Nada naquele rapaz de 32 anos, que se veste de forma discreta, com camisa clara e calça social, sugere qualquer tipo de extravagância. Ao contrário: ele parece querer não chamar atenção e ser tratado apenas como mais um no escritório com quase 70 pessoas que comanda no último andar do icônico edifício Tomie Ohtake, em São Paulo. Mas não há uma cidade neste país em que Guilherme Telles coloque o pé sem provocar polêmica. Tem sido assim desde que assumiu a diretoria geral da Uber no Brasil, em junho de 2014. Quando decidiu comandar por aqui as operações do aplicativo de transporte de passageiros, Guilherme sabia onde estava se metendo — e, movido por enormes desafios e pela busca por inovação, talvez por isso tenha escolhido seguir o caminho.
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Nascido em São Paulo, filho de pai engenheiro e mãe psicóloga, Gui, como todos no escritório o chamam, é um sujeito eloquente. Gosta de contar histórias e as faz de uma forma quase professoral — ouvi-lo falando sobre a própria vida, suas experiências e suas crenças profissionais remete a uma das palestras do circuito TED Talks. É o típico executivo do Vale do Silício, na Califórnia (Estados Unidos): polido, dono de um discurso motivacional, entusiasta de práticas inovativas (como meditação mindfulness e fazer reuniões caminhando). Foi durante o MBA na Universidade de Stanford, aliás, de onde saem alguns dos mais bem-sucedidos empreendedores de startups do mundo, que ele percebeu o potencial do aplicativo de economia colaborativa e fez os contatos que o levaram a ser o homem da Uber por aqui.
O Uber é um aplicativo para smartphone que conecta pessoas que precisam se locomover em cidades com outras que oferecem o transporte. A empresa recruta pessoas que queiram trabalhar como motoristas e possuam carros com determinadas características (como ar condicionado e vidro elétrico). Na outra ponta, os usuários solicitam um carro pelo celular e, por meio de sistema de geolocalização, o app encontra os motoristas mais próximos. Não é de se espantar que governantes (responsáveis pelo transporte público nas cidades) e taxistas (que faziam até então sozinhos o transporte individual de passageiros) chiem muito quando a empresa começa a operar.
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Para chegar onde chegou, Guilherme teve um excelente background. Estudou no Visconde de Porto Seguro, colégio bilíngue português-alemão no Morumbi, bairro nobre de São Paulo, até os 14 anos, quando foi para a Austrália fazer o high school. Um ano e meio depois, terminou o ensino médio nos EUA. Como era velocista e competia nos 100 metros rasos, ganhou uma bolsa para Berkeley, na Califórnia, mas não a aceitou: além de ter sofrido uma lesão no joelho, a bolsa era parcial e o dólar, na época, havia dobrado de valor.
De volta ao Brasil, decidiu fazer administração na Fundação Getúlio Vargas. “Não queria me especializar em nada”, conta. “Falamos sempre isto na Uber: os melhores líderes são aqueles que têm uma visão one mile wide, one inch deep”, ou uma milha de largura, uma polegada de profundidade. “Eles têm visão do todo e, por não estarem tão envolvidos nas coisas, conseguem criar sentido em tudo. Além disso, o curso de administração tem um quê de gestão de pessoas, que adoro.”
A educação internacional continuou na universidade: Guilherme ficou na ponte aérea Brasil-França, e estudou também na Montpellier Business School, no sul do país, e na HEC (École des Hautes Études Commerciales), em Paris. Na capital francesa, trabalhou na Société Générale, um banco de investimentos, para “explorar o mercado financeiro”. Na mesma área, voltou para o Brasil direto para a Merrill Lynch. “Foi quando descobri que finanças era também algo muito especializado e proporcionava pouco contato com pessoas. No fim, o trabalho não era pensando fora da caixa, motivando, mas fazendo aquilo que já estava sendo feito, com mais precisão.” Não era sua praia.
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Pegou o dinheiro que havia juntado até então, e comprou um bilhete de volta ao mundo. Passou cinco meses viajando. “Queria viajar com dinheiro contado, com mochila nas costas, chegar à China sem falar chinês. Na época, não tinha Google Maps, fui com um mapa do Lonely Planet e guia de palavras em mandarim. E isso não me preocupava. Fiz isso pra me tirar da zona de conforto.” Esta expressão é usada por Guilherme várias vezes, inclusive para falar sobre a Uber. “É uma empresa internacional. Todo mundo aqui tem isso de querer descobrir culturas novas e essa curiosidade intelectual. São pessoas que se sentem confortáveis fora da zona de conforto, por mais paradoxal que isso possa parecer. Quando tudo está funcionando, indo bem, elas se sentem incomodadas. É um perfil que a gente procura.”
Quando fala sobre sua trajetória, Guilherme Telles vai e volta, mas não perde o fio da meada. Sentado numa poltrona em uma área cheia de pufes no escritório amplo e sem paredes, ele usa vários termos em inglês. Diz que, quando voltou de sua viagem, dedicou-se à consultoria. No Boston Consulting Group, trabalhou em várias áreas: “Retail, petróleo, energia termoelétrica, peças de computador. Consultoria dá isso de conhecer e explorar coisas novas. Mas o mais importante é que trabalhei com pessoas muito boas, aprendi muito”.
Foi por intermédio de uma amiga do BCG que o ouvia dizendo que pretendia partir para o empreendedorismo e tecnologia (para, adivinhe, “sair da zona de conforto”) que ele conheceu Júlio Vasconcellos — também egresso de Stanford, voltara ao Brasil para ser o primeiro representante do Facebook.
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“Vendo como o Groupon [e-commerce que oferece grandes descontos em vários tipos de serviços] funcionava ao redor do mundo, ele percebeu que o Brasil oferecia uma grande oportunidade. Foi desse conceito que criou o Peixe Urbano”, conta Guilherme, que se mudou para o Rio para ser diretor de estratégia da nova empresa. “Uma das coisas mais legais que pude presenciar é que a empresa, em dois anos, saltou de quatro funcionários para 1.500”, lembra.
Contaminado por Stanford Empolgado com as histórias de Júlio, especialmente sobre a importância dos contatos que fez em Stanford, Guilherme enfrentou o trabalhoso processo de aplicação para o MBA de lá e ingressou na universidade em 2012. “A aula mais importante e mais disputada é sobre como fazer empresas. Você imagina que é uma aula cheia de conceitos de como fechar grandes deals e lançar produtos, mas é sobre como contratar, demitir e motivar. Porque fazer crescer empresas é sobre isto: pegar as pessoas certas, entender o que as motiva e colocá-las nas coisas em que elas são mais importantes para o negócio, dando direcionamento estratégico. É tão simples quanto isso.”
Stanford contaminou Guilherme Telles. “O lema de lá é mudar vidas, mudar organizações e mudar o mundo. E 50% do orçamento vêm de doações, principalmente de ex-alunos. Você é subsidiado para estudar lá porque as pessoas que já estudaram acham que têm a obrigação de devolver isso para a sociedade. Isso ficou enraizado em mim. Pensei que não podia sair de Stanford e entrar em um emprego que fosse fazer bem só para mim. O trabalho não podia ser um fim, mas um meio para fazer coisas que teriam impacto em outras pessoas e poderiam mudar o mundo.”
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O primeiro contato profissional que ele teve com a Uber foi no começo de 2014, assistindo a uma palestra de Megan Zoback, então diretora de expansão para a América. Já era usuário desde 2012 do aplicativo criado dois anos antes por dois empresários americanos, Travis Kalanick e Garrett Camp. E apreciava a praticidade, a conveniência e a segurança da plataforma. Na palestra, ouviu de Megan sobre os planos de expansão da empresa para o México e Panamá e, no fim, perguntou por que o Brasil, que tinha um potencial muito grande para o Uber, não estava nos planos. Ouviu o que imaginava: não haviam encontrado ainda as pessoas certas para o projeto. E pensou que queria encarar aquele desafio.
“Mandei uma apresentação mostrando por que achava que o Brasil ia dar certo e, depois de conversar com 16 pessoas, falaram: ‘Legal’. O processo começou em maio, e eu me formaria em junho, mas já começaram a montar a estrutura brasileira e me preparar para assumir aqui.” Quando Guilherme retornou ao Brasil, em junho de 2014, o Uber já havia sido lançado no Rio e estava entrando em São Paulo.
Ele se empolga com os resultados obtidos nesses quase dois anos de atividade. “Se antes o Brasil era dúvida, agora é um dos principais mercados da Uber no mundo, pelo crescimento que apresenta e pelo tamanho da oportunidade”, afirma. A empresa não divulga números de faturamento nem de usuários, mas o executivo conta que os índices de aumento de passageiros são de dois dígitos… por semana. As metas na Uber são contadas a cada sete dias — o que, segundo Guilherme, deixa os funcionários mais motivados e menos preguiçosos. “Quando a meta é mensal, se no 15º dia o cara já a bateu, relaxa. Se está longe de bater, relaxa também. Com metas semanais, isso não acontece, e sou capaz de ver se há algo errado e consertar imediatamente.” O escritório central em São Paulo, composto por ele e mais uma pessoa em 2014, hoje emprega 70. Em cada cidade para qual a Uber se expande, um escritório é montado.
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Guilherme classifica a experiência no comando da empresa como “emocionante”. De fato, se há algo que não faltou foi emoção. O aplicativo Uber encontrou resistência por parte dos taxistas e do poder público em todas as cidades nas quais se meteu. Em São Paulo, houve quebra-quebra e até sequestro de motoristas. No Rio, manifestações de taxistas paralisaram a cidade, e receberam uma resposta brilhante: com a justificativa de não compactuar com a falta de mobilidade, a startup ofereceu corridas com descontos de 20 reais, o que, na maioria dos casos, resultou em tarifas gratuitas.
O executivo explica que o serviço não é ilegal nem irregular: ele apenas não é regulamentado. “Não há na história um caso de alguma inovação que tenha sido precedida por sua regulamentação. Antes de inventarem o carro, não havia semáforos, cinto de segurança ou airbag. Criar regulamentação que dê sustentação para esse modelo de negócio é um trabalho a seis mãos, entre a empresa, a sociedade e o poder público”, afirma.
A lei federal 12.587, de 2012, é a que institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Ela define quatro modalidades de transporte urbano: transporte público coletivo, transporte privado coletivo, transporte público individual e transporte motorizado privado. Na definição deste último está a brecha que viabiliza o Uber: “Meio motorizado de transporte de passageiros utilizado para a realização de viagens individualizadas por intermédio de veículos particulares”.
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Em abril, a Uber conquistou uma vitória importante no Rio. Uma juíza da 6ª Vara da Fazenda Pública aprovou liminar que libera os motoristas credenciados a trabalhar e receber pelo transporte de passageiros. Embora não seja definitiva, a decisão não permite mais que entidades como a Secretaria Municipal de Transportes apreendam carros de parceiros da Uber, nem apliquem multas aos condutores. Guilherme comemora cada vitória. “Vamos construir isso juntos. O que acontece é que as coisas hoje caminham muito rápido, e há pessoas avessas às mudanças. Não é o taxista que é contra. Cada vez mais taxistas que não são donos do próprio alvará (ou seja, a maioria) estão se tornando parceiros da Uber, porque pagam menos pelo uso de nossa plataforma do que pelo aluguel do alvará.” O CEO do Peixe Urbano concorda. “Não é possível brecar o Uber”, diz Júlio Vasconcellos. “Quem está tentando fazer isso são aqueles que brigam para manter benefícios próprios ao custo do bem da sociedade. Ao longo do tempo, esses interesses pessoais perdem.”
O próprio Guilherme é hoje um usuário assíduo de Uber — ele chegou a ser o maior usuário do aplicativo no Brasil antes mesmo de trabalhar para a empresa. Não tem carro. “Nunca gostei de ter bens. Para mim é muito mais importante o acesso do que a posse”, diz. Costuma ir de Uber ou pedalando de seu apartamento, nos Jardins, até Pinheiros, onde trabalha. E tira pelo menos quatro dias na semana para praticar atividade física, como crossfit e ioga. É adepto da meditação, que, diz, o ajudou a ter mais atenção e foco, necessários para as mais de 12 horas diárias que passa trabalhando. E lê ao menos um livro a cada 15 dias — ou melhor, ouve. “Sou adepto do audiobook. Entro em um carro da Uber e me locomovo ouvindo o livro.”
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Guilherme, imbuído do espírito de Stanford, gosta de pensar que o Uber é um serviço disruptivo que traz mudanças benéficas para a sociedade. A começar pelo próprio motorista parceiro. “Nós empoderamos pessoas”, afirma sobre o fato de o aplicativo permitir que qualquer cidadão tenha renda trabalhando no horário que preferir. Além disso, em sua visão, o Uber ajuda no trânsito caótico das grandes cidades.
De acordo com uma métrica da empresa, se o sujeito se locomove até 27 quilômetros por dia, vale mais a pena vender o carro e usar Uber (claro, levando em conta que esse mesmo sujeito pague todos os impostos e faça a manutenção correta de seu veículo). Júlio Vasconcellos concorda com o raciocínio.
“A Uber é uma das empresas com maior potencial benéfico para a sociedade da nossa geração. Ajuda a economia com novas oportunidades de trabalho, ajuda as cidades (grande melhoria em mobilidade urbana), o planeta (menos carros e poluição) e, melhor ainda, ajuda o consumidor, que tem uma experiência excelente por um preço melhor do que ter o próprio carro.” Assim, Guilherme Telles pode dormir tranquilo, com a sensação de que está mudando o mundo.