Jack Ma, o homem que administra o maior varejista on-line do planeta e que a FORBES classifica como a 22ª pessoa mais poderosa em nível mundial, não gosta nem um pouco de advogados. Especialmente daqueles que estão atacando a própria base do império de US$ 200 bilhões que ele construiu. Magérrimo, como sempre, Ma quase pula do sofá de seu escritório em Hangzhou ao falar sobre os refinados advogados de Nova York que o processaram por violação de marcas registradas e comercialização de produtos falsificados. A cliente deles é a Kering, conglomerado francês de produtos de luxo que é dona da Gucci e da Yves Saint Laurent. Não existe possibilidade, ele insiste, de chegar a um acordo.
“Prefiro perder o caso, perder o dinheiro”, diz Ma. “Mas nós ganharíamos nossa dignidade e nosso respeito.”
Isso é válido se ele estiver se referindo ao respeito por parte das centenas de milhares de pequenos empresários chineses que vêm ganhando a vida no bazar on-line do Alibaba, chamado Taobao. Para Ma, cujos sites chineses de varejo movimentam um volume cinco vezes superior ao do eBay — no ano passado, US$ 394 bilhões em, bem, todo tipo de produto —, esses vendedores são uma força vital. Para os vendedores, Ma é um herói do capitalismo, oferecendo-lhes uma passagem para a classe média. No centro desse pacto social, no entanto, está uma verdade não reconhecida: o colosso Alibaba foi erguido, em medida significativa, sobre produtos ilegais, falsificados.
A escala da falsificação é enorme — em qualquer momento, o Taobao tem à venda milhões de produtos suspeitos, de bolsas a autopeças, de roupas esportivas a joias. Quando a FORBES buscou anúncios no Taobao com a palavra “Gucci” e definiu a faixa de preços em até 300 yuans, ou menos de US$ 50, bem abaixo do preço de produtos Gucci verdadeiros, apareceram 30 mil resultados. Os vendedores de quatro dos itens da primeira página confirmaram, no bate-papo on-line, que contratam fábricas para produzirem esses artigos usando o design original. Dentre o restante, grande parte são designs semelhantes aos dos produtos Gucci com ligeiras modificações, como a troca da letra “G” pela “D” na estampa de uma bolsa.
Segundo a NetNames, empresa que ajuda as marcas a combater os falsários da internet, seus clientes acreditam que chega a 80% a proporção das mercadorias falsas que são vendidas no Taobao como se fossem deles. Essa informação é respaldada por Dan McKinnon, chefe de proteção global de marca da fabricante de tênis New Balance. Como a empresa de Boston não tem nenhum revendedor autorizado no Taobao, McKinnon calcula que pelo menos 80% dos supostos produtos New Balance vendidos pelo site são falsos ou suspeitos. O Alibaba, por sua vez, prefere não arriscar uma estimativa.
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De certos pontos de vista, a empresa não pode entrar nesse mérito. Ma levou a cabo a maior IPO do mundo no ano passado, levantando US$ 25 bilhões na Bolsa de Valores de Nova York. A receita do Alibaba mais do que dobrou nos dois últimos exercícios fiscais, chegando a 12,3 bilhões, enquanto o lucro líquido quase triplicou, atingindo US$ 3,9 bilhões. Ma tem um patrimônio pessoal de US$ 21,8 bilhões. O que aconteceria se o Alibaba erradicasse as mercadorias falsas de seus sites de venda — caso isso fosse possível? Harley Lewin, veterano advogado especializado em propriedade intelectual da McCarter & English, tem uma opinião: “Eles faliriam”.
Ma não tem nenhum interesse nesse resultado. Mas ele também tem incentivo para ficar à frente da narrativa antes de executar a audaciosa próxima fase do Alibaba: passar do gigantismo na China ao domínio do varejo no mundo inteiro. Isso requer desenvolver a confiança dos consumidores de todos os lugares — confiança esta que pode ser prejudicada por uma reputação que inspire cuidados por parte dos compradores. “O Jack Ma ganhou muito dinheiro”, diz William Forsythe, gerente de proteção de marca da unidade norte-americana da montadora japonesa Nissan Motor. “Mas se ele for entrar no mercado mundial, precisará criar um sistema que proteja as marcas registradas internacionais.”
Esta é a charada de Ma: será que ele é capaz de reprimir os falsificadores o suficiente para ser visto globalmente como alguém que respeita a inviolabilidade das marcas vendidas em seus sites — mas não demais, a ponto de afundar os pequenos vendedores que continuam sendo seu ganha-pão?
Quanto mais ele fala, mais clara vai ficando sua opinião. O segundo homem mais rico da China acha a ideia do varejo de luxo, em si — vender cintos, acessórios e coisas do gênero por milhares de dólares —, inerentemente absurda. “Como você pode vender uma bolsa da Gucci ou de qualquer marca por tanto dinheiro? É ridículo”, diz ele. “Entendo que as empresas de marcas conhecidas não estejam contentes, mas também digo que esse é o seu modelo de negócios. Vocês também precisam analisar o seu modelo de negócios.”
As acusações de haver falsários desenfreados perseguem o Alibaba e o Taobao desde o começo, sendo que Ma alegou, durante todo esse tempo, estar sendo rigoroso. Porém, à medida que o site crescia, cresciam também as reclamações de marcas consagradas e, em 2008, o Gabinete do Representante do Comércio dos Estados Unidos colocou o Taobao em sua lista de Mercados Notórios, junto com sites como Baidu e PirateBay.
A falsificação na China não é nenhuma novidade. Já no século 19, comerciantes norte-americanos encomendavam cópias baratas de pinturas a oficinas chinesas. Mas o problema piorou exponencialmente depois que a China iniciou sua histórica transição para o capitalismo de livre mercado nos anos 1980. Aliás, na visão de Ma, seu problema relacionado aos produtos falsificados é um desdobramento direto da ascensão econômica da China. Quando o gigante adormecido acordou, fábricas de todo tipo de produto de consumo brotaram dos arrozais do país. Como o governo dava pouca atenção à proteção da propriedade intelectual — e o público chinês desenvolveu um entusiasmo por enriquecer rapidamente, o que ainda é comum hoje —, a China se tornou um paraíso para a produção de mercadorias falsificadas, desde tênis até medicamentos controlados, passando por filmes de Hollywood. Segundo o Departamento de Segurança Nacional dos Estados Unidos, produtos falsificados da China e de Hong Kong no valor de quase US$ 1,1 bilhão foram confiscados ao entrar no país no exercício fiscal de 2014 — 88% do total que o órgão.
O Alibaba começou a trabalhar em colaboração mais estreita com as marcas para lidar com a questão dos produtos falsos, e isso foi suficiente para convencer o Gabinete do Representante do Comércio dos Estados Unidos a retirar o Taobao de sua lista negra em 2012. Mas o órgão advertiu que o Alibaba precisaria dar passos ainda maiores para evitar uma volta à lista. As medidas da empresa não foram suficientes para uma série de marcas ocidentais. A Kering primeiramente processou o Alibaba por violação de marca registrada e comércio de produtos falsificados em 2014, mas retirou a queixa após as duas empresas concordarem em discutir um acordo e um plano de combate aos falsários. Contudo, decorrido menos de um ano, as discussões não tinham levado a lugar nenhum, e a Kering decidiu acionar o Alibaba novamente. A segunda ação judicial alega, entre várias outras queixas, que 37 mil bolsas Gucci falsas foram vendidas no Taobao em um único mês, em 2014, por 2.731 lojas diferentes. (Um porta-voz do Alibaba retruca que a queixa da Kering “não tem nenhum fundamento”.)
Até o governo chinês, que geralmente faz vista grossa para a falsificação, vem pressionando Ma a resolver o problema. Em janeiro, a Administração Estatal da Indústria e do Comércio, um órgão regulador do governo, publicou uma pesquisa que tinha encomendado, a qual revelou que apenas 37% dos produtos analisados no Taobao eram autênticos. O órgão então fez um relatório acusando o Alibaba de estar passando, como consequência, por uma “crise de credibilidade”. A empresa contesta essas pesquisas. Durante uma teleconferência com investidores, o vice-presidente do conselho, Joe Tsai, criticou a pesquisa sobre os produtos como sendo “equivocada” e “baseada em metodologia arbitrária”.
Juanita Duggan, CEO da Associação Norte-Americana de Vestuário e Calçados, grupo do setor que representa muitas marcas prejudicadas pelos falsários chineses, diz que sua organização participou de intensas discussões com o Alibaba sobre maneiras pelas quais a empresa chinesa poderia proteger melhor as marcas, mas que houve resistência. “Nós estamos andando em círculos com eles, não estamos indo a lugar nenhum”, diz Duggan. Cansado, o grupo dela escreveu ao Representante do Comércio dos Estados Unidos uma carta oficial em abril, acusando o Alibaba de “ser incapaz ou não ter interesse em lidar com esse problema”. Agora, o grupo está em campanha para que o Taobao volte à lista de Mercados Notórios do governo norte-americano, a qual funciona, em grande parte, como um mecanismo de humilhação.
Em carta ao Representante do Comércio dos Estados Unidos, o vice-presidente de assuntos governamentais internacionais do Alibaba, Eric Pelletier, respondeu que a empresa quer cooperar com o grupo empresarial de Duggan, mas que muitas das exigências eram “insensatas e inviáveis”. O mais revelador: o Alibaba disse que ceder aos desejos da associação calçadista o obrigaria a fazer mudanças em seu modelo de negócios. “Não é razoável exigir que o Alibaba Group mude aspectos fundamentais de nosso modelo de negócios como preço da colaboração”, escreveu Pelletier.
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Existe um centro de comando na sede do Alibaba, um complexo com torres de escritório de aço e vidro na periferia de Hangzhou que abriga 16 mil funcionários. Três andares abaixo do escritório de Ma, uma grande tela plana mostra um mapa da China com pontos que piscam a cada um ou dois segundos. Em um país notório pela espionagem cibernética, particularmente de segredos comerciais, o Alibaba está se autoespionando.
Mais especificamente, está operando o que é provavelmente a maior força-tarefa privada do mundo dedicada a mercadorias falsas: são 2 mil integrantes, todos funcionários do Alibaba, que gastou nessa iniciativa um total de US$ 160 milhões em 2013 e 2014. Esse efetivo quintuplicou desde 2011. Se formos julgar Ma por suas ações, e não apenas por palavras, é por esse lugar que devemos começar. “Se eu falo em tolerância zero com produtos falsos”, diz ele, “estamos falando a sério”.
O ministro da defesa de Ma é Polo Shao, veterano com 20 anos de trabalho na polícia chinesa. Ele mostra, empolgado, o sistema de computadores de Big Data que o Alibaba usa para farejar produtos falsificados. Os pontos piscantes no mapa indicam transações no Taobao com base em atributos como preço suspeitosamente baixo, má qualidade da foto e tamanho da descrição do produto. Transações sinalizadas como suspeitas são então analisadas antes que se tome a decisão de removê-las. O sistema contabiliza o número de produtos falsos retirados do site — dezenas de milhares somente naquele dia. Outros softwares são capazes de comparar fotografias postadas pelos vendedores nos sites de suas lojas com fotos oficiais dos produtos originais, com a missão de descobrir réplicas ilegais. Shao sustenta que a empresa removeu 100 milhões de produtos ilícitos do Taobao apenas no ano passado, um grande aumento em relação aos 14 milhões de 2010. Noventa por cento desses produtos foram encontrados pela equipe do Alibaba, diz ele, e não identificados pelas marcas copiadas. “Estamos descobrindo esses problemas de maneira proativa e os resolvendo”, explica Shao.
Mesmo com avançados softwares antifraude e 2 mil pares de olhos, o Alibaba está enxugando o maior gelo do mundo. Por volta de 100 mil novas lojas são aprovadas no Taobao a cada dia, e Shao diz que nem sempre o Alibaba tem como saber as intenções delas antes de começarem a vender. “Nós estamos longe da perfeição”, Shao admite. É por isso que o Alibaba também expandiu sua guerra para o mundo real. Dois anos atrás, a empresa aumentou sua cooperação com a polícia chinesa para ajudar a localizar as pessoas que fabricam e distribuem mercadorias falsificadas. A polícia designou dois oficiais para a sede do Alibaba e está desenvolvendo, em conjunto com a empresa, um software para identificar as fontes de produtos falsos com base nas informações de Ma. Man Niu, diretor da divisão de investigação de crimes econômicos do Departamento de Segurança Pública de Zhejiang, província de origem do Alibaba, diz que capturou, com a ajuda do Alibaba, 300 suspeitos em 160 casos de falsificação desde meados deste ano. “Estamos trabalhando juntos cada vez melhor”, diz Man.
William Forsythe, da Nissan, está pouco impressionado com isso. Ele reveste sua vigilância de marca com o manto da preocupação com a segurança, especificamente no sentido de que as autopeças falsificadas, vendidas pelas plataformas do Alibaba, podem prejudicar os consumidores chineses — e chegar às funilarias e lojas de autopeças dos Estados Unidos. (Um fato revelador é que o Alibaba.com proíbe terminantemente a venda de airbags.) “Eles estão contando o dinheiro com a mão esquerda”, diz Forsythe, “e tapando os olhos com a direita.”
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“Um produto falso nos faz perder cinco clientes”, responde Ma. “Se não controlarmos isso, perderemos mais clientes.” Para protegê-los ostensivamente, o Taobao tem um sistema de fiscalização: os comerciantes são punidos com “golpes” e “pontos” por diversas transgressões. Vender produtos falsificados resulta em um “golpe” e, após três ou quatro “golpes”, dependendo da natureza das infrações, o Alibaba fecha a loja. No entanto, o sistema é confuso e dá ao vendedor amplas oportunidades de continuar nos negócios. Por exemplo, a menos que o vendedor acumule muitos pontos em um ano, o histórico dele acaba ficando limpo, permitindo que todos os transgressores, exceto os mais descarados, mantenham suas lojas abertas. Os que são banidos podem simplesmente recadastrar a loja com um nome diferente e retomar as vendas.
Os comerciantes chineses que oferecem produtos falsificados nas plataformas do Alibaba concordam que a empresa está ficando mais rigorosa — mas não a ponto de desmotivá-los, e eles continuam a comercializar suas mercadorias ilegais com impunidade. Um exemplo: S. Zhai, de 30 anos de idade, opera duas lojas no Taobao, que vendem bolsas e roupas falsas de marcas como Prada, Fendi e Balenciaga. Os produtos dela, acredite se quiser, vêm das mesmas fábricas chinesas que produzem os itens autênticos. Bolsas e outros produtos feitos para as marcas são retirados das linhas de produção por funcionários de controle de qualidade devido a algum tipo de defeito e depois são repassadas a Zhai por debaixo do pano. Alguns falsificadores também pegam tecidos, couro e outras matérias-primas descartadas, enviam para sua própria fábrica, contratam trabalhadores da fabricante oficial e transformam essas peças em réplicas dos produtos originais, as quais Zhai diz que também vende no Taobao.
Os negócios estão a todo vapor. Em um dia bom, ela consegue faturar US$ 11 mil. Os falsificados de Zhai devem ser fáceis de reconhecer. São cópias exatas do original, com logotipos da marca e tudo mais, mas ela os vende a preços baixos e deixa claro em sua loja no Taobao que não se trata dos produtos oficiais. Mesmo assim, o Alibaba não tem conseguido impedi-la.
C. Di, de 28 anos, tem sofrido menos pressão por parte do Alibaba. Ela admite de cara que copia designs de grandes marcas de luxo como Gucci, Fendi e Ferragamo e contrata uma fábrica na província chinesa de Guangdong para produzir as bolsas para ela. Di abriu sua loja no Taobao em 2013 e começou a ganhar tanto dinheiro, que largou o emprego de funcionária pública. A cada mês, ela vende em torno de US$ 30 mil em produtos falsificados, o que lhe proporciona um lucro superior a US$ 1.500.
Todavia, Di foi punida uma única vez pelo Alibaba por violação de propriedade intelectual — a empresa lhe pediu que parasse de vender uma quase réplica de uma bolsa Ferragamo. Di alterou os designs de modo a fazer seus produtos parecerem ligeiramente diferentes dos originais. Mas algumas de suas mercadorias continuam sendo cópias evidentes. Em tempos recentes, ela ofereceu uma bolsa Michael Kors com a parte interna claramente revestida de logotipos da empresa. Na descrição do produto, ela declarava abertamente que a fábrica que produziu a bolsa foi multada por violação de propriedade intelectual da Michael Kors. “O Taobao tem suas próprias regras”, comenta ela. “Um vendedor veterano saberia evitar melhor os riscos.”
Zhai e Di podem ser impostoras para empresas como Gucci e Nissan e para milhões de clientes. Mas o grande orgulho de Ma é ter dado a milhões de chineses pobres a oportunidade de abrir seu próprio negócio e ter uma situação melhor. Ele se sente responsável por todos aqueles vendedores do Taobao — os pequenos — que batalham para subir na vida em uma China ainda pobre. Se a defesa dos direitos de propriedade intelectual fica em segundo plano, que assim seja. “Não é 8 ou 80”, explica Ma. “Se você simplesmente diz: ‘Feche’, isso é injusto com o vendedor. Nós temos de proteger esses caras também, não só as empresas de marca. É preciso se preocupar com todas as pessoas e os direitos delas.”
Ma é poderoso demais, rico demais e requisitado demais para que as marcas, mesmo as mais furiosas, forcem-no a mudar. E embora milhões de clientes estejam, em teoria, sendo logrados por vendedores do Taobao, outros milhões estão aproveitando, já que têm uma maneira barata de exibir luxo em um país obcecado por isso. No âmbito nacional, o caminho mais fácil para Ma é manter o status quo. Internacionalmente, a rota mais prudente é demonstrar seriedade nessa questão. É o clássico raciocínio político chinês: buscar uma resolução harmoniosa. Só que, desta vez, é entre interesses comerciais.
Lembre-se do destino do Ali Baba original, aquele do “abre-te, sésamo”. Ele também teve problemas com um bando de ladrões. Ele também teve de lidar com interesses divergentes de todo tipo — o irmão ganancioso, o escravo fiel e os ladrões zangados.
No fim, foi Ali Baba que acabou ficando com todo o ouro.