce a impressão de que aquilo é uma explosão atômica solidificada. Um inimaginável cogumelo sem redoma, uma série de hastes que devem ter ligado a Terra às estrelas e foram subitamente decepadas por um fenômeno qualquer.
O gelo está na origem dessa que é a mais jovem cordilheira do mundo — com 12 milhões de anos, contra pelos menos 60 milhões dos Andes. E até o fim da última glaciação, ele ocultava o lugar onde hoje estão os vales e os lagos de estranhas cores (verde, púrpura, azul e cinza) que fazem parte do parque nacional. Mas as geleiras se liquefizeram e as torres despontaram com essa força brutal e hipnótica que deixa os visitantes em transe. E ficaram ali, sem registro, mesmo quando os índios kiyangos e selkmans ocuparam a área — calcula-se — 12.000 anos atrás. Notícias dela só foram chegar ao resto do mundo porque a aventureira inglesa Lady Florence Dixie, nos idos de 1857, decidiu registrá-las num poético livro de pequena tiragem chamado Across Patagonia (Através da Patagônia).
Quase nada mudou em todo esse tempo, pelo menos na aparência. Um conde italiano, chamado Guido Manzino (que ninguém sabe como foi parar neste fim de mundo), ergueu no local algumas instalações, que mais tarde doou para o governo do Chile. Até hoje elas continuam servindo de sede para os guardas do parque, que também incorporou os 12 mil e 500 hectares da propriedade.
É dessa pequena milícia a missão de impedir que qualquer migalha de lixo permaneça no lugar. Por isso os visitantes que acampam nos refúgios existentes nos 250 quilômetros de trilhas da região (considerados um paraíso pelos trekkers) são obrigados a transportar, em suas mochilas, todos os detritos que produzem na jornada. O volume é checado e pesado no portão de saída. Mas nem todos os alertas funcionam. No verão entre 2011 e 2012, o descuido de um turista provocou um incêndio que queimou 16.800 hectares do parque, incluindo florestas irrecuperáveis.
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Já os aventureiros mais ricos têm, hoje, três hotel cinco estrelas à disposição — além dos que ficam há mais de 100 quilômetros, em Puerto Natales. São eles o pioneiro Explora Patagonia (frequentado por empresários famosos, como Luciano Benetton e Ted Turner), o Tierra Patagonia e o Awasi. Eles têm em comum o luxo mais cobiçado do momento: tudo incluído (inclusive as experiências), tudo em alto padrão e a conveniência de dispensar luxos alheios à região como televisores no quarto etc. Não faltam, porém, os sinais de wi-fi, para que o viajante sinta-se dentro do planeta.
O maciço limita-se, a oeste, pelos chamados Campos de Hielo del Sur (Campo de Gelo do Sul), uma geleira que se estende por 340 quilômetros rumo norte, ocupando uma fatia do Chile. Parte significativa dela pode ser vista das margens do Lago Grey, um dos lugares mais visitados do parque nacional.
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“Em 1996, o glaciar era 80 metros maior”, lamenta o chileno Pancho Bórquez, olhando para a grande língua de gelo que se estende até o horizonte. Pancho largou tudo para entender a magia do Paine, radicou-se na região e hoje é um guia voluntarioso que extrai gelo milenar para o uísque dos hóspedes do Tierra Atacama. Sua reação comovida sobre a redução da geleira soa como um lamento conformado diante da transformação inevitável. As Torres del Paine, quer ele entredizer, tornaram-se vítimas dos abusos cometidos em outras latitudes. Há 20 anos, aliás, o recuo era quilômetros menor.
O resto do mundo, de fato, continua muito longe do parque. O incipiente número de turistas quase não justifica preocupações. Mas o que se faz ao norte, em qualquer parte da Terra, está repercutindo neste fim de mundo. O aquecimento global, por exemplo, é responsável pelo derretimento das geleiras, um fenômeno que tem até um efeito secundário bonito, já que despeja uma quantidade inusitada de icebergs desagarrados nos lagos próximos.
Também os ataques à camada de ozônio, que são mais perceptíveis nesta extremidade do globo, afetam a área, porque não poupam seus visitantes. Mesmo sob o sol pálido de uma primavera de 7 graus, um ser humano é capaz de descascar como se tivesse passado semanas no Caribe.
Ainda não se sabe, porém, até que ponto os delírios irresponsáveis da humanidade vão influir nesta remota porção do planeta. Por enquanto, as 105 espécies peculiares de aves – dos caiequenes (gansos patagônicos) aos papagaios austrais – ainda sobrevivem ao microclima da colossal cordilheira. Os guanacos, que vê a ser uma espécie de lhamas sulinas, ainda ocupam seus espaços com a inconsequência de quem vive no paraíso. Os pumas, vez ou outra, descem as íngremes paredes para devorar sua porção de guanacos e huemules (um tipo de veado local), ou disputar pequenos animais em decomposição com uma revoada de condores.
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Os picos imensos, que lady Dixie chamou em seu livro de “Agulhas de Cleópatra”, insistem em cortar a fúria do vento austral, dando origem a estranhas nuvens com o formato de discos voadores chamadas “lenticulares. E o Maciço de Paine sobrevive, à espera de quem o decifre e o conquiste, coisa que há de acontecer algum dia.
Por enquanto, ele ainda é apenas território de exploradores e de alguns poucos nativos. Os gaúchos que vivem por lá (pronuncia-se gáuchos, com ênfase na primeira sílaba) são estranhamente parecidos com os outros, que se espalham por 3 mil quilômetros rumo ao norte, até as serras do sul do Brasil. Usam bombachas, sorvem mate e encilham cavalos no mesmo ritual silencioso e compenetrado. Os índios, exterminados pelos colonizadores, são apenas fantasmas largados na paisagem espantosa, e seu legado são alguns nomes de acidentes geográficos locais.Não há mais os patagões, os gigantes selvagens que Fernão de Magalhães identificou e batizou quando descobriu estas terras (hoje sabe-se que eles não eram de fato gigantes, apenas seres de 1,70 metro altíssimos ao olhar de europeus, que na época tinham, em média, 1,55 metro). Nem os milódons, primitivos animais herbívoros com aparência de urso, cujas ossadas foram encontradas por arqueólogos nas imediações do Paine. Mas os picos impressionantes são, indiscutivelmente, os mesmos que guardei na memória. Até que 20 outros anos se passem, eles continuarão limitando o horizonte interno de cada um dos meus mundos. E certamente farão o mesmo por todos os que tiverem a ventura de conhecê-lo.
Até ali, as lembranças batiam, auxiliadas pela cúmplice lentidão com que o tempo passou naqueles confins da Terra. Punta Arenas, um dia pujante porto de parada obrigatória para naus que transitavam entre o Ocidente e o Oriente, não mudara um tijolo sequer. Até a cal das muradas ainda parecia a mesma, o que se explica pela decadência da cidade. Desde que o Canal do Panamá tornou irremediavelmente fora de mão o outrora cobiçado Estreito de Magalhães, a cidade ficou com as docas vazias.
Mas, apesar de tantas confirmações, o teste definitivo para a fidelidade de minha memória de duas décadas, ainda estava pelo menos duas horas a nordeste: as Torres de Paine. Percebi, vendo os retorcidos arbustos estépicos, que para fazer o trabalho já não me bastariam apenas um bloco de anotações, uma juntada de autos e alguma reserva de sensibilidade: estava se tornando indispensável desarmar qualquer armadilha da memória. Até porque, tivesse eu de descrever as Torres com base nas lembranças da primeira jornada, diria simplesmente que não há nada igual em todo o planeta.