Da construção que se estende pela avenida Braz Leme, na zona norte de São Paulo, é possível ver o prédio onde, até o fim deste ano, a gigante brasileira de tecnologia TOTVS irá concentrar suas atividades. O novo edifício — minimalista, com apenas o necessário para o desenvolvimento dos trabalhos da empresa — é a personificação em concreto do que a sexta maior companhia de software de gestão do mundo já coloca em prática: pessoas conectadas sob uma mesma perspectiva de trabalho.
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“Quando se fala em cultura instalada nas companhias, e se fala em conexão de pessoas e transformação digital, você tem que revalidar seus produtos, e muitas vezes tem que revalidar sua cultura também”, diz o presidente da companhia, Laércio Cosentino. “O novo prédio não é apenas a oportunidade de unir as pessoas — elas estão agora distribuídas em sete ou oito lugares em São Paulo ou ao redor da cidade — mas de introjetar uma cultura mais alinhada com aquilo que estamos vivendo. É uma ótima oportunidade de testar vários elementos que já estamos introduzindo na nossa cultura. É um momento de ruptura: saímos de várias unidades para um prédio totalmente conectado.”
Essa conexão, física ou on line, passa pelos pensamentos de Laércio Cosentino, 57 anos, a todo instante. Ele está com a cabeça na nuvem. Suas soluções em TI estão migrando rapidamente do modelo de venda de licenças de software para contratação de serviços em cloud. No primeiro trimestre deste ano, a receita com as assinaturas de soluções em nuvem ultrapassou pela primeira vez a de licenças, o que era esperado apenas para 2017.
Num primeiro momento, isso significa receitas menores, já que as assinaturas em nuvem exigem menos investimento de quem as compra — a estimativa é de que a arrecadação diminua para um quarto do que entraria com as licenças, mais caras. A crise, diz, de certa maneira beneficiou a TOTVS — o software ajuda a reduzir custo, porque torna as empresas mais eficientes —, mas ao mesmo tempo a empresa teve que lidar com uma readequação de preços e valores, o que aumentou custos. Mas, nos cálculos da TOTVS, isso em breve será revertido. “A subscrição elimina uma barreira de entrada, que era o investimento inicial na compra da licença, e dilui isso no tempo”, diz Laércio. “Quando você adota esse modelo, você posterga uma receita e permite ter mais entrantes utilizando as soluções. Isso tem um impacto, com uma redução de margem de faturamento num primeiro momento.”
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O que poderia ser uma notícia ruim tem um impacto positivo na visão do presidente da TOTVS. Ele enxerga uma transformação digital em que haverá a necessidade de revalidar tudo o que é feito — e só será consumido o que for provado ser necessário. O novo prédio da empresa, inclusive, se encaixa nesta filosofia.
“O seu modelo de negócio está sendo consumido por uma sociedade que, de repente, não quer comprar”, diz. “Antigamente, consumir era comprar, e hoje em dia consumir, muitas vezes, está se tornando uma prestação de serviços. As software houses estão passando por isso, e você vai endereçar o mercado para algo maior — antes, você desenvolvia um software para uma universidade, e hoje desenvolve para professores e alunos. Você aumenta o mercado interessado, e ganha [em receita] no tempo.”
Cosentino estima que, entre os pequenos novos clientes, 98% optam pelas nuvens. Se a empresa é um pouco maior, essa proporção cai para 70% a 30%. Conforme o tamanho do usuário sobe na pirâmide, a escolha empata. “Depende do tamanho e da localização [a opção pelo serviço em nuvens]. Os tamanhos da criticidade e da infraestrutura disponível são o que vai definir. Mas a tendência de rodar em cloud e ter a subscrição é crescente. No médio e no longo prazo, é a solução˜, diz.
A REVOLUÇÃO DA CONECTIVIDADE
Laércio tinha 17 anos quando começou a estagiar na empresa. Cursava engenharia na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (“Usava um computador com cartão perfurado. No primeiro programa que fiz, descobri que zero e O eram completamente diferentes. Quando rodei, deu tudo errado [risos]”), e pediu uma indicação de estágio ao pai. Antes, havia trabalhado na loja do avô, que vendia de anzóis a pranchas de surfe em Mongaguá, no litoral sul paulista. Foi balconista, caixa e entregador no estabelecimento familiar.
Seu pai era amigo de Ernesto Haberkorn, que propôs a sociedade a Cosentino em 1983. A empresa atendeu por Microsiga até mudar o nome para TOTVS, em 2005. Nesse intervalo, diz ter visto a história mudar duas vezes: no nascimento do PC e quando a conectividade entre as pessoas tornou-se irreversível. “Naquela época [a do PC], houve reserva de mercado apenas para hardware, não para software — e os desenvolvedores puderam ser competitivos desde o primeiro momento. Você tinha que criar mercado para vender seus produtos, mas a competição era muito menor. Hoje você não precisa criar mercado, mas a concorrência é muito grande. Antes você tinha que convencer as pessoas a consumir tecnologia, e hoje os negócios são adequados às pessoas.”
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Desde que a operação foi consolidada, a companhia estima em 53 o número de aquisições de concorrentes. A última delas aconteceu em outubro de 2015, com a compra da Bematech, algo visto pelo mercado como a entrada da TOTVS no ramo de hardware. Não era isso, explica hoje Cosentino. “Compramos uma empresa que tem a inteligência de transformar software em hardware. E uma empresa que está presente em quase 100% dos municípios e com uma cadeia de 5.000 distribuidores. Com a necessidade de chegar em cada um no mercado brasileiro, isso é essencial”, diz.
A aquisição da Bematech também foi um passo na direção de um ambiente de tecnologia totalmente conectado. Cosentino vê, num período de cinco a dez anos, mais coisas integradas aos sistemas do que pessoas. “Hoje, quando você entra em um lugar, tem catraca, câmeras, e assim sucessivamente. Em todos os sistemas que estamos desenvolvendo, trabalhamos para que as pessoas estejam conectadas. A gente vê a oportunidade na Bematech de entender como transformar softwares em sensores, e sensores gerando informação para a gente. É a conexão plena.”
O empresário cita a experiência da empresa no Vale do Silício. A companhia é uma das brasileiras a manter um laboratório em Mountain View, na Califórnia (EUA), lugar do mundo onde brotam mais ideias atualmente. Além do desenvolvimento de novas tecnologias, o local é estratégico para o posicionamento da TOTVS no país. “Foi uma forma de também globalizarmos um pouco mais a TOTVS”, diz. “Não só pensar com a cabeça do brasileiro, mas também com a de outras culturas, com outras ideias. Desde o inicio, foi criado para ser um grupo de poucas e talentosas pessoas que pudessem colaborar com o futuro da companhia. Depois, ramificamos isso na própria TOTVS — temos um laboratório no Brasil também, e outro em Querétano, no México —, e fazemos o intercâmbio de conhecimento e de pessoas. Num mundo conectado por tantos smartphones, você tem que viabilizar uma interface muito criativa e com poucas informações, que permita encontrar ou recuperar qualquer coisa de forma rápida. O laboratório da TOTVS trabalha desde identidade de pessoas e de dados e transforma isso em conhecimento aplicado em soluções.”
Da receita total da TOTVS, 14% vão para investimentos em pesquisa e desenvolvimento — algo em torno de 99 milhões de reais por ano. Segundo a consultoria Strategy, a empresa é a que aplica maior percentual da receita em inovação no Brasil. Em agosto, a TOTVS apresentou uma solução completa de varejo do futuro na LATAM Retail Show, em São Paulo, com tecnologias que unem ambiente físico e digital. Algo que começou a ser desenvolvido nos laboratórios da empresa como forma de atingir o entendimento por meio de inteligência artificial, e fazer retornar para os clientes. Na visão da empresa, os próximos anos serão para transformá-la não apenas naquela que desenvolve software, mas na que captura informações para gerar soluções de TI que tornem seus clientes mais competitivos.
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O raciocínio é relativamente simples: trabalhar com a gestão do tempo de quem compra. Na visão da empresa, enquanto o tempo estiver nas mãos do consumidor, ele se sente satisfeito, porque ele pode gastar o que quiser. Quando entra em um processo como pagamento ou fila, o consumidor passa a não gostar mais da experiência. “Por que você faz o check-in antes de ir para o aeroporto? Porque não quer entrar na fila. A gente trabalha nessas interfaces cada vez mais, algo que começou na Califórnia, no design thinking — pegar as experiências do usuário e traduzi-las para o Brasil.” Ou seja: os sistemas não devem mais ser criados para os clientes, mas para os clientes dos clientes. “Quando entrar na loja, ele poderá comprar facilmente com o próprio celular, pegar a mercadoria, embalar e ir embora. Se é detectado alguém que já é cliente, deverá aparecer para o vendedor quem ele é, o que gosta de comprar e de fazer, para facilitar a decisão [do cliente] no momento em que ele vai consumir.”
É o que Laércio Cosentino chama de revalidação do produto. “Se não investirmos em inovação, e não criarmos uma cultura de transformação, a TOTVS deixa de ser competitiva em médio ou longo prazo. Para nós, inovação é especial. Dentro da nossa cultura, a gente desenvolve aquilo em que acredita, e utiliza o que a gente desenvolve. Se não utilizamos aquilo que desenvolvemos, não faz sentido, principalmente se aquilo está na ponta. Não é uma forma de apenas testar produtos, mas também uma estratégia. A gente precisa fazer coisas que as pessoas entendam que faz sentido. A gente vai utilizar cada vez mais a própria TOTVS como piloto do que desenvolvemos.”
Ele mira novamente o novo prédio da empresa em Santana. É nele que a companhia vai testar, fisicamente, aquilo que Cosentino considera a maior revolução desde o surgimento do PC, na década de 1980 — justamente aquela que possibilitou à empresa ser a gigante de tecnologia no Brasil, quando desenvolveu softwares para pequenas e médias empresas, um mercado que hoje detém 58% de participação.
“Se olhar para a grande inovação nos últimos anos, ela foi a conectividade entre as pessoas”, diz Cosentino. “Isso mudou completamente a forma de você comprar e fornecer algo, e prestar um serviço. Por trás, vem duas palavrinhas: transformação digital. Tudo aquilo que a gente fez um dia pode ser feito de uma maneira diferente. Discutimos com nossos clientes que, com toda essa transformação digital, estamos impondo no mínimo a revalidação de seus produtos, ofertas e a forma de atuar. Essa transformação digital já passou pelos setores de música, impressão, passagens aéreas, bancos. A inovação tem que estar na pauta, mas também é processo. Não é só a coisa nova, mas melhorar aquilo que você sempre fez. As novas soluções que estamos colocando em cloud, mais simples e mais fáceis, são o que vai possibilitar a TOTVS chegar lá, e não com aquilo que a TOTVS sempre teve.” As nuvens, de fato, não são passageiras, mas condutoras de um mundo em transformação.