O exame mais exagerado do mundo começa na sala mais chique do mundo, com direito a sofá, banheiro privativo e um farto prato de frutas. Ela será minha casa por um dia inteiro. Primeiro vêm os exames de sangue, frasco após frasco. Depois, duas sessões de 35 minutos num aparelho de ressonância magnética, onde músicas do REM e do U2 tentam se sobrepor aos ruídos da máquina enquanto ela obtém imagens do meu corpo todo. É feita uma ultrassonografia do meu coração. No almoço, uma salada niçoise. Uma amostra de fezes. Um teste cognitivo no qual letras pipocam numa tela de computador em uma velocidade estonteante. E também uma tomografia computadorizada do meu coração, que, de início, pareceu-me tão além do necessário para alguém da minha idade que tentei me livrar dela.
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“No Vietnã, eu fazia autópsias de rapazes de 18 a 22 anos, e muitos deles tinham doenças cardiovasculares”, diz, indiferente, J. Craig Venter, o arquiteto desse processo. E acrescenta, sinistramente: “Nós encontramos coisas. A questão é o que você faz com isso”.
Sim, trata-se daquele Craig Venter, o homem que, no fim da década de 1990, frustrado pelo lento progresso do Projeto Genoma Humano, financiado pelo governo, lançou uma iniciativa que sequenciou o DNA humano dois anos antes do planejado (posteriormente, ele foi o primeiro ser humano a ter todo o seu DNA sequenciado). Desde então, ele não desacelerou. Navegou ao redor do mundo numa viagem inspirada na jornada de Darwin no Beagle, descobrindo milhares de novas espécies no caminho. Criou vida sintética e abriu três empresas, tendo quase virado bilionário, antes de ser demitido de uma das mais promissoras, a Celera Genomics.
A Human Longevity espera atender 2 mil pessoas por ano a partir de 2017
Agora, ele está de volta com seu projeto mais ambicioso desde o avanço histórico na virada do milênio. Levantou US$ 300 milhões com investidores, entre os quais a Celgene e a GE Ventures, para uma nova empresa, a Human Longevity, que está tentando pegar as informações do DNA que ele ajudou a revelar e então descobrir como tirar proveito delas para enganar a morte por anos – ou até décadas.
No centro disso está o check-up Health Nucleus de US$ 25 mil que estou fazendo (gratuitamente). É tudo muito minucioso – o que, para muitos médicos, é o enfoque errado devido ao grande número de falsos positivos. “Estudos sobre diversos tipos de exames mostraram que eles fazem mais mal do que bem”, diz Steven Nissen, diretor de cardiologia da Cleveland Clinic. “Se você faz uma ressonância magnética total do corpo, será sorte se não encontrar algo. Não acho que isso seja boa medicina.”
Venter debocha. “Como você sabe se elas estão saudáveis? Usa-se uma definição de saúde que vem da Idade Média: se você parece estar bem e se sente bem, é considerado saudável. Nós temos uma maneira diferente de olhar para as pessoas.”
Aos 70 anos, Venter usa a si mesmo como exemplo. No ano passado, passou por seu próprio check-up e diz ter encontrado um câncer de próstata, que foi removido em novembro. A Human Longevity oferece a Venter uma chance de maravilhar os cientistas e ganhar bilhões nesse processo, ao mesmo tempo que abala os pilares de um assunto no qual exatamente 100% dos Homo sapiens têm forte interesse: como e quando cada um de nós vai morrer.
Criado em Millbrae, na Califórnia, ele recebia notas muito ruins – a ponto de, no ensino médio, a mãe, angustiada, verificar os braços dele para ver se havia sinais de uso de drogas injetáveis. Aos 20 anos, serviu como enfermeiro da Marinha, fazendo triagem dos militares que voltavam das batalhas. Decidir quem viveria e quem morreria foi tão traumático que ele afirma ter pensado em suicídio.
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Concluiu o doutorado em fisiologia e farmacologia, tornou-se professor da Universidade Estadual de Nova York em Buffalo em 1976 e, em 1984, entrou nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês). Lá, os temas que definiriam sua carreira se encaixaram: produtividade e os conflitos entre a ciência pura e o dinheiro da indústria.
Usando uma nova tecnologia, descobriu milhares de genes humanos. Os NIH tomaram a decisão inédita de patenteá-los em nome dele, e os colegas culparam Venter, chamando-o de ganancioso.
Em 1992, fundou um instituto sem fins lucrativos. Três anos depois, fez um avanço real: o primeiro genoma, ou mapa do código genético de um organismo; neste caso, um tipo de bactéria. Foi uma sugestão de Hamilton Smith. Eles tinham se conhecido num congresso científico na Espanha em 1993 e saído para beber, iniciando uma colaboração de mais de duas décadas. Prenunciando sua competição posterior com o Projeto Genoma Humano, o mapa do genoma bacteriano de Venter e Smith venceu projetos similares na academia com muitos meses de vantagem.
Com isso, a unidade californiana da fabricante de equipamentos de laboratório Perkin-Elmer, que produzia sequenciadores de DNA, procurou Venter. Se ele era capaz de sequenciar um genoma bacteriano, por que não usar as máquinas mais novas da empresa para sequenciar um genoma humano?
Venter não podia recusar, o que levou à fundação da Celera Genomics em 1998. Ela não só conseguiu ultrapassar o Projeto Genoma Humano – consórcio internacional de US$ 3 bilhões financiado pelo governo dos EUA –, como também mapeou o genoma da drosófila e do camundongo, importantes animais de laboratório.
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A pressão da iniciativa privada acabou por impulsionar os resultados tanto na Celera quanto no grupo público, que aprimoraram seus métodos e aceleraram suas pesquisas. Assim, os dois grupos anunciaram conjuntamente na Casa Branca, em 26 de junho de 2000, que tinham mapeado todo o genoma humano – proeza sobre a qual nossos netos lerão em seus livros didáticos.
No período da explosão das pontocom, a Celera se tornou uma empresa de alto valor, levantando US$ 855 milhões numa oferta de ações em fevereiro de 2000 e atingindo o auge da capitalização de mercado no montante de US$ 14 bilhões pouco antes de todo o mercado começar a desmoronar. O conselho queria que a Celera virasse uma gigante do setor farmacêutico e criasse remédios internamente. Venter só queria ser um cientista e vender seus dados a outras empresas. Foi demitido em janeiro de 2002, dias antes de um quarto de suas opções de compra de ações se tornar exercível. “Me demitirem daquela maneira foi a coisa mais nojenta que alguém poderia fazer”, diz. A Celera se arrastou até 2011, quando foi vendida à Quest Diagnostics por US$ 344 milhões. A criação de Venter foi basicamente vendida para o ferro-velho. Agora, com a Human Longevity, ele espera atender 2 mil pessoas por ano já a partir de 2017, o que geraria um faturamento de US$ 50 milhões. Seu público-alvo são pessoas ricas e empresas preocupadas com seus executivos – a promessa de saúde como benefício supremo.
Cerca de 40% das pessoas submetidas ao Health Nucleus descobriram que têm algo grave. No entanto, para a maioria dos pacientes da Human Longevity, os resultados não são nítidos. Eu estou com sorte: os resultados da minha ressonância magnética não mostraram nada, a não ser que meu hipocampo, parte do cérebro que forma memórias, é meio pequeno.
Andei pensando muito no que faria caso descobrisse um tumor ou aneurisma, e se todo esse esforço é uma má ideia. Mas também não cheguei a me arrepender. Conhecimento sobre si mesmo é uma oferta sedutora. É algo que, Venter espera, vai lhe proporcionar os dados para finalmente cumprir a promessa do genoma.
* Matéria publicada na edição 50 de FORBES Brasil, de abril de 2017