O mês de março de 2017 colocou a moeda digital bitcoin sob os holofotes do noticiário econômico. Sua cotação em dólar ultrapassou pela primeira vez o preço do ouro, quando a moeda virtual fechou a US$ 1.265 no dia 2, enquanto a onça do metal dourado era negociada a US$ 1.233, segundo com o site Coindesk.
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As reações do mercado foram variadas. Aficionados em tecnologia comemoraram. Conservadores reforçaram as acusações de que o bitcoin estaria associado a atividades criminosas. A concorrência entre o bitcoin e o ouro revelou uma outra perspectiva: a possibilidade de a moeda virtual se tornar um ativo financeiro. “O bitcoin é crescentemente visto como ‘safe haven’”, afirma Rodrigo Batista, CEO do Mercado Bitcoin, casa de câmbio que faz a conversão entre o real e a criptomoeda. Para ele, a nova moeda está entrando na categoria de ativos de refúgio, semelhante ao ouro.
O bitcoin e sua tecnologia devem ser monitoradosEsse não era o objetivo inicial quando a moeda virtual foi criada, em 2008. Sua invenção foi atribuída a um tal Satoshi Nakamoto, que há anos desapareceu do ambiente virtual. Trata-se, provavelmente, de um personagem fictício. Mas, seja quem for o pai da invenção, o intuito inicial era facilitar as transações comerciais na internet. O e-commerce nasceu e logo cresceu. A cada transação, crescia a expectativa pela criação de um meio de pagamento simplificado no ambiente eletrônico. O bitcoin não foi a única moeda virtual criada para esse fim. Mas foi a que mais se popularizou – e com uma vantagem adicional em relação ao papel-moeda: ser internacional, desvinculada de qualquer país ou região.
MINERAÇÃO
Existem duas formas de adquirir bitcoins. A primeira é comprar de outra pessoa por meio de uma casa de câmbio na internet. No Brasil, mais de 90% das transações estão concentradas em três empresas, segundo o site bitValor: Foxbit (47,7%), Mercado Bitcoin (25,9%) e BitcoinToYou(19,6%). A outra forma é vender uma mercadoria ou serviço e ser remunerado com a moeda digital.
Chamada de mineração, a emissão de bitcoins é guiada por um código-fonte desenvolvido por Nakamoto. O código foi programado para controlar o aumento da base monetária da criptomoeda. Atualmente, é permitida a emissão de 1.800 bitcoins por dia, com o limite se reduzindo até 2033, quando atingir a emissão total de 21 milhões de bitcoins (hoje estão disponíveis 16,2 milhões).
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A operação é realizada por um sistema chamado blockchain, “um banco de dados integrado a uma camada de redes, cuja função é semelhante a um livro público de registros”, como explica João Paulo Oliveira, cofundador do Foxbit. Também foi desenvolvido pelo misterioso Nakamoto.
O blockchain permite que os dados fiquem registrados em vários computadores em camadas, o que dificulta a adulteração. “Não é impossível, mas o custo de fazer uma alteração neste sistema é mais alto que a recompensa”, explica Michael Casey, pesquisador no MIT. Casey acha que é mais vantajoso utilizar uma rede complexa de computadores para participar da emissão de bitcoins do que tentar fraudá-los. Para Oliveira, a descentralização e o registro em várias camadas são os lastros de controle para o bitcoin. “Não tem como ser derrubado, e um minuto após a transação ser realizada, o grau de mutabilidade já é muito baixo”, afirma.
SUBMUNDO
O bitcoin ganhou liquidez após a página Silkroad, na deep web, vender mercadorias ilícitas e somente aceitar bitcoin nas transações. Com o aumento do volume negociado, o bitcoin saiu do submundo do crime e chegou ao conhecimento público em 2012. Apresentou rapidamente alta valorização, revertida após a decisão da autoridade monetária chinesa de fechar algumas casas de negociação em dezembro de 2013, sob a suspeita de lavagem de dinheiro. Em 2014, a perda de valor continuou após uma casa de câmbio no Japão fechar após não honrar as conversões, aumentando a desconfiança em torno da moeda Entretanto, desde então a tecnologia foi demonstrando ser confiável. A partir de 2015, retomou a trajetória de valorização. Em 2016, registrou ganhos maiores que o rublo (Rússia) e o real, moedas que tiveram a maior valorização no ano passado.
REFÚGIO
As grandes valorizações do bitcoin ocorrem devido ao interesse de investidores de buscar refúgio contra intervenções dos governos na economia de seus países, além de turbulências políticas. No fim de 2016, o banco inglês Saxo divulgou que o bitcoin pode ter uma valorização de 100% em 2017. “O banco apontou a eleição de Donald Trump como um dos fatores para essa elevação”, afirma Batista, do Mercado Bitcoin. Outros fatores foram a restrição da compra de dólares na China, uma mudança na política monetária na Índia e a inflação crônica na Venezuela.
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A transformação do bitcoin em ativo financeiro, no entanto, ainda é vista com cautela por profissionais do mercado financeiro. “É um movimento isolado”, avalia Luiz Eduardo Pinho, estrategista do Andbank. Pinho acha que pode haver uma associação entre a inflação de uma moeda nacional e o aumento do preço do bitcoin, mas ressalta que são pessoas físicas que realizam esse movimento, e não grandes investidores. “Não recomendaria a um cliente comprar bitcoins para compor a carteira de investimento”, afirma André Perfeito, economista-chefe da Gradual Investimentos. Ele pondera, também, que a maioria das obrigações financeiras no mundo é em moedas nacionais.
FUTURO
Apesar de Pinho e Perfeito não considerarem a criptomoeda um ativo para compor a carteira de investimentos de seus clientes, eles avaliam que a evolução do bitcoin e da tecnologia que o cerca deve ser monitorada com atenção. E concordam que, para se tornar um ativo financeiro seguro, o bitcoin precisa ser regulamentado. Mas o reconhecimento institucional deve demorar. Em março, a Securities Exchange Comission (SEC), a CVM americana, recusou a criação de um fundo cujo lastro seria o índice de preços do bitcoin, o que levou a moeda virtual a uma desvalorização de 20%, para depois se estabilizar em US$ 1.100 – dessa vez, abaixo do preço do ouro.
BITCOIN É MOEDA?
Na teoria econômica, para algo ser considerado moeda ele precisa cumprir três funções, chamadas de clássicas. A primeira é servir como meio de troca. A segunda é ser unidade de conta, ou seja, precisa expressar um valor. A terceira é funcionar como reserva de valor, que não apresente grandes desvalorizações em curto espaço de tempo.
Para André Perfeito, da Gradual Investimentos, existem ainda a quarta e a quinta características. Uma é a impossibilidade de ser emitida por agentes privados. “As pessoas não podem produzir moeda, senão ninguém trabalharia.” A outra é a aceitação social, que começa com a imposição dos Estados nacionais para a circulação de suas moedas, passa pelo uso delas no dia a dia e fecha o ciclo com a remuneração do Estado por meio do pagamento de impostos.
No caso do bitcoin, ele não é aceito em qualquer lugar. “Não é possível comprar um carro com bitcoin.” Apesar de a moeda virtual exercer as três funções primordiais em determinados grupos, na sociedade como um todo ela não funciona. “Dificilmente isso vai ganhar legitimação porque os Estados nacionais não podem abrir mão da soberania de sua moeda.”
O DINHEIRO NA HISTÓRIA
Os primeiros registros do uso de um objeto como dinheiro são de 650 a.C. Na Roma antiga, soldados eram remunerados com conchas, manteiga, pregos e sal (origem da palavra “salário”). Em outras civilizações, foram utilizados chocolate, bacalhau e até mulheres escravizadas. Metais como ouro e prata foram introduzidos na Grécia em forma de moedas como conhecemos hoje, com a unidade de conta equivalente ao peso do metal. A desvinculação da unidade de conta com o peso do metal propiciou o aparecimento do papel-moeda no século 17 na Suécia, embora haja indícios de que os chineses tenham utilizado algo semelhante em 960.
* Matéria publicada na edição 50 de FORBES Brasil, de abril de 2017