David Chang quer que eu vista uma touca. Ele me entrega a peça de vestuário enquanto abre uma porta amassada e sem identificação em Williamsburg, no Brooklyn, que esconde a entrada da confeitaria do Momofuku Milk Bar — a capital da sobremesa de seu reino culinário. Lá dentro, a viciante massa da crack pie (uma torta doce coberta com cookies de aveia artesanais e desmanchados) de Chang é batida em liquidificadores industriais, e uma torrente sem-fim de cookies crus desliza em esteiras rolantes.
Nós passamos por prateleiras de biscoitos Ritz, gordura vegetal Crisco e flocos de milho até chegarmos a outra porta surrada. “Você é apenas o quinto civil a ver isso”, diz Chang ao me conduzir até o laboratório culinário sem janelas do Momofuku, onde sua equipe de cientistas de alimentos e chefes de cozinha está tentando inventar novos sabores para seu crescente império de restaurantes. “Não conheço nenhuma outra maneira de fazer meu pessoal abraçar o fracasso”, explica ele. “Eu só quero que eles façam uma grande besteira.” Muitas já ocorreram nesses cinco anos em que Chang vem comandando o laboratório. Centenas de perus foram sacrificados em seu nobre afã de levar à perfeição o turducken, prato em que um peru é recheado com um pato que, por sua vez, é recheado com um frango, todos desossados. As experiências com equipamentos modernos para fazer papel de arroz, macarrão de arroz e bolinhos de arroz foram todas desastrosas. E depois houve a explosão de panela de pressão que quase destruiu o lugar. “O teto rachou em dois, os feijões saíram voando a mil por hora. Parecia que uma granada tinha explodido”, conta Chang, balançando a cabeça e dando risada. “Deu medo. Acho que podia ter acontecido algo bem ruim.”
É claro que o laboratório secreto também fez grandes progressos. E eles geralmente envolvem fungos. “Nós tivemos a ideia de simplesmente fermentar tudo de maneira natural – fazer molho de soja, missô, conservas de tudo e molhos picantes. Com muita tentativa e erro, descobrimos maneiras inéditas de fazer as coisas.” Essas novas criações costumam girar em torno do Hozon – versão criada por ele da pasta japonesa missô, mas feita com ingredientes mais comuns, como grão-de-bico, semente de girassol e lentilha, em vez da tradicional soja. Ele me dá um pote de Hozon e uma colher. É doce e salgado, com um toque de umami que bate no fundo das bochechas. Em seguida, provamos o “shoyu” de centeio (maturado em velhos barris de carvalho tostado e espremido em uma prensa de cidra à mão) com camadas de carvão animal e condimentos.Por enquanto, esses experimentos de laboratório chegaram até pratos do Noodle Bar e do Ssäm Bar de Chang em Nova York (lámen, sardinhas e minibeterrabas) e até pratos de restaurantes de outros donos, como o Alder (pimentas jalapeño recheadas e empanadas) de Wylie Dufresne e o Perry Street (caranguejo de casca mole) de Jean-Georges Vongerichten (veja matéria do hotel St. Regis Bal Harbour à página 82). “Eu imaginei que a gente faria meio que como os traficantes de drogas”, diz o magnata culinário, de 37 anos de idade, “mandando para a nossa rede de chefes amigos e vendo como eles usariam”. À medida que essa abordagem de “código aberto” se desenvolve, ele continua obrigando seus subcientistas a prosseguir com os experimentos alimentares: “É fundamental que a gente aprenda o processo científico e documente o que acontece. Quero que as pessoas encarem seus erros e simplesmente sigam em frente – os sabores excepcionais surgem do erro”.
Quem dera nós pudéssemos fracassar como David Chang. Na década que se passou desde que abriu o Momofuku Noodle Bar, ele transformou um restaurantezinho de massas orientais de 55 metros quadrados no East Village em um cartel culinário que hoje se estende ao Canadá e chega até a Austrália, lá longe. Nesse percurso, ele arrancou a toalha de mesa branca do universo da alta gastronomia, provando que a culinária gourmet pode vir na forma de presunto curado, pork butt e kimchi – tudo servido em espaços revestidos de madeira compensada bruta e acompanhado de uma porção generosa de Guns N’ Roses.
Por seu empenho, Chang se transformou na Meryl Streep dos prêmios James Beard – ganhou cinco nos últimos oito anos, inclusive o de Chefe de Destaque, em 2013. A Lucky Peach, revista gastronômica erudita que ele lançou em 2011, também ganha prêmios Beard. E Chang cruzou, há muito tempo, a fronteira da cultura pop: estrelou a série sobre comida The Mind of a Chef, do canal PBS, fez papel de si mesmo de forma convincente na série Treme, da HBO, e aparece em comerciais do Audi A3 (ele devolveu o carro, já que raramente dirige).
Não que alguma parte desse sucesso tenha sido intencional – ou esperada: “Se você olha para os dez anos do Momofuku, quase tudo saiu de um erro – um um erro terrível”, diz Chang enquanto nos debruçamos sobre tigelas de lichias cobertas com flocos de foie gras no Ko, que tem capacidade para 12 pessoas e recebeu duas estrelas do Guia Michelin e três do New York Times.
David Chang cresceu no norte do estado de Virgínia, onde o pai comandava restaurantes e, depois, uma loja de artigos de golfe. O próprio Dave, ainda jovem, foi um golfista promissor até que desistiu quando adolescente.
A fascinação pela comida, que começou ainda criança, quando o pai o levava a restaurantes de massas orientais, conduziu Chang ao Instituto de Culinária Francesa em 2000. Ele trabalhou no Mercer Kitchen e no Craft, de Tom Collicchio, antes de conseguir um emprego de preparador de itens frios no Café Boulud, do chef Daniel Boulud – uma das cozinhas mais em alta em Nova York e parada obrigatória para um cozinheiro jovem e ambicioso. No entanto, quando sua mãe teve câncer, entre outros problemas de família, Chang não conseguiu seguir o ritmo da cozinha. “Eu me sentia uma promessa não cumprida”, diz ele hoje. E quando seu herói, Alex Lee, um chefe sino-americano que tinha comandado a cozinha do Daniel, de Boulud, saiu do ramo aos 35 anos, Chang esteve prestes a jogar seu avental de cozinheiro. “Eu sabia que nunca seria tão bom quanto ele. E tinha que achar outra coisa para fazer”, comenta. “Quer saber por que eu sou um esquisitão neurótico? O golfe me estragou. Ficava sempre olhando o quadro de líderes e pensando: ‘Se não vou vencê-los, qual é o sentido?’.” Por isso, quando achou que não seria bem-sucedido em restaurantes finos, Chang saiu do Boulud para abrir um bar de massas japonesas. “Pensei: ‘Não posso ter uma influência na alta gastronomia, mas talvez eu possa ajudar partes do mundo invisível da culinária’. Eu me lembro de ter dito isso ao meu psiquiatra.”
Mas Chang teve um problema maior quando inaugurou o No- odle Bar, em 2004. “Nós éramos um restaurante horrível.” Não havia garçons, assistentes, lavadores de louças – nem copos. “Nós achávamos que podíamos fazer todo mundo comprar garrafas de água mineral.” O Noodle Bar foi um fracasso completo – e, como ficaria claro, foi a melhor coisa que poderia ter acontecido a Chang. “Eu acredito mesmo que, se eu tivesse um pouquinho mais de experiência e um pouquinho mais de sabedoria, o Momofuku nunca teria existido”, diz ele. “Eu via aquilo como uma sentença de morte. É como as pessoas que descobrem que só têm mais um ano de vida – elas finalmente começam a viver.”
No caso de Chang, ele finalmente começou a cozinhar. Deixou de lado os típicos lámens e guiozas e passou a servir versões inspiradas de bolinhos de porco ou dobradinhas. “Eu sou um cara muito nervoso e acho que uma parte do meu melhor trabalho e da minha melhor criatividade surgiu naqueles momentos mais sombrios, quando eu estava no auge da minha raiva.” A fúria inspirou pratos como o de camarão e canjica com caldo de lámen de porco e o de aspargos e ovos com manteiga de missô. “As combinações de sabores dele fizeram do Noodle Bar o lugar mais incrível para comer na cidade”, diz Meehan. Não demorou para que o restaurante virasse o queridinho dos críticos, dos blogueiros de gastronomia e, é claro, dos clientes. Logo, Chang estava faturando milhões naquele espaço de 55 metros quadrados.
Aproveitando o embalo (e um empréstimo de US$ 1 milhão cuja garantia era a loja de golfe do pai), Chang resolveu inaugurar seu próximo restaurante. Abriu o Ssäm Bar na mesma rua, em um edifício do East Village que estava desocupado havia 13 anos. O plano dele era fazer burritos coreanos. Porém, assim como o começo do Noodle Bar, foi um fiasco. O capital inicial acabou rapidamente, e Chang se viu mais uma vez em uma sinuca de bico.
Para incrementar a receita, resolveu deixar o Ssäm aberto até tarde, abandonando os burritos e cozinhando o que lhe dava na telha: cabeça de vitela, moleja grelhada, salsicha empanada. Logo, todo o pessoal que trabalhava em cozinhas na cidade estava parando lá para uma refeição pós-turno de trabalho. Em seguida, vieram os blogueiros de gastronomia e, depois, as celebridades. “Mais uma vez, nós não tínhamos ideia do que estávamos fazendo. Mas a taxa de acertos nos pratos de sucesso era extremamente alta. Ficou contagioso. Aí saí- mos na coluna do [crítico do New York Times] Frank Bruni, e a coisa pirou. Ganhamos duas estrelas. O pessoal ficou irritado. O restaurante era barato e ficava num local que era ruim, um caixote de madeira. Tinha um monte de gente que daria tudo para ter duas estrelas e que tinha gasto muito tempo e dinheiro. Eu tinha 29 anos.”
O Ssäm Bar proporcionou a Chang um prêmio James Beard de Chefe em Ascensão, inúmeras menções na imprensa e ofertas para abrir uma versão maior do Momofuku em Las Vegas. Também têm surgido ofertas para comprar a marca Momofuku. “Se eu vendesse, me aposentaria. Já sou um cara um tanto infeliz”, ele admite, “e ficaria muito infeliz por causa da culpa. Aguardo ansiosamente o dia em que todo mundo da equipe possa se beneficiar financeiramente e ter a liberdade criativa para fazer o que quiser.” Ele continua: “Eu disse ao pessoal que, se não estivesse no Momofuku, estaria fazendo comida em cafeterias. Estaria mesmo”.
Em 2012, abriu quatro estabelecimentos em Toronto, em um mesmo edifício moderno de vidro a que deu o nome de Momofuku World. “A sensação era de uma inauguração de restaurante por semana. Eu estava me torturando. Dava para sentir os anos se esvaindo da minha vida.” Aí surgiu a oportunidade de abrir um restaurante para 47 clientes em Sydney, na Austrália. Chang passou cerca de um ano e meio do outro lado do mundo para inaugurar esse restaurante porque seus sócios ajudaram a financiar sua “cozinha dos sonhos”. Dez anos atrás, Chang tinha um funcionário. Hoje, tem 500. “Cozinhar e comandar uma cozinha não é fácil, mas administrar é dureza. É uma batalha para mim”, diz ele. “Eu adoraria que outras pessoas fizessem isso.”
“Apesar do sucesso, as inseguranças e os problemas que eu tinha tido até então continuavam. Comecei a cozinhar com a intenção de ficar na periferia. De alguma forma, aconteceu o contrário. Aquilo era lisonjeiro, mas difícil de entender.” Hoje, ele parece estar mais em paz com sua boa sorte, após um nefasto período de 18 meses de reveses pessoais e profissionais (cancelou um casamento, o pai e a mãe receberam diagnóstico de câncer, um chefe de cozinha do Momofuku faleceu), Chang acredita estar motivado como nunca. “Faz um bom tempo que eu não fico tão envolvido”, diz ele. “Acho que eu tinha medo de tomar a decisão errada e agora percebo que isso era besteira. Há tempos eu não me sentia assim, sem me importar se eu detonar tudo.”
Entre os projetos programados para este ano, Chang vai transferir o Ko para um local um pouco maior no bairro de Bowery e pretende criar um programa televisivo da Lucky Peach. Tem até uma série de livros em preparação. Por ora, ele está mais empolgado em abrir um novo restaurante e Milk Bar em Washington, D.C. Ao mesmo tempo em que é mais um grande experimento, é também um retorno – um passo na direção de transformar o Momofuku em uma rede nacional.