Após vários encontros com o colecionador de relíquias sobre rodas Maurício Augusto Marx – entre eles, um rali de sete horas pelo interior de São Paulo como navegadora a bordo de seu carro favorito, um Porsche 356 1951, e uma visita a sua garagem secreta –, cheguei a uma conclusão interessante: a vida do ainda jovem Maurício, de 39 anos, é transformar memórias em elementos do dia a dia. Quanto mais veloz essa alquimia, melhor.
“Perdi meu pai [o advogado e também colecionador Flávio Marx] quando eu tinha 19 anos. Foi um inferno, todo mundo veio para cima de nós para comprar os carros dele”, lembra. Sua própria paixão pelos carros ajudou a conter o ataque. “Quando eu era pequeno, não lia gibis da Turma da Mônica, eu lia revistas europeias de carros antigos”, conta. A relação de amor com automóveis antigos começou com o avô, Júlio Samuel Marx – que Maurício nem chegou a conhecer. A coleção atual tem 90 carros – até o ano 2000, quando o pai era vivo, chegou a 200 modelos.
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Maurício é formado em direito e começou uma segunda graduação em filosofia. Mas não a completou, provavelmente por obedecer às orientações deixadas pelo pai: “Quando aparecer um bom carro, larga tudo e compra”; “Arrependa-se de ter comprado e nunca de não ter comprado”; e “Não demore mais que dois minutos para fechar um negócio”.
A coleção dos Marx, conhecida e admirada por qualquer colecionador que se preze, começou de forma tímida com seu Júlio e logo ganhou a seguinte diretriz: priorizar os modelos europeus, esportivos, de competição e carros de concurso de elegância.
Incomuns para a época, essas premissas foram o pulo do gato para a montagem de uma coleção fora da curva, segundo o empresário e colecionador Paulo Souza Lima: “O interessante desse conjunto de carros é a variedade de tendências que a gente visualiza. Ainda é uma situação atípica no Brasil, nós ainda temos uma forte influência do colecionismo americano. Mas o pai de Maurício, por gosto ou por ter uma visão mais apurada, sempre focou nos europeus. Ele conseguiu garimpar peças muito significativas e raras, que são qualificáveis para os concursos de elegância mais famosos do mundo [como o Concorso d’Eleganza Villa d’Este, em Como]”.
Pouco a pouco, o hobby virou negócio. Hoje ele compra, reforma e vende carros e motos, além de oferecer trabalhos mecânicos sofisticados para clientes em sua oficina e loja Universo Marx, onde são comercializados em média cinco veículos por mês.
CARROS COM ESPÍRITO
Chegar ao magnífico galpão secreto onde Marx guarda suas relíquias é privilégio para poucos. Uma vez lá dentro, andando entre itens que aguardam uma boa reforma para voltar a seus dias de glória, senti que cada modelo tinha uma história única e maravilhosa para contar: por onde passaram, a quem pertenceram e serviram, como cruzaram o oceano para chegar até aqui… Logo na entrada está estacionado o Porsche 356 batizado de Veio Zuza (ele dá nomes próprios a cada carro restaurado), que impressiona – para o bem ou para o mal – por sua aparência rústica: inteiro “na lata”, descascado e com bancos nada novos. Por outro lado, está em perfeitas condições para uma prova, como a Copa Paulista de Rallye Histórico, com seus 700 quilômetros debaixo de sol e chuva. Sobre ele, o orgulhoso proprietário diz: “O próprio Ferdinand Porsche falava que seus carros eram feitos para serem guiados, e não polidos. Essa é a essência.”
Mais ao fundo, após cruzar uma infinidade de peças antigas, chegamos a um Jaguar XK 120, comprado por Flávio Marx no fim dos anos 1960. “Meu pai comprou esse carro para ele. Mas entregaram justo no dia dos pais, e meu avô pensou que fosse um presente. E assim ficou: o Jaguar acabou virando um presente de filho para pai.” O XK 120 está na fila das próximas restaurações, junto com o emblemático Lancia Astura 1939. Sobre este, Maurício comenta: “É extremamente raro. Foram feitos apenas quatro carros do modelo, era superfuturístico para a época. A Lancia fornecia para o Mussolini, ele também tinha um Astura. A pesquisa histórica deste carro está sendo feita pela Itália, porque até hoje não sabemos como chegou ao Brasil. Sabemos que foi fabricado na oficina alemã da Pininfarina, que foi destruída durante a guerra. Entrou para a família em 1995. Um irmão dele está na Holanda, restaurado”, conta o colecionador. Para ficar igual ao gêmeo holandês, o modelo brasileiro precisará de no mínimo quatro anos de restauração.
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Além do Jaguar e do Lancia, outras joias dignas de concursos de beleza seguem aguardando seus “banhos de loja”: o Chrysler Ghia, que foi comprado pelo carioca Antônio Mayrink Veiga em um Salão de Paris nos anos 1950 para presentear sua então noiva Carmen; um Fiat Ghia, que provavelmente participou do concurso Vila d’Este em 1947; e o Alfa Romeo 6C 2500 SS Touring Superleggera. “O Brasil era extremamente rico, comprava os melhores carros do mundo, os mais especiais e diferentes. Infelizmente, muito desse patrimônio foi levado por compradores internacionais”,
lamenta Marx.
Nessa viagem por diferentes épocas, marcas e estilos, até um Batmóvel marca presença – muito longe, obviamente, das preferências de Maurício. “Minha marca preferida é a Porsche. Escolher uma década é mais difícil, mas os carros de mais elegância são os dos anos 1930. Para carros de competição, prefiro os dos anos 1950 até começo de 1970”.
O MOVIMENTO NO BRASIL
“Fico contente quando vejo pai e filho fazendo rali e famílias envolvidas no universo dos carros antigos”, diz Maurício Marx. Mais do que cuidar da coleção, ele encara a missão de promover no país o mercado que gira em torno dos carros antigos. Em 2020, ele se prepara para lançar um rali mais próximo dos padrões internacionais, um formato que una forças entre as quatro principais organizações nacionais: a Confederação Brasileira de Rali (CBR), o MG Club do Brasil, o Alfa Romeo Clube do Brasil e o Torneio Interlagos de Regularidade. As regras serão baseadas na Fédération International des Véhicules Anciens (Fiva). Segundo o colecionador, o Brasil tem, em média, 20 grandes coleções de carros antigos.
“Ele está resgatando uma tendência que vinha sendo colocada em segundo plano. Sou envolvido com isso há 30 anos, acompanho e viajo muito para fora, para os concursos internacionais”, explica Paulo Souza Lima. “As novas gerações vão manifestando interesse por determinadas faixas de idade dos carros. Os colecionadores de 40 a 50 anos se interessam por carros dos anos 1960; os de 70 a 80 anos preferem carros dos anos 1950. Acho que eram os objetos de desejo quando eles eram jovens. Maurício, embora seja da nova geração e até tenha interesse nos anos 1980, tem
conhecimento muito consistente na faixa de carros entre os anos 1930 e 1950”.
Veja, na galeria de fotos abaixo, os quatro xodós do colecionador:
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Victor Affaro PORSCHE 356 PRE-A 1951 (VEIO ZUZA)
“Fabricaram apenas 45 unidades. Ao que tudo indica, esse carro pertenceu ao piloto Christian Heins. Meu pai o comprou nos anos 1980 – ele estava parado em uma garagem aberta. Foi amor à primeira vista. Ele tinha uma cor peculiar e chamativa, um tom laranja. Quando fiz 18 anos, pedi um carro para meu pai e ele disse para eu escolher um da coleção. Eu pintei, coloquei diversos adesivos e, em quatro dias, ele já estava andando. É o meu carro preferido pela energia me transmite”
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Victor Affaro RENAULT R8 GORDINI 1965 (FRIDA KAHLO)
“Comprei o R8 de um colecionador em 2017. Quando ele me avisou que era um carro da equipe Willys, eu pirei. Sempre fui aficionado por esse modelo por seu histórico de pistas e principalmente de ralis. Quando comprei, comecei a fazer uma das coisas de que mais gosto, que é a pesquisa histórica. Pesquisei em revistas para achar vestígios e vi que Emerson Fittipaldi tinha corrido nele. Por esse caminho descobri que era o carro da sua primeira vitória [em novembro de 1965, na Ilha do Fundão, Rio de Janeiro].
Fiquei estonteado, porque a gente sabe que os carros de competição e que pertenceram a pilotos importantes possuem um valor histórico gigante e consequentemente, o carro vale muito mais. Após um tempo, descobri que o Amelia Island Concours d’Elegance iria homenagear o Emerson Fittipaldi e decidi levar esse carro para os EUA em 2018.
Eu comprei ele azul e para os torneios o costume é pintar os carros na cor original de fábrica mas quando existe alguma história importante as pessoas prezam voltar para a aparência do momento, que é justamente a cor atual, amarelo com verde e repliquei a arte dos adesivos, como o número 21, pelas imagens de revistas. O carro ficou pronto em menos de 15 dias. Foi muito difícil pois é um concurso muito criterioso, era a primeira vez que um brasileiro apresentava um carro em uma competição e a gente tinha um peso muito grande, estávamos carregando a bandeira. O carro ficou exposto junto aos outros carros do Emerson.”
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Victor Affaro KARMANN GHIA PORSCHE DACON (CARMELITTA)
“Foram feitos quatro carros do modelo no Brasil, mas só sobraram dois. Seu irmão gêmeo está no Museu do Automobilismo, em Passo Fundo (RS). O motor original do meu era o mais potente. É um carro de carroceria de fibra de vidro. Ganhou muitos prêmios. O motor atual não é compatível com o da época, mas prefiro ele vivo com outro coração. Este modelo foi pilotado por três pilotos de Fórmula 1: José Carlos Pace, Emerson Fittipaldi e Wilson Fittipaldi. Foi comprado em 2001, e já não tinha mais nenhum componente Porsche. Fiz nele uma pintura com pouco brilho, mais fiel à sua aparência original.”
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Victor Affaro AUSTIN-HEALEY 100 BN1 1955 (JULINHO)
“É um dos primeiros carros da coleção, foi comprado por meu avô no fim dos anos 1960. Ele gostava de dar um trato personalizado no carro. As pessoas lembram dele usando uma boininha inglesa e pilotando esse Austin. Meu avô era divorciado e por isso não podia se casar com minha avó. Então foram para o México formalizar a união e depois, já mais velhos, casaram-se de novo na Igreja de Nossa Senhora Aparecida de Moema, em São Paulo, onde chegaram a bordo desse carro. É um carro raríssimo, devem existir quatro exemplares dele no Brasil.”
PORSCHE 356 PRE-A 1951 (VEIO ZUZA)
“Fabricaram apenas 45 unidades. Ao que tudo indica, esse carro pertenceu ao piloto Christian Heins. Meu pai o comprou nos anos 1980 – ele estava parado em uma garagem aberta. Foi amor à primeira vista. Ele tinha uma cor peculiar e chamativa, um tom laranja. Quando fiz 18 anos, pedi um carro para meu pai e ele disse para eu escolher um da coleção. Eu pintei, coloquei diversos adesivos e, em quatro dias, ele já estava andando. É o meu carro preferido pela energia me transmite”
*Maurício Marx veste Ermenegildo Zegna
Reportagem publicada na edição 74, lançada em janeiro de 2020
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